Setembro Amarelo: Suicídio e Vulnerabilidade
/em Adolescência, Artigos, Cinema e Cultura, Destaque/por Arianne AngelelliDepressão Pós Parto(Mãe e Pai) – Depressão Materna
/em Destaque, familia/por Arianne AngelelliPodcast sobre depressão parental, com Vera Iaconelli.
Este é o podcast Papo de Mãe. Participam deste papo com as apresentadoras Roberta Manreza e Mariana Kotscho, a psicanalista Vera Iaconelli e a psiquiatra Arianne Angelelli, ambas do Instituto Gerar. Vera é também colunista da Folha de São Paulo e acaba de lançar o livro “Criar Filhos no século XXI. Arianne é colaboradora do Pró Mulher – ambulatório de transtornos psiquiátricos ligados ao ciclo reprodutivo feminino. O papo é sobre depressão pós parto e depressão materna. E você sabia que existe também a depressão pós parto paterna? Neste podcast falamos dos sintomas e tratamentos para a depressão pós parto. A diferença com o baby blues. O envolvimento de toda a família. Falamos de sinais de uma depressão que podem aparecer já na gravidez e ainda de um outro quadro, pouco citado, e mais grave: a psicose puerperal.
Curso: Para Além da Contratransferência: O Analista Implicado
/em Cursos e Palestras, Destaque/por Arianne AngelelliAperfeiçoamento
CURSO NO FORMATO ONLINE * ver nota abaixo em: “Informações para Inscrições”
O psicanalista deve ser capaz de reconhecer com tristeza e compaixão que entre as pores e mais debilitantes perdas humanas é a perda da capacidade de estar vivo para nossa própria experiência, em cujo caso perdemos uma parte de nossa qualidade humana”.
Thomas Ogden, 2005
Favorecer um espaço de ampliação do conhecimento clínico-teórico que favoreça o trabalho clínico.
Explorar a dimensão intersubjetiva da experiência clínica a partir de autores de nossa contemporaneidade – Thomas Ogden e Antonino Ferro – alicerçados especialmente nos pensamentos teórico-clínicos de W. Bion e D. Winnicott.
Ter no horizonte o objetivo de conduzir à reflexão profunda sobre a posição do analista, bem como de sua implicação no trabalho de análise.
Gina Tamburrino e professores convidados.
- Proporcionar uma visão panorâmica da evolução do conceito teórico- clínico da contratransferência, desde Freud até a atualidade, dando a ver a transformação de uma abordagem unipessoal para a intersubjetiva.
- Apresentar a articulação entre o fenômeno contratransferencial e a implicação do analista dentro de uma teoria de campo (Baranger)
- Trabalhar com os referenciais teóricos e as contribuições para a técnica psicanalítica de Antonino Ferro e Thomas Ogden, baseados na trajetória conceitual de Freud, Klein e Bion.
- Apresentar e fazer trabalhar os conceitos que se relacionam com:
a) a teoria do pensar (Bion): rêverie, identificação projetiva, fato selecionado, capacidade negativa, função alfa, entre outros;
b) a teoria do campo analítico (Willy e Madelenine Baranger): campo analítico, fantasia inconsciente compartilhada, baluarte, segundo olhar.
c) o conceito de terceiro analítico e rêverie (Thomas Ogden);
d) gradiente de funcionamento mental (do sonho às alucinações: sonho, fotograma onírico da vigília (flashes visuais), transformações em alucinose, alucinações) (Antonino Ferro).
- Abordar a questão dos limites do analista, e os impasses que surgem na sala de análise: enactment crônico e agudo (Roosevelt Cassorla).
ESTRATÉGIAS: Aulas teórico-clínicas baseadas em textos de diversos autores (conforme bibliografia) que deverão ser previamente lidos pelos participantes.
Psicanalistas, psicólogos e profissionais que exerçam atendimento clínico, com escuta psicanalítica.
Duração:
um ano. Carga horária do curso: 80 horas.
Horário
Sextas-feiras, das 10h00 às 12h30.
Informações para inscrições
Jornada de Saúde Mental da Mulher – 2022
/em Cursos e Palestras, Destaque/por Arianne AngelelliPROGRAMAÇÃO
- 08h00 – 08h15: Abertura – Dr. Joel Rennó
- 08h15 – 09h00: Planejamento Pré Concepção – Dr. Joel Rennó
- 09h00 – 09h45: Aspectos Psicológicos na Reprodução Assistida – Luciana Leis
- 09h45 – 10h30: Reprodução Assistida e Psiquiatria – Rodrigo Gimenez
- 10h30 – 11h00: INTERVALO (30min)
- 11h00 – 11h45: Família: lugar de pertencimento, diferenciação e atritos contemporâneos – Alexandre Coimbra Amaral
- 11h45 – 12h30: Transtornos mentais no período perinatal – Maira Lessa
- 12h30 – 14h00: ALMOÇO (1h30min)
- 14h00 – 14h45: Psicofármacos e Perinatalidade – Alexandre Okanobo
- 14h45 – 15h30: Transtornos Mental Paterno e suas repercussões – Arianne Angelelli
- 15h30 – 16h00: INTERVALO (30min)
- 16h00 – 16h45: Elaboração Psíquica na Gestação – Rachelle Ferrari
- 16h45 – 17h30: Pediatria e Saúde Mental Materna – Cleyton Angelelli
- 17h30 – 18h00: Discussão de casos e dúvidas com a Equipe do Programa Saúde Mental da Mulher – Ambulatório ProMulher. (Certificado Digital – Concedido pela Escola de Excelência do IPq – Instituto de Psiquiatria do HC-FMUSP)
- inscrições:
- https://www.ceip.org.br/cursos-e-eventos/jornada-de-saude-mental-da-mulher-2022-13-087/
Quando o sono da criança se torna pesadelo para os pais
/em Destaque, Infância, Publicações/por Cleyton Angelelli( Artigo publicado na revista “Crianças”)
Por Cleyton Angelelli
Com grande frequência, pais chegam ao consultório pediátrico trazendo queixas de sono de seus bebês e crianças. Relatam buscas de um sem-número de tentativas de adaptações, receitas e técnicas, e muitos fracassos em “fazer” seu filho dormir. Muitos estampam desânimo e estresse no rosto, decorrentes de exaustão por semanas e até meses a fio.
Meu bebê tem algum problema? – é a questão que muitos nos fazem, especialmente quando se trata do primeiro filho do casal. Nós pediatras somos bastante mobilizados por essa queixa, e muitas vezes não encontramos nenhum fator clínico ou orgânico que justifique o problema do sono. Buscamos oferecer apoio, através de dicas, ideias e “jeitinhos” para “ensinar” a esses aflitos pais a lidar com a questão.
Como se tornar um novo pai/mãe afeta o sono?
O manejo do sono do filho, principalmente para os pais novatos, é desafiador. Mesmo sendo o foco desses pais o bem-estar de seus filhos, é necessário aconselhar que eles também prestem atenção às próprias necessidades e expectativas, especialmente quando os cuidadores estão operando com pouco tempo de descanso devido às mamadas noturnas e outras solicitações.
Esse impacto nas famílias é bastante significativo. Segundo os pesquisadores da área, enquanto pais perdem uma média de 13 minutos de sono por noite, as mães deixam de dormir por mais de uma hora por noite. E o sono dos pais não retorna aos níveis pré-gestacionais até que a criança atinja 6 anos de idade. Mães de recém-nascidos estão também sob risco de insônia, sonolência diurna, ansiedade, depressão, sono não repousante e fadiga. A privação de descanso pode aumentar os sintomas de depressão pós-parto, presente em 1 a cada 8 mães.
Ritmos diversos
Dormir é universal, no entanto, sob o mesmo teto, podem conviver indivíduos com ritmos e necessidades diversas de dormir. Portanto, primeiro é necessário esclarecer para os pais alguns “mistérios” sobre diferenças entre o sono na infância e nos adultos. Um adulto saudável tem um sono consistente e previsível, que dura em torno de 7 horas por dia, na maioria das vezes ininterrupto. Já o recém-nascido pode passar 15 a 18 horas por dia dormindo, mas em períodos curtos, independentemente de ser dia ou noite e, não raro, com maior atividade acordado à noite, pontuam os especialistas.
O desenvolvimento de um ritmo do sono no bebê (o chamado ritmo circadiano, de aproximadamente 24 horas) começa a surgir na maioria das vezes entre 3 e 6 meses de vida, com a criança obtendo mais horas contínuas de sono noturno e menos horas de sono diurno. Porém, existe grande variabilidade individual e alguma imprevisibilidade nesse amadurecimento, e não é incomum que o bebê ainda tenha despertares durante a noite durante todo o primeiro ano de vida. A questão gera mais ansiedade nos pais quando esses se defrontam com um processo que pode ter muitos avanços e retrocessos, tanto por uma causa definida (como por eventuais doenças agudas, viagens, mudanças de endereço), como sem um motivo aparente.
Conforme a criança cresce, a arquitetura do sono vai se aproximando da do adulto, tanto na estruturação de um sono sem interrupções a noite, como diminuição da necessidade de dormir de dia. Perto dos 5 anos de idade, ela apresenta uma estrutura de sono semelhante ao adulto, conforme estudos com crianças de 2 a 8 anos.
Uma técnica de sono para chamar de sua
É típica a cena da criança surgindo – mais uma vez – no quarto do casal durante as madrugadas, em busca de proteção contra monstros que insistem em habitar sua mente infantil. Por sua vez, os pais não compreendem e se frustram por ela ainda ser incapaz de acomodar seus medos e sentimentos desconfortáveis à noite, em geral afetando seu descanso e tornando-se irritável também de dia. A continência parental é sufocada pelo cansaço, aumentando as tensões e conflitos familiares, em uma espiral de desamparo. Alguns pais relatam nervosismo ao final do dia, perto da hora da criança ir para a cama.
Não se pode culpar um pai e uma mãe exaustos por buscarem saídas. Muitas vezes os problemas de sono os afetam desde o período gestacional, ou mesmo antes, como aponta Genevieve DelRosario em seu artigo Moms need to sleep like a baby, too! (“Mães também precisam dormir como bebês!”, em tradução livre). A realidade do filho que não dorme contrasta com aquele bebê que um dia foi idealizado, e expõe muitos pais à insegurança de seu papel de cuidadores e às cobranças da cultura contemporânea, que almeja entregar resoluções rápidas e massificadas às várias questões parentais.
Assim, para equilibrar a complexa equação da privação de sono com a atenção ao filho, existem técnicas e experiências que os ensinam como “domar” o sono da criança e, de preferência, “sem traumas”. As opções são variadas, bem como seus resultados, uma vez que os pais esperam respostas e atitudes em relação ao sono dos filhos que talvez não estejam prontos para obter – deles e de si próprios.
Com isso, a chamada conquista da autonomia do sono pela criança é forjada por um infinito entra e sai dos pais no quarto do bebê, por noites seguidas, até que algum lado se renda. Dormir é “vitória” contra o oponente, e não dormir é “derrota” – sim, há uma guerra em curso! Uma guerra não poderia deixar de ser traumática para pais e filhos.
O ambiente de dormir para você não é o mesmo para um bebê e uma criança
O bebê percorre um caminho para amadurecer e adquirir um bom hábito de sono, de preferência em um meio (ambiente de dormir) e observando certa higiene do sono que o ajude a se desenvolver de forma adequada. É preciso investigar quais aspectos e hábitos propiciam a melhor qualidade do sono, incluindo a rotina criada para a hora de dormir, a duração do sono, a temperatura e luminosidade do ambiente e a presença de ruídos, entre outros. Essas variáveis são entendidas como facilitadoras – não necessariamente determinantes – para ajudar a iniciar e manter o sono durante a noite toda. Não é incomum o relato de que algo que pareceu ajudar em algum momento o bebê a dormir sem interrupções não parece ajudar em outro momento.
Mas o meio, para o bebê, tem mais dimensões e significados. Não só os desconfortos e ruídos ambientais, mas também os psíquicos, influenciam a dinâmica do sono da criança. O bebê e sua mãe têm um longo caminho unidos, mesmo após a separação provocada pelo parto. A mãe é o meio para o bebê. É através dela que o bebê se relaciona com o meio, usando o anteparo materno para lhe dar contorno e organizar sua rica sensorialidade. Ao funcionar em simbiose com ela, principalmente nos momentos iniciais, muitas vezes é o colo materno o melhor berço: nos primeiros meses de vida, muitos bebês dormem melhor e por mais tempo quando são aconchegados num colo.
O colo não disponível, como no caso da ausência física ou emocional parental, torna muitas vezes o sono do bebê tenso, curto, cheio de sobressaltos e interrupções. Nesse aspecto, a rede de apoio às mães e pais – como a ajuda de familiares, babás e outros “colos” – serve também para indiretamente suportar o bebê em sua necessidade de proteção.
Do mesmo modo, pode haver colo em excesso, na medida em que ao bebê não é dada a oportunidade de aprender a dormir sozinho se os cuidadores são excessivamente ansiosos ou superprotetores. Conforme vai crescendo, a maioria das crianças atinge a capacidade de integração que lhe permite dormir com independência – o colo vai sendo finalmente introjetado por elas. Outras, por sua vez, podem precisar por muito tempo do conforto no contato físico dos pais para poder se entregar ao sono.
Desconstruindo a “Torre de Babel ao pé do berço”
Para desfazer esse verdadeiro “diálogo sem legendas entre estrangeiros”, em que um não compreende o que o outro está tentando comunicar, com frequência é preciso buscar uma intermediação de um “tradutor” sensível ao peso que o tema tem em cada família.
Para além das dicas e técnicas, o profissional de saúde – seja o pediatra ou o psicólogo – pode oferecer escuta e apoio aos pais para que caminhem na compreensão da criança em sua reivindicação de colo e proteção, dando a ela o que necessita para suportar a ausência física dos pais, sem que isso coloque a todos em situação de desestruturação. Aqui há um cuidado necessário para ajudar os pais a entender que os fantasmas que assustam a criança podem estar ligados mais às suas próprias crianças interiores do que a questões do bebê.7
No atendimento, a conexão pais-filho, os personagens no entorno familiar e as histórias daquele núcleo são incluídos na avaliação e depurados. Desse entendimento sobre as relações é que surge o amparo para que novos estágios no amadurecimento do sono possam ser gradualmente alcançados, sinal de maturidade e independência da criança. Também há limites a serem confrontados e superados por ambos os lados, de forma segura e amorosa. É significativo lembrar: a criança estará pronta quando estiver pronta e o amadurecimento integral da criança, incluindo físico e psíquico, está intrinsecamente atrelado ao ciclo sono-vigília. A criança se desenvolve também durante o sono.
Foto do autor:
Cleyton Angelelli – Pediatra, com especialização e alergia-imunologia infantil e homeopatia. Membro do Departamento de Saúde Mental da Sociedade de Pediatria de São Paulo. Membro do Grupo de Desenvolvimento Emocional Infantil da Casa Curumim (São Paulo).
E-mail: agimedicina@gmail.com tel: (11) 93404-6982
A constituição da paternidade
/em Cursos e Palestras, Destaque, Paternidade, psicanálise/por Arianne Angelelli- O filho também é do pai! O foco na relação mãe -bebê pode nos deixar esquecer do ambiente que os circunda e da importância do pai. A atitude paterna influencia no desenvolvimento da criança. É o pai, ou seu substituto, que favorece para a mãe e o bebê o estabelecimento da terceiridade… É preciso três para que dois possam ter a ilusão de ser UM!
- Em nosso curso, pelo INSTITUTO GERAR DE PSICANÁLISE, buscamos:
- Compreender como alguns homens estão construindo novas narrativas e práticas sobre a masculinidade e paternidade. Esta compreensão pode ajudar a abrir portas dialógicas com outras identidades masculinas menos disponíveis para se desconstruir. ( Alexandre Coimbra Amaral)
- Entender e legitimar o pai como um cuidador potente e desejante do filho, acompanhando assim as mudanças socioculturais por que temos passado. As novas dinâmicas e configurações familiares possibilitaram outras formas de exercício da paternidade, bem como da maternidade. ( Simone Gidugli)
- Pensar o complexo de Édipo e suas relações com a constituição da terceidade. ( Sérgio Gomes)
- Investigar as conexões e pontes simbólicas que unem pai e filho. Com Winnicott e sua lente de aumento incidindo sobre os aspectos ambientais e mais precoces, iluminamos a figura do pai e sua capacidade de conexão com o filho como agente facilitador do seu processo de travessia edípica. Há um processo dialético e sincrônico: o pai está lá para ser encontrado quando o bebê se torna capaz de criá-lo. ( Arianne Angelelli)
- Aprender com Cristina Merletti sobre intervenções e atendimento a famílias – pensar o Édipo sob o vértice paterno e ilustrar, nos casos de psicose infantil, as vicissitudes da constituição da função paterna.
Falando sobre masculinidades… com Alexandre Coimbra Amaral.
Nossos professores:
Arianne Angelelli é psiquiatra perinatal com especialização na infância e adolescência, colaboradora do ambulatório Pro-Mulher do Instituto de Psiquiatria da USP. Simone Guidugli é psicanalista e pesquisa a paternidade na USP. Este curso foi montado por Arianne ( PUC-SP) e Simone (USP) a propósito das pesquisas em psicanálise que ambas desenvolvem no momento. Alexandre Coimbra Amaral tem experìência com grupo terapêutico de homens e nos traz casos de homens em sua trajetória na construção da paternalidade. Cristina Merletti, do Lugar de Vida, psicanalista e docente titular da Universidade Ibirapuera, nos fala da função paterna a partir de sua experiência com famílias e no atendimento a crianças com transtornos de subjetivação. Sergio Gomes, também doutor em psicologia, traz sua contribuição a partir da sua pesquisa de pós doutorado e articula terceiridade, Édipo e paternidade.
O filho também é do pai
/em Cursos e Palestras, Destaque/por Arianne AngelelliPara Winnicott o bebê é “uma organização em marcha” e a fase edípica um momento importante do desenvolvimento, mas que nem sempre é atingido plenamente.
Sem deixar de levar em conta o pensamento freudiano e a importância do complexo de édipo, Winnicott se volta para os estágios iniciais e suas viscissitudes.
O estabelecimento da terceiridade na vida da pessoa é pensado pela ótica das relações iniciais. Ele enfatiza a importância do ambiente para o amadurecimento e sob este ponto de vista a conquista da independência relativa a partir da situação inicial de dependência absoluta do bebê.
Claudia Dias Rosa salienta como Winnicott tende a valorizar a presença real do pai na vida do bebê e de sua mãe. Ela explicita 4 fases do desenvolvimento e em cada uma delas a participação paterna. Estas fases vão do momento mais inicial, em que o pai, fazendo parte do colo da mãe, é percebido de forma indiferenciada, ao momento do pai “edípico” agente da terceiridade e da diferença . Segundo esta autora, na obra de Winnicott, o pai tem múltiplas funções que progridem conforme o bebê se desenvolve. Ele tem lugar como facilitador para que o bebê adquira uma capacidade progressiva de percepção do objeto, em cada fase. Diz Winnicott:
“À medida em que o bebê fortalece seu ego… à medida que a tendência herdada à integração faz o bebê avançar…. a terceira pessoa desempenha ou parece desempenhar um grande papel…e é aqui que sugiro que o bebê tem probabilidade de fazer uso do pai como um diagrama para a sua própria integração… Se o pai não se encontra lá, o bebê tem de fazer o mesmo desenvolvimento, mas de modo mais árduo…”
O pai “capaz de sobreviver, castigar e perdoar” , de que nos fala Winnicott, é aquela figura que, já percebida em sua totalidade pelo bebê, tem sua importância como um elemento terceiro , real e presente. O pai (terceiro) que pode acolher de alguma maneira os impulsos hostis da criança faz diferença na maneira como ela se torna capaz de suportar em si mesma as pressões instintivas.
Com Winnicott e sua lente de aumento incidindo sobre os aspectos ambientais e mais precoces, podemos salientar o quanto a figura do pai e sua capacidade de conexão com o filho será agente facilitador futuro do processo de travessia edípica. Há um processo dialético e sincrônico: o pai está lá para ser encontrado quando o bebê se torna capaz de encontrá-lo.
curso pelo Instituo Gerar
https://institutogerar.com.br/cursos/o-filho-tambem-e-do-pai-reflexoes-psicanaliticas-sobre-a-paternidade/
inscrições para o curso no link acima
Professores:
Alexandre Coimbra Amaral: Psicólogo, terapeuta de casais, famílias e grupos. Escritor, autor de “Cartas de um terapeuta para seus momentos de crise” e “A Exaustão no topo da montanha”. Fundador do Grupo Terapêutico de Homens, que vem desconstruindo machismos há quatro anos e meio em encontros quinzenais).
Arianne M. M. Angelelli: Psiquiatra infantil e perinatal, membro do departamento de saúde mental da Sociedade Paulista de Pediatria e do Ambulatório de Saúde Mental da Mulher do IPQ-USP, mestranda pela PUCSP.
Cristina Keiko Inafuku de Merletti: Psicóloga; psicanalista; especialista em Tratamento e Escolarização de Crianças com TGD/PSA-IPUSP; mestre e doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pelo IPUSP; sócia-membro do Lugar de Vida – Centro de Educação Terapêutica SP; docente titular do Programa de Mestrado em Educação e Subjetividade da Universidade Ibirapuera.
Sergio Gomes da Silva: Psicanalista, Pós-Doutor em Psicologia (USP), Doutor em Psicologia Clínica (PUC-Rio), Membro Efetivo do CPRJ, Membro do GBPSF. Diretor do Instituto Nebulosa Marginal.
Simone K. Niklis Guidugli: Psicóloga perinatal, clínica e hospitalar. Mestre e Doutoranda pelo IPUSP. Sócia-fundadora da Curae Psicologia.
Programa:
08:00h – 09:15 – Síndrome de couvade: a identificação feminina primária e a ancoragem da paternidade no corpo. O pai que une. (Arianne Angelelli)
09:15- 10:30 – Da Preocupação Materna Primária à Preocupação Parental Primária. (Simone Guidugli)
Intervalo 15 min
10:45 as 12:15- A experiencia do grupo terapêutico de homens: paternidade. (Alexandre Coimbra)
12:15- 13:30- almoço
13:30 -14:15 Depressão puerperal paterna: não é só a mãe quem deprime. Características dos quadros de doença mental paterna e suas repercussões (Arianne Angelelli).
14:15- 15:30 Paternidade, Terceiridade e Édipo (Sergio Gomes).
15:30 – 16:45h- O triângulo edípico sob o vértice paterno e suas repercussões no psiquismo do filho. A dimensão simbólica da filiação- o pai que separa. (Cristina Merletti).
intervalo 15 min
17:00 – 18:00 Filho, não vê que estou queimando? Paternidade e negritude – ser pai no contexto da sociedade brasileira. Caso clínico. (Simone Gidugli e Arianne Angelelli).
18:00 a 18:30 roda de perguntas aos palestrantes
Depressão pós parto
/em Destaque, familia, Publicações/por Arianne AngelelliÉ claro que te amo
E tenho tudo para ser feliz
Mas acontece que eu sou triste…
Vinicius de Moraes (1)
Depressão pós-parto
Por Arianne M M Angelelli
Psiquiatria da Infancia, Adolescência e Perinatalidade
Introdução
“Tenho medo do meu filho”, dizem muitas mulheres, diante da fragilidade e total dependência do recém-nascido. Sobre o filho temido estão projetados os medos, as fantasias, os remorsos e as culpas, o desejo de voltar atrás, de ser de novo livre, e também os restos de operações edípicas e pré-edipicas vividas pela mulher no passado. A afirmação pode parecer ilógica: que mal pode fazer à mulher um ser tão indefeso como o bebê? Nos tempos atuais, a supervalorização da criança (fato recente na história do mundo) e a tirania dos ideais exerce sobre a mulher uma imposição que transforma a maternidade. Em muitos casos vivências de persecutoriedade, perda, falibilidade e impotência dominam a cena perinatal: um drama em que uma mulher, geralmente sozinha, enfrenta grande adversidade ligada ao fato de tornar-se mãe.
A trilogia grega Orestéia, de Ésquilo (escrita no século V_ AC) conta a saga de traições e vinganças da família real de Micenas. Na tragédia grega a rainha Clitemnestra mata o seu esposo, recém chegado da guerra de Troia, porque descobre que, para vencer esta guerra, o esposo havia sacrificado a filha do casal . Após assumir o trono, Clitemnestra toma o poder até ser assassinada, desta vez por seu filho Orestes, que vem para vingar a morte do pai. Mas é muito interessante como Clitemnestra descobre que seu filho está chegando para realizar essa vingança. Ela descobre a intenção de Orestes por meio de um sonho premonitório. Neste sonho, Clitemnestra dá à luz uma serpente, que abocanha seu seio e se amamenta de sangue e leite.(2).
Um filho que é uma serpente, um seio que gera sangue e leite, são imagens fortíssimas que atravessam os séculos e ainda hoje valem como metáforas das situações conflituosas e ambivalentes que podem ocorrer com a chegada do bebê. O processo gestacional, o parto e o puerpério exigem muito da mulher em termos físicos e psíquicos. Ao contrário do que se poderia pensar, nem a gravidez, nem o pós-parto são períodos de proteção contra a eclosão de surtos e doença mental. Essa mulher que a tragédia grega pinta com as cores da ambivalência, do amor e do ódio, é a mãe espoliada e machucada pelo filho, adoecida pela depressão ou psicose . O filho-serpente é um perigo e uma ameaça para esta mãe.
Podemos também evocar a relação entre a serpente que suga o sangue e o leite e a amamentação, inspirados pelo sonho de Clitemnestra. É comum que dificuldades na amamentação possam estar mascarando um quadro depressivo ou ansioso na mulher. E a ideia do “sangue” que se mistura no leite pode também ser ligada às questões transgeracionais, como uma loucura que “passa pelo sangue” e se reedita a cada geração.
Sabemos que é necessário, para cuidar de um bebê, um grande trabalho psíquico. Colocar-se a serviço do ser humano em porvir é muito cansativo, pois o ser humano não nasce pronto, e precisa de outro ser humano para se tornar pessoa. O desamparo da criança é vivenciado pelo cuidador. Neste momento delicado, o cuidador se dá conta do que representa esta empreitada. Por isso, aquele que exerce a função materna precisa de toda ajuda e, ainda assim, está só. O mergulho, a regressão ao mundo sem palavras, sensorial, ao mundo do tudo ou nada que é o cuidado diário do recém-nascido exige um grande esforço, pois o bebê representa o arcaico dos nossos primeiros tempos e demanda do seu cuidador a capacidade para se colocar em contato com emoções muito primitivas (3). Mas atribuir a uma só pessoa- a mãe- o fracasso ou o sucesso nesta tarefa complexa é fruto da simplificação e da idealização da função materna. Esta deve ser constituída a cada caso e precisa do apoio ambiental. A idealização da maternidade supõe “um saber atávico sobre o maternal” (4) que a clínica e a observação atenta nos fazem questionar.
Para Christina Wieland (5) a cultura ocidental e sua desvalorização do feminino contribuem para que a imago materna, que nos atravessa a todos, oscile entre a mãe santa idealizada e a bruxa, justificando ora a veneração e ora a violência contra a mulher. Este estado de coisas não ajuda em nada quando a mãe se depara com o bebê real e se defronta com a maternagem que ela realmente pode exercer. A reação da sociedade à dependência experimentada nos estágios iniciais da vida, quando a mãe tem total poder sobre nós, e que reprimimos em nossa busca por autonomia e individuação, pode se transmutar em todo tipo de hostilidade, velada ou não, contra a Mãe. Mesmo a visão mais romântica da amamentação, por exemplo, e o cuidado mais bem-intencionado podem estar a serviço de uma tirania não consciente que rouba à mulher o exercício da sua subjetividade e criatividade. A crença no instinto maternal e os preconceitos motivados por essas razões inconscientes levam também à dificuldade que a própria mulher tem de procurar ajuda de quando adoece psiquicamente, na gravidez e no pós-parto.
A partir disso falaremos aqui de alguns conhecimentos úteis para o profissional psi, no que concerne à depressão periparto e sua terapêutica dentro do campo da psiquiatria, assim como de algumas implicações que a patologia pode ter sobre o desenvolvimento da criança.
Quadro clínico da depressão pós-parto
Diferenciando Saúde e Doença.
Atualmente, pela grande quantidade de quadros de humor diagnosticados no pós-parto terem se iniciado já na gravidez, prefere-se utilizar o termo depressão periparto para englobar estes casos também. A alteração do humor relativa ao sentimento de culpa, a preocupação e a tristeza fazem parte da vida e da condição humana. Em fases de transição, como o a gravidez e o puerpério, reações de ajustamento são comuns. Por isso é necessário fazer a distinção entre as reações patológicas e as reações adaptativas normais de todo este processo. Antes do parto, os quadros psiquiátricos se correlacionam com um pior desfecho obstétrico- a tristeza ou ansiedade na gravidez, para além de um certo limite, tem muitas consequências. Já no pós-parto a diferenciação entre blues puerperal e depressão é muito importante, pois o “blues” é autolimitado e não deve ser Medicalizado*. Como estabelecer esta diferença? O blues puerperal é uma condição transitória e muito frequente relacionada ao cansaço, sentimentos de desamparo e flutuações hormonais. É própria à situação de adaptação da mãe ao recém-nascido e às mudanças no primeiro mês após seu nascimento. A transitoriedade (pico de sintomas na primeira semana, com resolução dentro de no máximo um mês) e a característica flutuante do quadro, sem marcas de gravidade, indicam que a conduta nestes casos deve ser de apoio à puérpera e suporte ambiental. Se, por outro lado, os sintomas de humor seguem um curso de piora progressiva, evoluindo para a caracterização de um episódio depressivo maior, a mulher deve ser encaminhada para tratamento.
Sintomas
Os fatores mais importantes que justificam a hipótese de um episódio depressivo, independente de sua ocorrência dentro ou fora do pós-parto, são o humor triste e a ausência de prazer na vida. Alterações de apetite, sono, alterações cognitivas como distratibilidade e perda de memória, fadiga e sentimento de culpa ou vergonha costumam estar presentes, mas nem sempre indicam depressão se encontrados isoladamente. Os critérios para o diagnóstico da depressão não variam no período perinatal em relação a outras fases da vida (ver tabela 1) embora haja algumas particularidades desta fase: a presença de ansiedade e preocupações obsessivas com o bebê (8). É importante distinguir a depressão com características ansiosas de situações potencialmente angustiantes, comuns na gravidez e pós-parto, ligadas a estressores como falta de suporte, complicações gestacionais ou questões de saúde do bebê. A preocupação materna primária- um estado particular das mães de bebês pequenos e que se caracteriza por forte conexão mental e emocional entre a mãe e filho (9) faz parte da saúde, assim como os dilemas e conflitos característicos do momento de transição para a parentalidade.
A retração da libido, caraterística da depressão, encontra na fase puerperal um fator agravante: a presença do bebê que necessita ser cuidado. A mãe que está bem dirige a seu filho sentimentos que brotam de sua vida sexual, num sentido amplo- o bebê é investido eroticamente por ela, que se ocupa do seu corpo, alimentação e bem-estar, encontrando verdadeiro prazer no seu contato (10). Na depressão, está reduzida a energia libidinal disponível para este investimento, pois a mãe se retrai. A tarefa do cuidado com o bebê passa a ser penosa ou carregada de preocupações. Então, a face oculta da maternidade, que para a maioria permanece reprimida, vem à tona: componentes agressivos e terroríficos como os do sonho de Clitemnestra, e a ambivalência – sangue e leite- que existe nos sacríficios que o estado de neotenia do bebê exige da mãe. A mudança radical que ocorre na vida da mulher ao tornar-se mãe (geralmente mais marcada na vinda do primeiro filho) é um luto impossível quando esta adoece num quadro de depressão. A nova condição é vivenciada como perda da identidade. A mãe se sente incapaz de fazer face à responsabilidade da tarefa. Muitas mulheres tem a sensação de que a maternidade é uma espécie de malogro (perda de liberdade, transição para um papel que a oprime) e o humor deprimido impede que as perdas e mudanças de rumo na vida na transição para a parentalidade sejam compensadas pelo investimento narcísico no filho (11). Isso pode se iniciar já na gravidez. Após o nascimento da criança, vicissitudes relativas a ela podem seguir um caminho de mão dupla: quando algo ocorre com o bebê (por exemplo, a internação prolongada numa UTI, uma doença ou síndrome, retraimento excessivo, questões na amamentação) e a mãe não pode “se alimentar” do seu amor, o risco de depressão também aumenta.
A disforia é um sintoma de humor comum na depressão perinatal e pode ser descrita como um sentimento de mal-estar constante associado à irritabilidade. Pode prevalecer sobre o sentimento de tristeza e se associar à angústia, (descrita como o aperto ou peso no peito) e choro frequente. Os equivalentes orgânicos do afeto (sono e apetite) comumente se alteram na depressão perinatal. No pós-parto, quando o bebê tem despertares na madrugada, a insônia e o cansaço materno não podem ser explicados somente por este fator, pois a dificuldade de dormir novamente após um despertar noturno ou repousar durante o dia, decorrentes da depressão e ansiedade, pioram o cansaço da mãe.
O sintoma fadiga, ou cansaço excessivo, deve ser bem investigado. Se ele não cede após períodos de descanso pode ser na verdade um sintoma depressivo. Fadiga e perda de energia estão presentes em muitos puerpérios de mães saudáveis; pelas demandas da fase, principalmente quando há pouco auxílio ambiental. Um estudo inglês recente relaciona a solidão e sobrecarga da pandemia de COVID 19 a aumento da sintomatologia depressiva nas mães (12). Por isso, a avaliação clínica deve levar em conta o contexto, o conjunto dos sintomas e o humor associado, e não somente a queixa isolada. Não podemos nos esquecer também de fatores orgânicos que podem concorrer neste momento. Nos casos de muita perda de energia e astenia, doenças físicas e desequilíbrios hormonais tem de ser investigados. Alguns quadros puerperais de base sistêmica podem ter sintomas que se confundem com a depressão: anemia, tireoidite pós-parto ou hipotireoidismo, síndrome de Sheehan (falência hipofisária decorrente de choque hipovolêmico-perda excessiva de sangue- durante ou após o parto), doenças autoimunes, encefalite e outras doenças infecciosas, reações a medicamentos, entre outros. Assim, o diagnóstico diferencial da depressão pós-parto inclui a pesquisa de quadros clínicos que a agravem ou melhor expliquem.
Os sintomas cognitivos da depressão podem ser muito perturbadores. Na depressão, queixas de memória e distratibilidade não se explicam apenas pelo cansaço da fase. Dificuldade de se organizar, de tomar decisões, tendência a procrastinar e preocupação com detalhes são sintomas derivados de alterações cognitivas que contribuem para um agravamento dos problemas cotidianos, levando a certo caos que deixa a mulher ainda mais paralisada. Anteriormente eficientes e capazes de enfrentar situações desafiadoras, no trabalho ou em outras áreas da vida, as mulheres deprimidas veem-se ineficientes e bloqueadas na própria capacidade de pensar. Encaram a maternidade como dificuldade intransponível. Preocupações e ruminações obsessivas de causar dano ao bebê podem aparecer, e mesmo pensamentos de morte e ideação suicida. O suicídio é uma das maiores causas de morte materna até que se complete o primeiro ano de vida da criança. (13). Muitas vezes ocultados na entrevista com o médico ou terapeuta, pensamentos suicidas devem ser investigados.
Para evitar o diagnóstico em quadros transitórios, a maioria dos manuais classificatórios de psiquiatria pede a presença de duas semanas de sintomas para caracterizar o transtorno depressivo maior (vide tabela 1), visto que situações passageiras podem ser autolimitadas. Quase sempre há flutuação dos sintomas no tempo, com alternância de momentos melhores e piores, sendo comum a piora matinal.
A depressão pós-parto é um tabu porque é vista pelo imaginário social como sinal da inapetência do amor materno, tão idealizado em nossa cultura. Existe subnotificação, retardo em procurar ajuda e não reconhecimento do quadro em muitos casos, que permanecem sem tratamento. (14) Em um estudo, apenas um terço dos pediatras sentia-se capaz de reconhecer os sintomas de depressão pós-parto das mães que frequentavam a sua clinica (15). As mães podem esconder seus sintomas por vergonha ou desconhecimento.
Prevalência e fatores de risco
A prevalência de depressão periparto varia nos estudos, inclusive por diferenças metodológicas. Em condições sociais particularmente desfavoráveis, a prevalência pode estar bem acima acima dos 10-13% encontrados na maioria dos estudos populacionais (13,14,16). Dificuldades sociais e familiares, pobreza e gravidez na adolescência, entre outros fatores, aumentam seu risco. A depressão pós-parto masculina pode ser um gatilho e um agravante para a depressão materna, tendo uma prevalência média de 10% e ocorrendo principalmente entre o terceiro e o sexto mês após o nascimento do filho (17,18). A complexidade da situação puerperal nos deve fazer atentar para os sintomas que podem surgir no bebê, na vida de relação e na família, e que podem estar relacionados com um quadro depressivo não identificado. Porém, o fator mais importante de risco é a depressão gestacional ou episódio anterior na vida da mulher. A suscetibilidade à depressão depende de fatores endógenos e individuais, sempre observados nos relatos do transtorno através dos tempos (19). Alguns fatores de risco comumente encontrados para o transtorno estão elencados na tabela 2.
Não há consenso sobre o ponto de corte no tempo a partir do qual um quadro depressivo na mulher não mais se correlaciona com o período pós-parto apesar de os manuais classificatórios especificarem uma data específica (6 semanas pós-parto no caso da CID 10 e 4 semanas pós-parto no caso do DSM V (20). Alguns estudos consideram até um ano após o parto, levando em conta a magnitude do estressor “filho” que perdura por muito mais que um ou dois meses depois do nascimento! A variação no critério tempo de início do quadro dificulta a comparação entre os estudos. Quanto ao curso da doença, o episódio depressivo no puerpério tem algumas particularidades: em geral persiste por seis meses, mas um terço das mães ainda apresentará sintomas mesmo depois de dois anos (22). Também pode haver maior demora na resposta às medicações, além da grande particularidade da questão da amamentação que discutiremos adiante.
Diagnóstico Diferencial
É importante ter em mente que parte dos quadros de humor puerperal não serão depressões unipolares, mas sim bipolares- portanto algumas de nossas pacientes serão na verdade portadoras de transtorno bipolar. Casos de depressão pós-parto que na realidade se encontram dentro do espectro bipolar apresentam maior incidência de crises de pânico, irritabilidade, impulsividade e labilidade do humor, e irão implicar em mudança no diagnóstico e perspectiva do tratamento. Um indício de bipolaridade é a má resposta ou piora com o uso de antidepressivos (23). A investigação dos antecedentes pessoais e familiares de transtorno bipolar do humor pode auxiliar o clínico na questão do diagnóstico diferencial. A bipolaridade, porém, não é a única causa de resposta paradoxal ao tratamento. Algumas doenças sistêmicas ou cerebrais podem estar presentes associando-se à depressão, agravando-a ou explicando totalmente os sintomas apresentados, o que muda o diagnóstico ou influencia a conduta terapêutica.
Os sintomas obsessivos podem estar presentes no quadro depressivo perinatal, por vezes com intensidade e gravidade suficiente para justificar o diagnóstico de TOC (transtorno obsessivo compulsivo) comórbido. São preocupações e pensamentos de caráter rígido, incapacitante, para além de um excesso de zelo com o bebê. Preocupações hipocondríacas e pensamentos de causar dano à criança podem estar presentes, causando grande sofrimento.
Tratamento da depressão periparto
Se nos casos de Blues pós-parto as medidas de suporte costumam ser suficientes, trazendo melhora e alívio, nos casos de depressão encontramos um estado melancólico ou ansioso que se agrava pelas demandas do bebê. O tratamento deve ser tríplice com medidas psicoeducativas e ambientais, provendo cuidado à mãe e ao bebê, psicoterapia e medicamentos, observando-se as particularidades do momento. À mãe com antecedentes de depressão, ou bipolaridade na família, o pré-natal deve incluir a indicação de suporte psicológico sempre que possível. Nos casos mais leves a psicoterapia pode ser indicada isoladamente, sem prescrição medicamentosa, mas em geral não é fácil a decisão terapêutica no caso do ciclo gravídico puerperal; pois se o uso de fármacos na gravidez e amamentação não é isento de riscos para a mãe e para o bebê, também são grandes as consequências para ele da doença depressiva materna e doença mental da mãe, em geral. (24-32)
A decisão de tratar com medicamentos a mulher no ciclo gravídico-puerperal deve levar em conta o risco/benefício em cada caso, a gravidade e a decisão pessoal da mãe. Casos de depressão moderada a grave geralmente não podem prescindir do uso de medicamentos, assim como nos casos geralmente mais graves de depressão bipolar. Não existe medicamento totalmente seguro quando entramos neste campo, mas diversos consensos, constantemente atualizados, auxiliam o clínico que atua nesta área (33,34). Há medicamentos sabidamente teratogênicos e outros cujo risco parece ser mais baixo. Há drogas que apresentam uma maior transferência para o leite materno, e outras que tem menor passagem ao leite, e assim por diante.
Alguns princípios gerais devem guiar a conduta do clínico, como evitar usar polifarmácia e tentar utilizar as menores doses possíveis dos medicamentos aparentemente mais seguros em cada fase (gravidez, amamentação, puerpério). Deve-se levar em consideração a resposta da mãe a determinados fármacos e evitar fazer trocas de medicamentos desnecessárias. O alívio do sofrimento dentro da possibilidade de menor risco possível deve nortear a conduta. Algumas medicações anteriormente consideradas seguras podem vir a se associar a maiores riscos conforme as evidências cientificas vão se acumulando. Outros medicamentos, anteriormente proscritos, como por exemplo o lítio na gravidez, passam a ser mais bem aceitos quando os trabalhos mais recentes passam a evidenciar um risco mais baixo do que se pensava anteriormente.
Uso de medicamentos na amamentação.
Na depressão pós-parto há quatro tipos de medicamentos mais usados no controle e alívio dos sintomas (35-39). Os antidepressivos podem pertencer a classes diferentes, como os tricíclicos e os inibidores de recaptação de serotonina, entre outros. Dentre as opções disponíveis, contamos com drogas relativamente eficazes e seguras para o uso na amamentação. Não se justifica a interrupção da amamentação por conta da necessidade do uso de antidepressivos pela mãe. Alguns antidepressivos considerados mais seguros (como a sertralina a paroxetina e o escitalopram) apresentam baixa razão leite/plasma (proporção entre a concentração de droga presente no leite em relação à concentração no sangue da mãe). Não parece haver prejuízo cognitivo ou de desenvolvimento para os bebês em aleitamento no caso de várias destas medicações, o que encoraja o seu uso- quando sabemos das consequências da depressão não tratada para o desenvolvimento do bebê.
Os benzodiazepínicos e os indutores de sono também podem se fazer necessários para tratamento do sono e ansiedade maternos, com ação rápida e sinérgica ao efeito dos antidepressivos, principalmente nos quadros mais agudos. Podendo ter um efeito de sedação nos neonatos que amamentam, devem ser usados com cautela, mas são em alguns momentos mais eficazes e rápidos do que outros medicamentos. Aconselha-se o uso pontual e por curto período destes medicamentos para controle de sintomas agudos das depressões que podem cursar com muita ansiedade e angústia.
Finalmente, os antipsicóticos e os estabilizadores de humor podem ser necessários, havendo opções mais indicadas para uso nesta fase. Alguns antipsicóticos e estabilizadores de humor como a quetiapina mostram-se relativamente seguros tanto na gravidez quanto na amamentação. Caso especial é a depressão que se relaciona com o transtorno bipolar- seu manejo é mais difícil pois pode ser exacerbada pelos antidepressivos. Nos casos de pacientes bipolares infelizmente a polifarmácia é mais regra do que exceção. Quando a mãe não está amamentando, a escolha do medicamento deve ser direcionada para aquele que apresenta maior evidência de resposta para ela. Não é necessário, porém, interromper a amamentação ao iniciar o tratamento da mãe, assim como em muitos casos não é prudente interromper o medicamento antidepressivo na gravidez – aqui pesem o desejo materno e a avaliação do risco de tratar e não tratar que é diferente em cada caso.
Há muitos medicamentos que podem ser utilizados na amamentação inclusive para que as mães deprimidas possam estar em condições para fazer psicoterapia. Nos transtornos de humor, pode haver dificuldade de engajamento no processo de psicoterapia e de aderência aos outros tratamentos disponíveis. O uso da medicação traz alívio dos sintomas incapacitantes propiciando uma melhora nos outros aspectos da vida, na medida em que a mãe consegue se mobilizar para buscar ajuda. Para muitas medicações a literatura não encontra associação entre uso materno e prejuízo cognitivo ou emocional das crianças – seja na gravidez ou na amamentação. O uso de antidepressivos na gravidez, como observado nos estudos mais recentes também não parece se correlacionar com o aumento do risco de transtornos do espectro autista (40,41).
Há medicamentos novos com ação hormonal que parecem ser promissores, como a brexanolona (https://www.medscape.com/viewarticle/910643)- ainda não utilizada no Brasil.
Consequências da Depressão Puerperal
Do ponto de vista psiquiátrico, o período perinatal é momento de vulnerabilidade. A maneira como se dá o puerpério e suas reconfigurações, em termos de papéis assumidos e para o psiquismo, tem consequências duradouras em vários campos da vida materna e do filho. A presença de depressão neste momento é preditor de crises depressivas futuras e de dificuldade de reorganização da vida pessoal e profissional da mulher.
Estudos recentes cada vez mais apontam para as consequências da depressão materna na prole, com prejuízo na interação mãe-bebê (menor reciprocidade, estimulação e vocalizações da mãe para com o bebê) e alteração de vários indicadores em seu desenvolvimento (interacionais, motores, cognitivos e sociais), assim como piora da qualidade do apego e maior risco de morbidade psiquiátrica futura (24-32). Porém a interação entre os fatores da doença materna e suas consequências na criança é complexa. Num estudo realizado em nosso meio, filhos de mães deprimidas desenvolveram mais rapidamente a linguagem (24), ao mesmo tempo que tinham pior índice de reciprocidade social. As consequências da depressão materna na prole dependem de vários fatores, como o suporte social, a resiliência da família e da própria criança. Visto que parte dos quadros já se inicia na gravidez, fatores nutricionais, descuido com o pré-natal, uso de drogas psicoativas e álcool, e mesmo alterações de dieta ligados a um precário estilo de vida interferem no desenvolvimento do feto e da criança. Já foi descrito o aumento da morbidade psiquiátrica na prole de mães submetidas a estresse em situações de guerra até as gerações futuras. Este fato tem sido associado a alterações de metilação do DNA fetal que se transmite aos seus descendentes (32). Seria este um correlato biológico para o que conhecemos em psicanálise como transgeracionalidade?
Sabe-se que mães com depressão podem se mostrar capazes de manter o nível de interação com seus bebês por mecanismos compensatórios, direcionando ao filho sua energia em detrimento de outros aspectos de sua vida, principalmente nos casos de depressão mais leve. A relação da depressão materna com o padrão de apego apresentado pelo bebê parece ser consistente, direcionando a forma com que a criança tenderá a interagir com o ambiente, sua regulação emocional e autocontrole na vida futura. Bebês de mães deprimidas, principalmente se cronicamente deprimidas, são um grupo de risco para doenças psiquiátricas. Os primeiros mil dias de vida, contados a partir da concepção, parecem ser cruciais para o desenvolvimento físico e psíquico do indivíduo e a neurociência tem demonstrado prejuízos ao desenvolvimento ocasionados pelos traumas ocorridos no início da vida (32).
Na clínica com bebês de 0-3 anos, encontra-se muitas vezes nos casos de depressão ou ansiedade maternas uma certa intrusividade que pode ser tão danosa como a negligência nos cuidados. A simbiose neste caso não funciona de modo a promover sintonia entre mãe e filho, mas destina-se ao controle e alívio da culpa e persecutoriedade maternas, podendo ocasionar um desequilíbrio dos ritmos no neonato e um excesso de excitação do mesmo. Seus sinais de retração não podem ser acolhidos nem traduzidos como necessidade legítima de repouso, de auto-regulação. Acriança pode reagir a esta invasão com uma imobilidade defensiva se a mãe “estiver muito agitada- encobrindo, pela atividade, uma depressão própria- ou demasiadamente excitante e estimulante, não permitindo, ao bebê, o intervalo e o tempo necessários a uma apropriação. (42). Nestes casos, tudo pode parecer bem com a mãe zelosa e conectada com a criança, mas aparecem problemas psicossomáticos ou de sono no bebê- invadido pela hipervigilância materna, ele não “desliga” e não descansa.
Se não há queixas específicas, a ameaça pode estar projetada nas figuras mais próximas da mãe (avó, sogra, parceiro). Neste caso, surgirão conflitos familiares difíceis de manejar. “Hoje… a mãe deve enfrentar sozinha este desamparo que ela não compreende e que não é reconhecido socialmente… Ela tenta, frequentemente, apoiar-se na única pessoa que está a seu alcance: seu marido. Ela espera dele o que deveria esperar de uma mãe: que a ajude, que cuide do bebê para ela, o que frequentemente causa problemas, dificuldades para o casal ou fragiliza e afugenta o pai.” (11). Se o ambiente não é capaz de metabolizar a angústia da situação, pode reagir retaliando a mãe ou atacando o seu vínculo com o bebê que a todos parece excessivo ou inadequado.
Existe preconceito e desinformação de muitos clínicos em relação aos riscos dos medicamentos usados para tratar os transtornos puerperais. É comum a interrupção de medicamentos necessários para a mulher com depressão, quando engravida, aumentando a chance de depressão perinatal. Da mesma maneira, ao amamentar, muitas pacientes preferem não usar medicações psicotrópicas, temendo prejudicar o bebê, por desconhecerem os riscos da própria depressão, acreditando que seu sofrimento irá preservar o filho. O sacrifício materno acaba sendo contraproducente, pois no início da vida, em termos psíquicos, mãe e bebê compõe uma díade e o sofrimento e as dificuldades acabam sendo compartilhados, direta ou indiretamente.
Conclusão
Apesar dos tabus envolvendo os transtornos mentais perinatais, vem se notando maior mobilização social e pelos profissionais da saúde para fazer frente às demandas das mulheres, bebês e famílias. O profissional de saúde que se dispõe a trabalhar neste campo deve equilibrar a percepção da vulnerabilidade tão característica desta fase com a tendência autoritária do discurso que por vezes domina a visão medicalizante quando se fala da doença mental da mulher no puerpério. Quantas iatrogenias podem acontecer por falta de compreensão destes processos! A provisão ambiental não deve usurpar o protagonismo parental deste momento, o que muitas vezes ocorre, mesmo que disfarçada sob o discurso de uma ordem médico-científica que reivindica para si todo o saber. Temos situações de abandono e situações de intervencionismo que em nada ajudam a mãe (e o pai, muitas vezes também alijado de toda decisão). Às vezes a mãe chorosa sai da consulta com o especialista (obstetra ou pediatra) com uma prescrição de sulpirida (EquilidR) para se “acalmar” e “ter mais leite”, quando sua lactação é normal e tudo o que precisa no momento é ser ouvida e obter suporte. Em que medida a prescrição de um neuroléptico como o “equilid” é capaz de embotar o afeto e a libido, prejudicando o vínculo mãe-bebê, é tema para ser estudado ainda. As emoções e a regressão que ocorrem na perinatalidade não devem ser consideradas como doença e se há uma “cura” para este estado de coisas, essa cura é o descanso, o suporte ambiental, a boa escuta e o próprio tempo passado com o filho… Como diz Winnicott:
“A mãe, que talvez esteja fisicamente exausta, e, talvez, incontinente, e que está dependente para muitas coisas, é ao mesmo tempo a única pessoa que pode apresentar o mundo ao bebê de modo significativo para este…, todavia, seus instintos não conseguem se desenvolver se ela estiver amedrontada… o leite materno não desce como uma excreção- é uma resposta a um estímulo que consiste exatamente na visão, no cheiro, e no contato com o bebê, bem como no som do seu choro. (43).
Obstetras, psiquiatras, pediatras e profissionais envolvidos com a gravidez e o parto, os que prestam auxílio às mães nos níveis de atenção básica, e toda a rede social tem papel importante na identificação e cuidado da depressão perinatal. Ela é muito frequente, principalmente em populações com vulnerabilidade social, e seu tratamento é fator importante para a prevenção das patologias psíquicas que podem acometer as crianças no futuro.
Tabela 1 (Fonte: American Psychiatry Association.)
Critérios para episódio depressivo maior segundo o DSM V (resumido)
Cinco ou mais dos sintomas abaixo presentes por pelo menos 2 semanas e que representam mudanças no funcionamento prévio do indivíduo Pelo menos um dos sintomas é –Humor deprimido –Perda do interesse ou prazer | Os sintomas não se devem aos efeitos fisiológicos de uma substância (ou outra condição médica) | Os sintomas causam sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo do funcionamento social, ocupacional ou em outras áreas importantes da vida. |
Não houve nenhum episódio de mania ou hipomania anterior (exceto induzidos por substância ou outra condição médica)Os sintomas não se devem aos efeitos fisiológicos de uma substância ou outra condição médica | Quadro não é melhor explicado por transtorno esquizoafetivo, transtorno delirante ou outro transtorno do espectro esquizofrênico e outros transtornos psicóticos. | |
1-Humor deprimido (sente-se triste, vazio ou sem esperança). | ||
2- Acentuada diminuição do prazer ou interesse em todas ou quase todas as atividades na maior parte do dia quase todos os dias. | ||
3-Perda ou ganho de peso acentuado sem estar de dieta (mais de 5%do peso corporal) | ||
4- Insônia ou hipersonia quase todos os dias. | ||
5-Agitação ou retardo psicomotor quase todos os dias. | ||
6-Fadiga e perda de energia quase todos os dias. | ||
7-Sentimento de inutilidade ou culpa excessiva ou inadequada (que pode ser delirante) quase todos os dias. | ||
8-Capacidade diminuída de pensar ou concentrar-se, ou indecisão quase todos os dias. | ||
9-Pensamentos de morte recorrentes (não apenas medo de morrer), ideação suicida recorrente (com ou sem plano suicida), ou tentativa de suicídio. | ||
Especificadores: Com características ansiosas.Com características mistas.Com características melancólicas.Com características atípicas.Com sintomas psicóticos.Com padrão sazonal.No período próximo ao parto: Início durante a gravidez ou nas 4 semanas após o parto.Com catatonia. |
Tabela 2 Fatores de risco para depressão pós-parto (16,19,21)
Fatores psicossociais- ausência de suporte social e familiar, dificuldades financeiras, conflitos conjugais, ausência de companheiro, perda de companheiro ou entes queridos na gestação, relacionamento ausente ou difícil com uma figura materna, abuso ou negligência na infância. |
Vulnerabilidade- idade precoce, antecedentes de depressão ou depressão pós-parto, disforia pré-menstrual, traços de personalidade como neuroticismo ou introversão, baixa autoestima. |
Fatores da gestação- Gestação indesejada, gemelaridade, menor intervalo entre as gestações, parto prematuro, tratamento para engravidar, parto cesáreo. |
Fatores relativos ao bebê- malformações congênitas, estadia em UTI neonatal, intercorrências neonatais, não amamentar. |
*Nota: O termo medicalização refere-se à adoção de um viés patologizante ou organicista na compreensão do sofrimento e comportamento humano: “o conceito é considerado um “clichê da análise social”. Publicações proliferam sobre diferentes objetos medicalizáveis, tais como a infância, comportamentos desviantes; gravidez e parto…Para cada um deles, surgem potencialmente novas condições médicas …ou entidades clínicas já existentes aumentam em prevalência, sobretudo em países desenvolvidos”. (6;7)
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Ref 12
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Ref 13
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Para ver as legendas em inglês, aperte o icone de configurações
Poemas simples para pensar o desenvolvimento
/em Destaque/por Arianne AngelelliI- Primeiras conversas ao redor do berço
Quando o bebê vai chegar, queremos saber e saber
Que bichinho é esse, um bebê?
Ele é molinho, ele chora, ele dorme, ele não dorme.
Eu quero ler um livro, eu quero saber.
Os pais se debruçam sobre o berço
Querendo aprender seu bebê.
Vão descobrindo o que ele gosta, o melhor jeito
Para mamar e para dormir.
É difícil.
Cuidar de um bebê é cansativo.
São momentos repetitivos, muitas incertezas.
Os pais ficam sensíveis às críticas dos familiares
Querem ajudas, mas querem estar confiantes
Estar confiantes na sua capacidade de ser pais.
Cuidar de um bebê é um desafio, precisamos aprender a esperar
“Sempre trabalhei muito. Na licença maternidade,
Me sentia muito parada. E cansada ao mesmo tempo.
É estranho.”
Esperar, observar.
O bebê começa a mamar, e dorme.
Chega no pediatra, não ganhou o peso esperado.
O bebê fica muito acordado de madrugada…
“Não sei o que fazer…
Se deixa muito no colo… acostuma?
E ele tem frio, ou calor?”
A mãe fala com seu bebezinho. Ela diz várias coisas
Que são uma tentativa de traduzir o que se passa.
Parece um pouco maluca. O bebê boceja,
ela enxerga um riso. Ela vê uma mensagem ali onde o bebê
ainda está começando a criar uma intencionalidade.
Com o tempo, criarão uma linguagem própria e especial
Feliz o papai que pode estar junto desde o início.
O amor não subtrai, ele soma
Sempre cabe mais amor para receber o bebê
Este hóspede na família, que logo logo vai ser “de casa”!
Depois de um tempo, pensamos
Ah, ok, minha vida agora engloba este bebê
E posso voltar, podemos voltar, a viver
sem tantas preocupações…
“Não me arrependo do que fui outrora
Porque ainda o sou”
Diz o poeta.
Não tem nada a ver com padecer no paraíso.
Não é padecimento, mas não há paraíso.
É um momento em que damos uma volta em nossa própria vida
Para regar a vida que torna a renascer,
Em cada bebê que nasce.
II– Limites
Limite é contorno
Limite é segurança
Limite é amor
É fronteira. Espaço, demarcação
É linha divisória
Que permite a união
Sem confusão.
Amor se aprende no limite
(já dizia Drummond)
Uma vida toda
Para aprender.
É o que dizer
E o que não dizer.
Saber que há um dentro, um fora,
Um entre nós.
É difícil dizer não
a que se ama
mas para se dizer sim,
quanto caminho
a percorrer.
Dizer um verdadeiro sim
É o privilégio
de quem sabe dizer não.
Dizer um verdadeiro sim,
Só se aprende no limite
Meu filho, me ensine,
Me relembre
O quanto é bom
Depois de um NÃO
Te dizer: sim!
Eu te respeito
Eu te conheço
Eu te reconheço
Eu sei que onde você termina
Só então é que eu
Começo.
III
O filho não nasceu da barriga do papai
Mas o papai
Sonhou com ele e o esperou também.
Não foi o pai que amamentou, mas o seu colo
foi a firmeza de que a mãe precisou para amamentar tranquila.
Não foi com um cordão umbilical que o pai alimentou o filho
Mas com suas palavras, com seu nome,
Dando ao filho um lugar.
O pai e o filho constroem uma ponte entre si:
Uma ponte de amor, de convivência, de brincadeira e de verdade.
É o filho quem faz o pai ?
O amor não começa e nem termina
Carrascoza nos diz que o pai e o filho
Terão de se gerar um no outro
Por engenho e arte de ambos .
Birras!!!!
/em Destaque, Infância, Maturidade, Relacionamentos/por Arianne AngelelliAlerta de spoiler: este não é mais um post que vai lhe dar dicas sobre como lidar com as birras dos seus filhos.
” Terrible two “
Dizem que esta é a fase dos terríveis dois anos. Se tudo correu bem, chegamos até aqui! Mas o que é tão terrível nestas birras e teimosias? Que grande desafio é esse? Como estes seres tão pequenininhos passam a ter tanto poder sobre nós? Na fase da birra, os pais são desafiados mais uma vez. Quando o bebê nasceu, o desafio foi aprender a cuidar de alguém tão dependente. Foi difícil. Foi maravilhoso. Mas agora… agora os sentimentos são outros.
Impotência, irritação, raiva. Tudo vira disputa e confusão. Os pais é que entram numa fase terrível. Serão testados em sua consistência, paciência, firmeza e convicção. E será necessário aos pais ter jogo de cintura e maleabilidade. Será necessário que repensem sobre o que é importante, em relação às regras e aos limites. Que pensem no que desejam transmitir para seu filho em sua trajetória dentro da sociedade humana. Divergências que eram antes desconhecidas entre o casal podem vir à tona no momento em que o filho chega à fase do “terrible two“. Como fazer? Como lidar? Vale ser severo, rígido? O que fazer quando o menino ou a menina se jogam no chão, aos berros? Vale ser paciencioso, condescendente? Dá para negociar com a criança? Ou é melhor ignorar a birra? Os pais se acusam mutuamente. A família vem para julgar. Cenas e “shows” acontecem diante da plateia familiar.
Primeiro os pais se sentiam julgados se o filho não mamava, não dormia ou não falava bem. Agora, são julgados pela impertinência e pelas “malcriações” do filho. Chovem palpites, recriminações. A criança que está se desenvolvendo bem aprende rapidamente quais são os pontos fracos dos seus pais. Por que ela faz isso? Só para chatear, para irritar, para testar?
Na verdade, a criança que faz birras está construindo suas capacidades emocionais e para tal está recrutando seus pais. Ela os quer firmes e amorosos ao mesmo tempo, presentes , maleáveis e resistentes. A criança vai atacar os pais para que eles possam sobreviver aos seus ataques. Assim, poderá construir a ideia de ser separada deles, com uma mente própria. A raiva, o ciúme, a inveja, a disputa: todos estes afetos difíceis começam a aparecer no palco do drama familiar. A criança tenta adquirir um controle sobre sua vida e sobre as emoções dos seus pais. Se a criança ganhar este jogo, ficará desesperada! Pois os limites é que darão segurança à criança.
Como ajudar nosso filho a lidar com o NÃO?
Para isso, precisamos rever aspectos profundos de nós mesmos . Como você lida com os limites? Você se resigna, se revolta, ou você sabe negociar com as dificuldades da vida? Como você faz para viver em sociedade, seguir as regras da boa convivência, do respeito ao outro, sem que por isso se sinta submetido, ressentido e amargo? Como abrir mão da onipotência infantil e achar gosto na vida real, onde sempre falta algo ou alguém para nossa felicidade ser completa?
Adultos também fazem birras. Alguns se mantém vivos por meio dos embates que travam com a vida. Esses embates podem estar encobrindo uma real dificuldade de se adaptar, pensar, abdicar da condição de estar no controle, ter poder sobre o outro.
Entendamos então, a importância da fase das birras, que vai dos 2 aos 3 anos de idade mais ou menos. Para Winnicott ” é no entremeio que talvez resida a coisa mais difícil no desenvolvimento humano, ou talvez a mais penosa de reparar, de todas as falhas iniciais que ocorrem. O que existe no meio…é o fato de o sujeito colocar o objeto fora da sua área de controle onipotente; isto é, o sujeito perceber que o objeto é um fenômeno externo, não uma entidade projetiva, na verdade, o reconhecimento de que o objeto é uma entidade autônoma.” É a fase importante da birra que traz para a criança, por meio dos embates com o adulto, a noção firme de aonde ela começa e termina, de aonde o pai começa e termina, de onde a mãe começa e termina. Há um triângulo, e em seus vértices estão o bebê, a mamãe e o papai. Ao perceber que os pais tem uma vida própria, e se amam, e vivem sua vidas independentemente do desejo da criança, ela perde e ganha. Perde a ilusão da onipotência, sofre o ciúme, a inveja e o limite! Mas ganha a possibilidade de estar só, ganha a possibilidade de perceber que também ela pode se ligar a outras pessoas: os primos, a vovó, os amiguinhos da escola. O NÃO é uma estrada com duas direções: ajuda a criança a se definir, se reconhecer, se direcionar . O pai que diz não à criança está também dizendo a ela que é bom crescer, e que ela também poderá dizer não ao outros, aprendendo a reconhecer seus desejos verdadeiros.
” É verdade que Winnicott também fala do amor primitivo, referindo-se aos estados excitados do bebê, carregados de tensão instintual, mas este “amor” é feito de necessidade, e nada sabe sobre a existência externa de um outro. O amor do objeto que sobrevive à destruição é toda uma outra coisa; trata-se agora do sentimento de um eu – que, embora incipiente é inteiro e separado– dirigido para um outro, como pessoa inteira e separada. O pré-requisito para este amor é o mesmo que para o exercício da genitalidade que se quer madura, e que não é apenas um exercício solitário; também nesta é preciso que o objeto seja percebido como externo e separado do indivíduo. Ou seja, o amor é constituído no interior do processo de amadurecimento.” *
É a face mais dura do amor. Onde eu termino, você começa.
Amor é o que se aprende no limite, como dizia Drummond : amor começa tarde. O amor está ligado à maturidade. Sem passar pelo “terrible two” a criança estará paralisada no seu desenvolvimento. Terrível , mesmo, é descobrir que mais que dois existem mais. Mas sem esta constatação estaremos presos num mundo de onipotência, desespero e solidão.
- Elsa Oliveira Dias- A teoria do amadurecimento de D.W.Winnicott, 4 ed, 2017, pag 224.
Ciranda, do Palavra Cantada!!!
Coelho, corre!
/em Destaque, Paternidade/por Arianne AngelelliExistem muitas listas de livros importantes , escritos em várias épocas, que por diversas razões resistem ao tempo e mantém-se sempre atuais. “Todo leitor é, quando está lendo, um leitor de si mesmo” diz Proust. Alguns autores conseguem tocar a muitos pela universalidade das questões que colocam em seus personagens, nos enredos, na forma de sua escrita. Tenho trabalhado com a perinatalidade há alguns anos e vinha procurando algum personagem para me guiar e ajudar com a pesquisa que conduzo em psicanálise sobre o que é ser pai. Na clínica, para além da depressão pós parto materna que está sob os holofotes há bastante tempo, sabemos que prestar auxílio aos homens que se tornam pais faz toda a diferença, em muitos casos. Como é a mulher que dá à luz e amamenta, facilmente colocamos na sua conta a infinidade de problemas que podem surgir nas primícias da vida… esquecendo que é preciso de uma tribo para cuidar de uma criança. Na pandemia, com o desmonte das redes de apoio, mães tem adoecido, casamentos e uniões tem se desfeito, crianças estão regredindo em suas habilidades sociais. É importante pensar sobre isso.
Eu já conhecia os livros de Jonh Updike, autor contemporâneo, que seguem a vida de Harry Angstron, o Coelho. Lembrei-me de Coelho quando de tanto ver pais abandonarem o barco diante dos impasses do relacionamento e da paternidade procurei um personagem que pudesse me contar, com sua voz, das dificuldades que enfrentam. Muitas mulheres chegam transtornadas e muitos filhos seguem a vida com as feridas abertas do abandono paterno, feridas muito difíceis de sarar. O que está acontecendo? Será que foi sempre assim? Coelho abandona sua mulher grávida logo no início do livro de Updike. Ele tem uma dificuldade grande de sequer formular para si mesmo o quanto se sente enredado no casamento e numa vida oprimente, sem criatividade, sem novidade. Vive numa solidão ao lado da frágil esposa a quem ama e odeia na mesma medida. Mas o que nos chama atenção é como Coelho, diante de tantos sentimentos contraditórios e com os quais não consegue lidar, age por impulso : escapando, escapando sempre.
Jonh Updike disseca a mente de Coelho sem moralismos. É um homem sensorial, cheio de qualidades, porém impulsivo e imaturo. Coelho é sedutor e meigo, mas não conseguiu chegar ao estágio do concernimento, o estágio do amor objetal, em que os sentimentos e desejos das outras pessoas são reconhecidos e levados em conta. Mas, paradoxalmente, não é má pessoa. Coelho tenta ser um pai mas está ainda muito fixado à própria adolescência. Na primeira cena do livro, chegando do trabalho encontra uns garotos jogando basquete num terreno perto de sua casa. O homenzarrão tira o paletó e joga com os garotos, sentindo felicidade por perceber que ainda consegue ser bom no esporte que lhe trouxe tanta glória no tempo da high school . Chega em casa e o que encontra o exaspera: a mulher barriguda, com a gestação avançada, a casa em desleixo, o barulho infernal da televisão. Coelho sai para pegar o filho na casa da avó e o vê comendo na mesa com seus pais… sente que o menino ali, sendo cuidado, é ele! Então foge, foge, dirige o carro a noite toda pelo estado da Pensilvânia, sem saber para onde ir. O pastor de Coelho, imbuído do desejo de ajudar a refazer a família, traz o homem de volta no dia do parto da esposa. Coelho se sente culpado… mas o desenrolar dos acontecimentos vai tornando as coisas cada vez mais difíceis para ele.
Sua relação com o pastor é muito interessante: uma advertência para nós, terapeutas, sobre os riscos do aconselhamento que não leva em conta a situação psíquica dos sujeitos. Um terrível acidente joga o personagem num luto impossível de realizar, e novamente ele foge, foge… abandonando sua esposa pela segunda vez. Há um tipo de culpa que impede o sujeito de lidar com a realidade. Seu peso é tamanho, a dor dessa culpa é tão insuportável, que só resta ao homem escapar para fora de si mesmo. O homem está perseguido por dentro e não consegue mais pensar: só lhe resta o movimento e a fuga. Coelho é a bola que some das suas mãos quando se sente marcado no jogo de basketball– acuado, ele engana o adversário num passe muito rápido, se torna puro movimento, pura ação.
A fuga para a ação, para os braços de outra mulher, para o colo da própria mãe ou para as drogas e álcool estão entre os mecanismos de defesa que mais encontramos nos homens que adoecem nas crises da perinatalidade. Coelho corre, não consegue pedir ajuda, e os que tentam alcançá-lo ficam todos para trás.
É um lindo e honesto livro para entender alguns meandros da mente masculina. Hoje, 15 de julho, é o dia do homem.
Tres livros, um poema, uma canção
/em Destaque/por Arianne AngelelliFoi eleito. A ideia de que possa ser eleito novamente me mortifica.
Que ele brinca com a tragédia, tem argumentos.
Pode-se alguém dizer qualquer coisa? Qualquer coisa que se pense? Todo disparate? E se alguém está no alto, mais alto que todos, em posição de poder dizer, não seria então mais necessário que o seu dizer fosse cuidadoso para com aqueles que o escutam? …
É certo que nunca saberemos toda a verdade. Certezas são sedutoras tanto quanto falsas. A machonice à toda prova. Não duvidar, não ter dúvidas. Se você assiste a uma conversa como essa. Faz cinco anos…
Enfim.
O que dizer sobre o que aconteceu com o nosso país. Como este nosso país pensa? Pensa assim?
“Com o passar do tempo, com as liberalidades, drogas, a mulher também trabalhando, aumentou-se bastante o número de homossexuais”… Essa fala traz a ideia da família moderna como responsável por desvios da sexualidade, pelos comportamentos ditos “anormais”. É uma maneira de pensar, de enxergar o mundo.
Há algo de picaresco na imagem de um homem fazendo o gesto de um revólver, como se fosse brincadeira. Zorro ao contrário, montado ao cavalo, sem máscara. Um playmobil . Palavras que zunem pelo ar como golpes de espada. Como se não fossem cortantes…Temos o vírus, temos as mortes. Mas ele brinca; “já sei…a culpa é minha…” : faz troça.
Este que fala acima tornou-se nosso presidente … eleito. Esta maneira de enxergar o mundo se fortalece a cada dia. Não é um discurso que desconhecíamos. Pois! O rei está nu, é certo, mas quem se importa… Este é um rei que foi eleito em sua nudez dizendo todo o tipo de disparates. Cobriu-se este pândego com um manto imaginário… Alucinação que resiste aos argumentos, às provas da realidade.
Precisamos de um rei assim? Se é verdade que o que ele diz faz sentido para muitos, a questão não está apenas num projeto de “direita” , mal professado por ele. É o desejo de endireitar que assusta mais. Um pensamento ortopédico que justifica crimes de toda ordem.
Prefiro Riobaldo, prefiro Diadorim.
O amor, prefiro.
A onda normatizadora está em todos, em todos nós. Tem tsunamis que arrastam almas, rios de lama piores do que aquele. Por isso tenho gostado de livros, livros, livros. Agarro-os, para a lama não me arrastar. São cordas, bóias, faróis. Livros que ajudam a mergulhar em histórias de pessoas diferentes .
Caíram-me ao colo, recentemente, histórias que são dinamite para os preconceitos meus. “A Gorda”, de Isabela Figueiredo e “A metafísica dos tubos”, de Amelie Nothomb. A moça gorda, a menina autista . Elas me fizeram companhia nestes dias sombrios. A gorda me seduziu com sua volúpia, sua sensorialidade, sua honestidade. Poucas vezes li tão linda a descrição do amor entre uma filha e uma mãe. A vontade que a filha tem do corpo da mãe, o ódio.
Da menina diferente e seu lago de carpas, aprendi a vontade de morrer. Não tem como não empatizar com ela e ser autista , ser a gorda , viajar com elas nas páginas destes livros. Como não se transformar depois deste mergulho? Estas autoras me transformaram.
Leiam, leiam, a literatura nos salvará. Vamos tratar de entender que somos iguais no que mais importa. E que esta violência da qual este homem é arauto não deve mais seduzir toda a nação. Não pode. Seja você de esquerda, de direita, tudo bem e tudo certo. Mas este país “cordial” é violento, e precisamos nos responsabilizar, ao menos, por nossas palavras.
E, por fim, um poema:
Tiradentes
Carlos Pena Filho
É o muito esperar que existe em torno
que me destina a ação desbaratada.
A morte é bem melhor do que o retorno
ao nada.
Não nasce a pátria agora, o sonho mente,
mas, em meio à mentira, sonho e luto
pois sei que sou o espaço entre a semente
e o fruto.
O homem que amava caixas
/em Destaque, familia/por Arianne AngelelliCoisa boa de se ter filhos pequenos é poder ler com eles as histórias feitas para crianças , que enternecem nossa imaginação e nos trazem de volta para a sabedoria esquecida da infância. Há livros para crianças que todo adulto deveria ler. Nesses tempos em que a realidade nos bate na cara todos os dias com estatísticas escabrosas, acordos sinistros, milhões de árvores cortadas, vidas cortadas, verbas cortadas para a arte , é bom poder ouvir histórias e ver lindas figuras que falam sobre relações humanas…como elas deveriam ser. Pautadas pela ética e pelo respeito. Deveríamos entremear com este tipo de contos as nossa leituras jornalisticas e escutar histórias infantis no intervalo do noticiário… quem sabe assim nos resguardássemos da desesperança e do cinismo que nos ameaça , a partir de dentro de nossos corações já endurecidos.
O homem que amava caixas , de Stephen M King, é a uma dessas histórias que li há algum tempo, e da qual sempre me recordo. Um homem diferente tem uma fixação por caixas. Não sabe dizer ao seu filho que o ama. Então, passa a construir para ele caixas em forma de castelos, com formato de aviões, e todos os tipos de caixas, para brincarem. O filho, que ama o pai, não se importa com sua esquisitisse. É por meio das caixas que se comunicam.
Esta história me lembra um filme que vi na adolescência, e nunca mais esqueci também. Outro dia encontrei-o num streaming , assisti de novo, e voltei a me encantar com ele. É a história de um rapaz que amava pássaros. O título foi traduzido aqui no Brasil como ” Asas da Liberdade”. Este rapaz encontra um amigo que o ama apesar de seus gostos estranhos. Passam a perseguir pássaros, criar pássaros juntos. A amizade floresce apesar das suas diferenças.
O homem que amava caixas, que diagnóstico ele teria? Seria um autista de alto funcionamento, um “Asperger”? Seria psicótico? Ou teria um bonito transtorno obsessivo compulsivo, destes que a gente lê no livro de psicopatologia, acumulador de caixas, caixinhas e caixotes? Todos os achavam esquisito. Mas ele tinha um filho, e brincavam.
O homem das caixas e o homem dos pássaros moram hoje dentro de mim. Quando alguém tem um gosto assim, estranho, é por meio desta preferência que escolhe se comunicar melhor. Nem sempre é fácil entender. Pode ser só em filmes e histórias que tamanhas esquisitices encontrem um final feliz. Mas na sala de análise há sempre caixas a nos confundir… às vezes conseguimos brincar com elas. E quando isso acontece, é muito bom.
O Homem que amava caixas foi editado pela editora Brinque-Book.
O filme Birdy ( Asas da Liberdade) é de 1984, dirigido por Alan Parker. Disponível em youtube , Apple TV e Google Play.
A difícil arte da intimidade
/em Adolescência, Cinema e Cultura, Destaque, familia/por Diana GoldbergE, no entanto, constroem-se pontes.
Antoine de Saint-Exupéry
( atenção: este relato contém spoilers– O filme DAY AFTER I`M GONE pode ser visto em https://mubi.com/pt/films/the-day-after-i-m-gone)
O filme israelense Day After I’m Gone ( O dia seguinte à minha partida) apresenta de forma dramática e intensa a tensão que pode estar presente entre um pai e uma filha que apresentam muitas dificuldades de comunicação. Habitando o mesmo espaço físico, existe um abismo entre eles e uma impossibilidade de se construir uma ponte que possa criar um caminho de encontro.
O abismo entre eles nos é apresentado logo no início do filme. Yoram, que é veterinário, diz à sua colega de trabalho que se descobre que o filho entrou na adolescência quando se passa a odiá-lo. Após formular essa frase chocante e de impacto, conta do desaparecimento de sua filha adolescente há dois dias. A amiga lhe interroga onde ela poderia estar e se a polícia ainda não foi acionada, provavelmente pensando que a garota poderia estar em apuros ou sofrido violência. Ele, apesar de preocupado e aflito, nega tal fato dizendo que ela já vai voltar, que é “coisa de adolescente”. Percebemos então que o pai também não está podendo acessar os próprios sentimentos de preocupação com a filha. Voltando para casa, porém, já sensibilizado pela conversa com a amiga, decide ir à delegacia. É repreendido pela delegada pela demora em comunicar o desaparecimento. A delegada lhe diz que a filha é criança, e ele não concorda, pois considera a filha responsável pelos próprios atos. A policial retruca que, por lei, por ter apenas 16 anos, ela ainda é uma criança. Para obter dados sobre a filha e poder iniciar uma busca começa a lhe fazer perguntas: se tem a senha do celular da filha, se ela tem facebook ou instagram, etc. Ele não tem nenhuma dessas informações- o que já vai revelando a distância e o desconhecimento da vida e do cotidiano da filha.
A questão da intimidade e de quem é o outro sempre foi um ponto que muito me intrigou e afligiu. Esse tema é intensamente tratado no livro de Josephine Hart “ Perdas e Danos”, que foi transformado em filme por Louis Malle ( 1992), baseado num caso verídico que aconteceu na Inglaterra : um ministro da Alta Corte se envolve com a namorada do filho, que quando os flagra num encontro se joga pela janela. Enquanto o pai vai vive esse tórrido e proibido romance se pergunta como isso é possível: como pode ele estar ali, deitado ao lado de sua mulher, com quem é casado há tantos anos, como se nada estivesse acontecendo. E como é possível que a esposa sequer desconfie de qualquer coisa enquanto ele vive essa paixão avassaladora e louca. Essa é uma situação que o angustia muito- essa situação de divisão e ambiguidade convivendo dentro de si, sem que o outro ao seu lado tenha sequer ideia.
Sempre me perguntei quem de fato é o outro– o que sabemos das pessoas que convivem ao nosso lado. Essa é uma situação muito comum nos nossos dias, principalmente com filhos adolescentes: por mais que os controlemos, o que sabemos de sua intimidade, de quem são eles?
Este pai, voltando para casa depois do desconcertante diálogo com a policial, permanece sentado, imóvel no sofá, olhando para o nada. Preocupado? Com raiva? Totalmente imóvel e com o olhar perdido. De repente a adolescente Roni abre a porta, entra, cumprimenta-o friamente e vai para seu quarto como se nada tivesse acontecido. Ele pergunta onde estava e ela responde um lacônico “por aí”.
Na noite seguinte o mesmo ritual frio e distante se repete : Roni chega, dá um “oi” e se dirige ao seu quarto. Na madrugada, enquanto dorme, Yoram é acordado com batidas à sua porta – investigadores da polícia chegam dizendo que foi identificado nas redes sociais uma comunicação dela de que iria se suicidar. Ele reage violentamente achando isso um absurdo, uma invasão, mas a polícia força a entrada e de fato a filha já estava desacordada após ter ingerido remédios para se matar. A moça é levada para o hospital.
Atordoado com tudo isso, no hospital , é abordado por um judeu ortodoxo que reza pela filha e lhe entrega um livro de rezas, lhe dizendo que reze também por sua recuperação.
Depois do ocorrido retornam à casa e o mesmo clima de distância permanece sem que ele consiga se aproximar da moça, sem que possam conversar sobre o que aconteceu. O silêncio entre eles permanece inalterado, tenso. No decorrer do filme somos informados de sua esposa morreu recentemente, e de que antes deste fato , os três eram muito próximos e unidos.
Ele, sem saber de fato o que fazer, como se aproximar, conversar e acolher a filha, decide ir visitar a família da esposa que mora ao sul de Israel. Comunica-lhe sua decisão, a qual ela acha muito estranha porque parece que não tinha um bom relacionamento com a mesma. Partem em viagem no mesmo silêncio por todo longo trajeto, fluxo represado, denso e tenso.
Ao chegarem, encontram a família da mãe com todas as suas esquisitices. Vamos nos dando conta porém que esse foi um gesto desesperado , um pedido de socorro de um pai paralisado e impotente diante da impossibilidade de um gesto espontâneo em relação à dor e ao sofrimento da filha. Roni havia lhe pedido que não lhes contasse nada de sua tentativa de suicídio, mas ele o faz numa conversa particular com sua cunhada. Esta lhe pergunta se a moça queria de fato se matar e ele responde que não, que queria apenas lhe mandar uma mensagem, chamar sua atenção. E ele diz que não faz ideia do que ela realmente queria lhe comunicar.
Diz Winnicott que quando a criança descobre que pode se esconder, que tem essa possibilidade, isso lhe dá a descoberta de um poder… mas se ao mesmo tempo é uma glória poder se esconder, é uma tragédia não ser encontrado! De certa forma a moça, neste filme, não era encontrada pelo pai, que a via mas não a percebia, não a sentia: ela lhe era uma estranha. Em seu trabalho sobre a tendência antissocial Winnicott diz que quando a criança ou adolescente apresentam comportamentos de agressividade, mentiras, roubos, rebeldia, estes comportamentos antissociais estão expressando um sentimento de que algo bom foi perdido por uma falha que é atribuída ao ambiente. Sabendo que a falha é do ambiente, estão vivendo uma deprivação afetiva e desejam resgatar o que tinham de bom e perderam. Endereçam então ao próprio ambiente esse protesto que ao mesmo tempo é um pedido de ajuda. O momento do comportamento antissocial é justamente um momento de esperança: identificaram em seu entorno algum sinal que lhes deu a esperança, ou a ilusão, de que a falha pode ser reconhecida de modo a se restabelecer a situação anterior.
A tia, ao se inteirar do fato, imediatamente diz que tem sim que contar à família, que seria absurdo não contar, que isso é muito sério – e a partir daí assume a administração da situação. Reúnem a família inteira em uma “roda de conversa”, chamam a menina para lhe dizer, cada um à seu modo, que reconhecem a dor da sua perda, da terrível vivência da doença e morte da mãe. Falam inclusive da própria dor relativa a esta morte, reiterando que Roni é membro da família e muito querida por todos ali. Cada um fala de seus sentimentos por ela, da importância que tem, reconstruindo sua história desde o nascimento, rememorando momentos significativos de sua vida.
Ao partirem, ela está, obviamente, furiosa com o pai por ter violado o seu segredo. Pede à ele para voltar dirigindo o carro, pedido que já havia feito na ida mas ele não permitiu – e eis que dessa vez ela vem dirigindo no caminho de volta. O mesmo silêncio se mantém entre eles, apenas um pouco mais leve. No caminho, passam pelo túmulo da mãe e a filha chora: a situação do luto extremamente dolorosa já não é negada. Chegam em casa e num primeiro momento não parece haver qualquer mudança no relacionamento entre eles… Roni vai para seu quarto enquanto Yoram fica na varanda.
Porém, quando a moça vai à cozinha pegar um copo de água , logo em seguida, encontra o livro de rezas que o pai trouxera do hospital. Olha, acha estranho e pergunta a ele o que é aquilo, ao que ele lhe responde: Rezei por você enquanto você estava no hospital… Ela sorri …e vem sentar no sofá da sala, ligando a televisão.
Através desse simples gesto a filha consegue se dar conta do amor do pai, da sua importância para ele, sua angústia e sofrimento com o que poderia ter lhe acontecido. Sendo o pai não religioso, ter rezado por ela e ter trazido o livro para casa era muito significativo, e assim finalmente ela conseguiu ser encontrada.
As vezes é muito difícil lidar com os adolescentes e saber exatamente qual seria a conduta mais acertada, e a medida adequada do limite. Apesar do seu pedido de não contar nada à família da mãe e da fúria pelo pai não ter atendido a este pedido, foi de extrema importância a família ter se encarregado do seu desespero e do sofrimento de Roni. A ação da família foi reconhecer e nomear sua angústia e sua perda, acolhendo esses dois seres atolados em si mesmos, sem conseguir compartilhar o sofrimento, por não poder elaborar o luto da mãe/esposa que funcionava como a ponte e o elo de comunicação da família.
Também foi um processo muito importante a possibilidade do pai ter a humildade de reconhecer sua total impotência para lidar com a situação, se aproximar da filha e compreender o que se passava com ela.
O momento atual da humanidade é um momento de luto coletivo, onde estamos tendo que lidar com muitas perdas ao mesmo tempo, desde a morte física de pessoas próximas e queridas, como a nossa vida roubada- um momento em que como um todo estamos sofrendo uma deprivação. As crianças perderam os amigos, a escola. Os professores, suas atividades regulares, sua rotina, assim como adultos e adolescentes. A ideia da morte paira no ar como uma possibilidade real e concreta. Roubaram-nos a possibilidade de fazer planos e com isso os sonhos, os projetos…Estamos à deriva…. cada um de nós tendo que encontrar em sua história e circunstância a esperança de um porto onde atracar com segurança permanecer em espera. As relações de amor que cultivamos, agora, são o nosso porto seguro.
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O filme DAY AFTER I`M GONE pode ser visto em https://mubi.com/pt/films/the-day-after-i-m-gone
Gestos Alongados
/em Artigos, Destaque, familia, Maturidade, psicanálise, Publicações/por Eleonora Haddad AntunesEu queria levar banana-maçã pro meu pai. Não que ele tivesse me pedido. Estava na lista dele, mas no mercado não tinha. Sei disso porque faço as compras para ele desde março. Ele tem mais de noventa anos e neste 2021 está recluso há catorze meses. Hoje levo.
Conduzo o carro através do seis quilômetros que nos separam. Não é longe, mas nessa pandemia, as coisas se encompridam. Os gestos se alongam em etapas. Antes de sair, coloco máscara de proteção (duas), troco os sapatos, pego o elevador, torço para não encontrar com muita gente.
Uma vontade grande de estar na rua, com ganas de sair dela logo.
No caminho, claro de sol, abro as janelas quando pego velocidade. Sensação de liberdade provisória. É sábado à tarde e vejo poucas pessoas nos pontos de ônibus. Estão com máscaras no rosto, no queixo, nas mãos. Conversam e riem.
Os fins de semana são tempos de ônibus alegres, pessoas em grupo, o tempo mais largo, folgado. Como suas roupas, soltas, sem cintos, fivelas, compromissos. Perto do parque do Ipiranga, ciclistas e pessoas correndo. Um cachorro escapa da guia e vai ao encontro de dois labradores. Uma pequena confusão de latidos e correrias. Na Vila Mariana, passo em frente a restaurantes com mesas ao ar livre, nas calçadas. Famílias em fim de almoço, crianças gritando. Gente querendo viver, difícil pensar na morte.
Chego na rua onde ele mora, estaciono logo. Volto ao ritual. Máscaras, elevador, tirar sapatos. Meu pai abre a porta e se afasta. Agora já se acostumou a não vir me abraçar. Estar com ele também requer gestos alongados. Lavar as mãos, sentar longe, vontade de estar próxima, medo de ficar muito perto. Apartar-se do pleno viver, preservar a vida.
Sinto o piso frio da cozinha sob meus pés. Vejo a quietude da sala, os móveis escuros, um violino mudo em cima de uma poltrona, o teclado encapado em plástico. O sol filtrado pelas cortinas atenua os contornos.
Coloco as bananas na fruteira. Ele sorri. Obrigado, filha. Ele sabe que não precisa delas. Eu também sei. Mas ele gosta e não tinha vindo nas compras.
Venha se sentar.
O apartamento, com seus sofás, quadros, porta-retratos, respira todo à minha mãe. Meu pai vive sozinho em meio às suas lembranças há vinte e cinco meses.
Estar com ele também requer estirar sentimentos. Para que caibam a ausência e a presença dela, dele, dos dois.
Estar com ele requer visitar a falta dela. Na sala, no quarto, nos olhos dele. Por isso tudo é tão comprido. Alongam-se os silêncios, as pausas. Meu pensamento, dilatado, comprime o passado e o futuro. Revejo a mesa, almoços, risadas e antevejo a sala vazia. Sentimentos condensados.
No quarto, dentro do armário, as roupas soltas de seus hábitos, aguardam um destino.
As caixas de remédio empilhadas perto dos copos me alertam para verificar se estão acabando. Conto os comprimidos de cada uma. Três, seis, nove, treze.
Precisamos pedir pra farmácia, pai. Ele faz que sim com a cabeça e, como se lembrasse de alguma coisa, se levanta, pega a chave e de forma ritmada dá corda no relógio antigo de parede. Os sabiás cantam lá fora, meio da primavera. Os ponteiros seguem se movendo. Vamos comer as bananas.
“Winnicott afirma que a criatividade é a base do viver saudável, e que é esta condição que faz com que a vida valha a pena. A possibilidade de viver criativamente é relacionada à qualidade da provisão ambiental recebida no início da vida. Com base na teoria de Winnicott sobre a criatividade, é possível pensar o trabalho do luto como estando vinculado à possibilidade de realizar um ato criativo, com o objetivo de reinstalar a idéia de que a vida vale a pena.” Barone,K.C. O trabalho de luto à luz dos fenômenos transicionais. Caderno Ser e Fazer, 8 outubro 2004
Imagem: Pilar Rodriguez
Ser criativo
/em Destaque/por Maria Helena AffonsoSegundo Winnicott criatividade é o que faz o indivíduo sentir que vale a pena viver.
O mundo é criado por cada ser humano no momento do nascimento.
O bebê tem a ilusão de que o mundo que ele encontra foi criado por ele.
Agora na pandemia a resiliência
dos indivíduos que perderam o emprego
e se reinventaram profissionalmente
é a prova da criatividade deles.
Para ser criativo, temos que sair um pouco do real…
e além disso, cultivar a música, a arte e a poesia.
É preciso dar espaço
para o novo, não ter medo.
Não ser perfeccionista e enfrentar o risco.
Às mães
/em Destaque, familia/por Cleyton AngelelliÀs mães, em tempos de pandemia.
O mundo está mudado, estremecido, vivendo a pandemia e seus efeitos em cada pessoa. As potências de cada um testadas pelo vírus e seu rastro. O planeta se recolhe, em resguardo. No dia de hoje, dia das Mães, passaremos a data comemorativa de forma estranha, pouco familiar.
Teremos mães próximas e mães afastadas de seus filhos.
Teremos mães que outrora protegeram seus filhos com cuidado e presença, e hoje estarão sendo protegidas por eles –pela ausência. Faremos vídeo-chamadas de tele-amor.
O que é isso de ser mãe em dias assim? Não há manual para esse mundo
de extremos e urgências, assim como não há para ser a mãe de um bebê.
Mães são guerreiras falíveis, e carregam muito cansaço e solidão por trás das mais sorridentes fotos estampadas nas redes sociais.
Mas há também o milagre de ser mãe – a mãe que se pode ser. A sua força a brotar sabe-se lá de onde, a serenar as angústias e aliviar dores desse estranho tempo atual.
A mãe a apertar firme no colo seu filho pequeno, quando ele chora temendo o vírus que ronda as ruas, estando ela mesma, igualmente, assustada.
Você se lembra, mãe? Nada parecia indicar que aquelas noites em claro terminariam e, no entanto, elas passam, e vem o dia e a luz, e algo se modifica e melhora.
Como na quarentena da mãe recém-parida, assim o mundo hoje pede um tempo próprio, um movimento diferente. Pede paciência e calma – como um colo cuidadoso da mãe num choro mais demorado do bebê.
Nesta bela cena, Ana dá colo a Maria …
… para que possa inclinar-se e trocar olhares com o menino Jesus. Uma representação do holding ( apoio) de que a mãe precisa para poder bem cuidar de seu filho.
Os adolescentes estão se cortando
/em Adolescência, Destaque/por Arianne AngelelliO índice de automutilação tem aumentado entre adolescentes . Estudos mostram que em mulheres de 16 a 24 anos, desde os anos 2000, os casos mais que triplicaram. Os números são alarmantes : atualmente, quase uma a cada cinco mulheres já teve algum comportamento de automutilação na vida.
Sabemos também que existe uma ligação entre machucar o próprio corpo e o suicídio. Um estudo da Inglaterra seguiu cerca de 9.000 pessoas que chegaram ao pronto socorro por alguma lesão auto-inflingida. Num intervalo de 3 anos , uma em cada cem morreu – mais da metade por suicídio. No caso do “cutting” – a prática de se cortar- sabemos que é raro os adolescentes de fato procurarem o pronto socorro por este sintoma . Ele pode variar da simples experimentação a um comportamento mais recorrente que envolve risco progressivo de vida. Apesar do índice de gravidade e sofrimento, os adolescentes geralmente tentam esconder as lesões e a prática do “cutting” . Somente 50% dos casos procura alguma ajuda. O cuidado e atenção na hora certa pode prevenir um destino fatal no futuro. Muitas vezes o comportamento auto-agressivo se cronifica e agrava, adquirindo uma característica compulsiva, e crianças e adolescentes que se machucam repetidamente são um grupo de maior risco para suicídio em fases tardias da vida. Há o risco de que as auto-agressões se tornem um modo costumeiro de lidar com a angústia, sendo levado para a vida adulta. Nos pacientes do sexo masculino, o risco de evolução para suicídio é maior.
É moda?
Na internet , há sites que ensinam, estimulam e compartilham comportamentos de restrições alimentares, autoagressões e até suicídio. O meio em que o adolescente está pode encorajar ou protegê-lo contra a auto-agressão. Há um efeito de contágio em grupos de meninas que começam a se cortar, e a internet potencializa esta influência. A desumanização a que muitos estão sujeitos no contexto do abuso, do descaso, do abandono, faz pensar e sentir que a vida vale pouco.
É um pedido de ajuda.
O comportamento pode ter uma finalidade paradoxal. Muitas vezes os adolescentes contam que não se cortam para morrer , até mesmo dizem que praticam o “cutting” para canalizar sua angústia e continuar vivendo. Mas, mesmo que não haja intenção suicida, este comportamento deve ser levado a sério. Por um lado, mesmo um comportamento tão chocante como este pode fazer parte de um desajustamento temporário de prognóstico melhor, que responde bem ao manejo ambiental e suporte. Por outro, experienciar uma doença mental é o maior fator de risco para o problema, ao mesmo tempo que indica sua gravidade.
Os fatores de risco para a automutilação são muito semelhantes aos fatores de risco para tentar o suicídio: sexo feminino, precariedade socio-econômica, ser minoria ou transgênero, ter uma orientação sexual diferente da maioria, sofrer bulling na escola, ter histórico de abuso sexual ou físico, uso de drogas, álcool e ter alguma doença mental ( principalmente depressão e transtorno de personalidade borderline). Quanto ao suicídio: embora os homens o completem mais, as mulheres tem um número muito maior de tentativas não sucedidas. De todo modo, em nosso meio, terceira causa de morte entre os jovens, o suicídio é morte que pode ser evitada se o tratamento e o cuidado for estabelecido a tempo.
Além dos sinais mais óbvios de destrutividade contra si mesmo como o “cutting” e as intoxicações, outros sinais mais silenciosos podem nos ajudar a precisar a gravidade de um quadro adolescente: mudanças drásticas de humor, padrão de sono ou alimentação, perda de interesse pelas atividades e divertimentos habituais, queda do rendimento escolar, isolamento. Sintomas físicos como dores abdominais e de cefaléia são comuns. Lavar suas roupas separadamente, usar roupas de manga comprida , pulseiras para esconder as cicatrizes e evitar expor o corpo para os pais, bem como inventar explicações estranhas para as injúrias em sua pele são comportamentos que frequentemente se associam à prática do “cutting”. Guardar ou esconder gilete, tesouras ou até a lâmina do apontador e compasso escolar com o intuito de se cortar também acontecem comumente. O uso de substâncias também é presente em muitos casos de adolescentes que se cortam: em nosso meio as meninas vem fazendo uso de álcool cada vez mais cedo e de modo intenso e alarmante.
O que fazer?
A empatia é a chave para se comunicar com o adolescente, para que sinta conforto em compartilhar o que sente e o que se lhe passa. Reações excessivas, tão comuns no entorno, podem fazer sentir-se ainda mais sozinho. A escuta deve ser ativa e livre de julgamentos- só assim um canal de comunicação pode se abrir com aquele que sofre.
A prevenção está ligada a tudo que promova o bem-estar psicológico, sejam intervenções familiares, na escola, e a psicoterapia. É preciso reestabelecer a confiança e ajudar o adolescente a conhecer os gatilhos para o desejo de se cortar, desenvolvendo maneiras novas de lidar com a dor psíquica. Se houver transtorno mental associado, os cortes podem ter sido o caminho mais visível para fazer o pedido de ajuda – e a medicação psicotrópica bem indicada faz-se necessária. Como ouvir estes adolescentes?
O eu é corpo. Quem sou, o que sou, e me sinto sendo, começa com a representação psíquica de meu corpo.
A pele é um envelope, território de troca, de limite e de proteção. A pele delimita meu corpo e também delimita meu Eu.
Há dores da alma não consigo localizar, remediar tampouco. É angústia. Por vezes, um estado de não sentir-me real. Pode ser que então a dor me lembre que tenho um corpo – existo. Sou concreto, sou real.
Não se assuste comigo.
Eu escondo meus cortes, mas quero me comunicar. Estou desconfiado, mas espero que você me encontre. Não sei o que sinto, não tenha medo do meu silêncio.
O que há por trás destas feridas?
Podemos olhar para o que elas são em termos do Real, : excitação violenta e dor que toca o sensório do corpo. Há explicações biológicas para o alívio que trazem.
E, ao mesmo tempo, poder vê-las é ter algum controle sobre este intenso desprazer. Imaginariamente as feridas estão fora, a dor as localiza e delas emana. Posso ser as marcas, o sangue, posso ser o segredo.
Simbolicamente os cortes são Cortes, barram o sofrimento, marcam meu pertencimento, meu não pertencimento. Minha pele é minha boca e diz ao mundo o que não tenho palavras para dizer.
Um adendo: Em seu livro “Borderline: Uma Outra Normalidade” Nahman Armony traz a idéia de uma nova subjetividade: o borderline como paradigma do homem atual , “hipermoderno”, assim como o neurótico foi um dia o paradigma do homem freudiano, pautado pela repressão. O homem atual, com suas valências identificatórias em aberto, é um homem em devir, homem poroso, que se organiza, e (des)organiza à sua maneira.
Continuamos tentando ajudar nossos pacientes a simbolizar, achar palavras. Dizer-se. Mas os modos de dizer mudam com os tempos. Que possamos escutar sem preconceito as novas identidades que surgem na clínica. Alguns meninos e meninas e menines que permanecerão nesta outra normalidade e cujos cortes podemos ajudar que se transformem em tatuagens, mensagens, piercings, poemas ou gritos. E o que mais for possível. A música acima, de Paulinho Moska, fala deste ser hipermoderno, móbile no furacão. Vale ouvir, com toda atenção!!!
Pois, como sempre, os artistas saem na frente, captando o mundo.
(Obrigada, Maria Helena, a artista do nosso grupo, que me deu a idéia das pinturas de Henri Matisse).
Desejo de filho
/em Adolescência, Cinema e Cultura, Destaque, familia/por Arianne AngelelliO que leva um sujeito a desejar ser pai ou mãe? Nos filmes Juno ( Jason Reitman, 2007) e Mais uma chance (Tamara Jenkins , 2018) ; o tema se coloca.
São filmes diferentes mas seus enredos se tocam em alguns pontos. Em “Juno”, fala-se da gravidez na adolescência, seus dilemas. Quando a mocinha decide abortar, falta coragem. Ela decide doar o bebê. Encontra então um casal bacana que está à procura de um filho . Em “Mais uma chance”, há também um casal infértil que oscila entre a ideia de adoção e a busca de tratamentos para conceber. Este casal irá recorrer à ovodoação por conta da idade da mãe, e a doadora será uma sobrinha por quem sentem afinidade.
No primeiro filme, Juno vai escolher o casal que receberá seu bebê por meio de um anúncio. Ao conhecê-los se encanta : são a família que ela idealiza, ela que vive com pai e madrasta e se sente negligenciada pela mãe.
Já a ovodoadora do filme ” Mais uma chance ” é uma pessoa da família. Apesar dos contextos diferentes, ambos os filmes iluminam as triangulações que acontecem nestas situações peculiares. Quando o bebê que vai chegar promete vir por meios diferentes do convencional, a cegonha faz um pit stop que custa caro (literal e psiquicamente) para as pessoas envolvidas.
Escolho aqui falar dos personagens femininos dos filmes para iluminar aspectos das suas dificuldades e alegrias na relação com a maternidade.
Juno é a personagem principal do filme que leva seu nome. Tem 16 anos e engravida do namorado, num deslize. Descobre a gravidez num teste que faz no banheiro de um mercadinho. Nos seu livro “Adolescência em cartaz” Diana e Mario Corso falam sobre ela e especulam sobre a razão inconsciente que pode ter ocasionado este delize… uma tentativa de reparar em ato uma ferida aberta lá atrás, quando Juno foi abandonada pela mãe : ” em nosso entendimento, Juno repete sua história de rejeição e adoção por parte de outra mãe. Sua decisão foi a de manter a gravidez e encontrar alguém que deseje e receba este bebê. Pensa em doá-lo a uma mulher estéril ou a um casal de lésbicas. O desejo por um filho, tão importante para a descartada Juno, encontra, tanto na mulher que adota o recém-nascido quanto na atitude irrepreensivelmente materna da madrasta, uma acolhida que compensa a falta de sua própria mãe.”
E por sinal Bren, a madrasta de Juno, é uma mãe melhor que a encomenda! Amorosa e firme, consegue, ao lado do pai da adolescente, apoiá-la na decisão de entregar sua criança para adoção. Sem recriminações, sem exclusão, sem paternalismo- o que comumente encontramos nas famílias que se deparam com a gravidez indesejada nesta fase da vida. Bren, como madrasta, presentifica o aspecto simbólico da filiação que não precisa passar pela carne para se concretizar. Ela se responsabiliza pela adolescente e assume o cuidado dela junto ao pai, não sem sofrer junto com Juno o peso da difícil decisão.
A outra personagem feminina do filme “Juno” é Vanessa, a mãe que ela escolhe para dar o seu bebê. É casada , organizada, bem sucedida- mas não consegue engravidar . Faz um casal bonito com Mark: casal que sucumbe ante à dificuldade encontrada no projeto de adoção . Apesar do perfeccionismo e da intensa projeção narcísica sobre a cobiçada criança, Vanessa sofre com o descompasso entre seu desejo de filho e a postura do marido. Ele parece ter fixações na adolescência e não se sente à altura do projeto “pai”. Quando vai receber o bebê de Juno, Vanessa já está sozinha. Recebe emocionada a criança em seus braços e pergunta à Bren, que a observa ternamente: ” Como pareço?”, ao que Bren responde: ” Como uma nova mãe apavorada!” Nesta cena o círculo se fecha: as duas mães adotivas se encontram por meio do ato de Juno de doar o bebê . Bebê gerado pelo desejo inconsciente de restaurar a união perdida com uma mãe que não há… Juno não tinha o desejo de cuidar de um filho , ela queria ser cuidada. Ao perceber isso pôde ter o apoio de sua família para lidar com a situação , aprender com a experiência.
Além da gestação como passagem ao ato, que foi o que aconteceu com Juno, uma gravidez pode ter muitos outros sentidos que não o desejo de cuidar de um filho. ” Para a psicanálise, uma passagem ao ato é algo que tem uma motivação inconsciente para acontecer”, dizem Mario e Diana Corso. Os autores falam também da consolidação da imagem feminina e do desejo de dar um bebê aos pais como motivações inconscientes para a gravidez. Todo desejo de filho é um amálgama de muitos outros desejos nem sempre compreendidos pelo sujeito.
Agora vamos falar de outras três mulheres, personagens do filme “Mais uma chance ” ( Private life ) . Rachel, escritora engajada, é a personagem que aqui sofre com a dificuldade de engravidar. Num diálogo que tem com o companheiro percebemos a culpa por ter adiado o projeto de ser mãe por conta da profissão – agora sente que é tarde demais. Ela vai se submeter ao processo desubjetivante dos tratamentos de fertilidade, nos quais percebemos o sofrimento psíquico que os procedimentos carregados de impessoalidade lhe trazem. Seu cabelo desalinhado, as cenas de nudez, as alterações de humor e o desconforto que parece sentir retratam o custo que o desejo de filho lhe traz. O seu corpo erótico reduzido a um corpo- coisa, máquina que teima em não funcionar. Ela oscila mas não desiste mesmo quando, no final de todo o processo, passa pelo luto do fracasso da inseminação artificial. A alegria de estar com a sobrinha e algumas falas do filme fazem pensar que Rachel e o esposo desejam uma criança como uma mudança em suas vidas e para renovar a própria vida. Aqui parece haver o desejo de cuidar de alguém. Porém, apesar do humor presente em muitas cenas, o patético da situação de reprodução assistida e da busca de um filho desnuda a fragilidade de Rachel e sua tristeza. Sua feminilidade e potência é posta à prova; ela que é uma pessoa criativa se sente desvitalizada e acuada diante da situação. Rachel também se encaixa na descrição que o casal Corso faz quando fala do problema de Vanessa :
“Dos rivais que a libertação feminina tem enfrentado, os mais indomáveis parecem ser os ritmos biológicos. Ficamos prontas para engravidar, com a fertilidade a ponto de bala, o corpo viçoso e flexível, quando a cabeça ainda tem muitíssimas outras coisas com o que se ocupar. Depois, quando certas escolhas já foram feitas, e algumas garantias nos tranquilizam, aí já estamos fisicamente mais frágeis para conceber e parir. Se então quisermos ser mães, necessitaremos repouso e assistência médica.”*
Sadie é a moça que tem o tal “corpo viçoso e flexível” e a “fertilidade a ponto de bala”, com a cabeça ainda cheia de projetos e coisas para resolver antes de ser mãe. Sobrinha do casal, deseja ser escritora como a tia e aceita doar-lhe seus óvulos . Embarca no projeto vivenciando-o como uma oportunidade de fazer algo de bom : e se perde no caminho pelo peso psíquico que toda a situação representa para ela . Há uma cena em que diz para Rachel que irão ter um bebê juntas- pois será seu óvulo a ser inseminado no ventre da outra. Esta cena é carregada de sensualidade e mostra a intimidade das duas mulheres como um casal e também como mãe e filha, numa perigosa realização imaginária dos desejos incestuosos de Sadie com esta figura materna e dupla de si que a tia parece representar. Para Freud, a descoberta da fase pré-edípica na menina equivale ao encontro de toda uma civilização soterrada sob a escolha heterossexual da mulher: pois o primeiro amor da menina, como no caso do menino, é a mãe. Dar um bebê à sua mãe é uma fantasia que Sadie parece estar próxima de realizar- e é neste momento que a moça se apaga diante do desejo da outra.
E se a tia Rachel permanece como figura idealizada e imitada pela Sadie, a mãe da moça, Cynthia, é por ela desqualificada. Cynthia é a terceira personagem do filme de que quero falar.
Ela está chegando à menopausa e se depara com a decisão da filha de doar seus óvulos. Ambas tem uma relação difícil, estão muito afastadas e com dificuldade de comunicação. Cynthia não valida a escolha profissional da filha que também a critica, que a confronta. Cynthia não compreende a obstinação de Rachel em seu desejo de engravidar, e tem muita dificuldade de aceitar o procedimento da ovodoação. Ficamos sabendo que ela teve a filha muito nova e isto acarretou-lhe muitos sacrifícios . Ela faz alguns movimentos para se aproximar mas o processo adolescente de Sadie dificulta o encontro das duas: a moça está buscando se diferenciar da sua mãe e a mãe também passa por um momento difícil, encarando o ninho vazio sem ter tido chance de outras realizações pessoais.
Outro círculo se fecha aqui: Sadie liga as duas mulheres e cada uma fez uma escolha na vida… ambas começam a envelhecer sentindo falta daquilo que não realizaram. Cynthia é o negativo de Rachel, Rachel é o negativo de Cynthia.
O que todas essa mulheres: Juno, Vanessa e Bren, Rachel, Sadie e Cynthia tem a nos ensinar? São mulheres do nosso tempo às voltas com o dilema da maternidade, e o que é ser mulher. Juno e Sadie passam pela adolescência, Rachel e Cynthia envelhecem, e tem de fazer lutos. Rachel está com dificuldade neste luto- está num impasse, congelada. É o que a cena final do filme deixa transparecer. Vanessa também passa pela crise no casamento que a injunção de se tornar pais representa. Vemos mulheres passando por processos de transformação . Juno recua diante da maternidade, Vanessa avança: ambas crescem no processo. Rachel ainda precisará de mais tempo para resolver o impasse em que se encontra. Sadie sai um pouco estropiada da experiência da ovodoação mas (com ajuda dos tios) prossegue em seu caminho criativo. A generosa Bren, avó por um segundo, transmite à outra mulher apoio e segurança.
Cada uma se vira como pode.
Eu já tinha comprado o livro de Contardo Caligaris e Maria Homem “Coisa de menina” mas não havia lido. Com a morte dele, corri para abrir o livro, ainda dentro do plástico- pequenas alegrias de sábado à noite na pandemia. É bom poder escutar a voz de Contardo e Maria falando que não nascemos mulher, nos tornamos mulheres. E por não sermos somente bichos fêmeas reprodutoras, por termos de significar para nós o que significa ser -ou não ser- mulher e mãe, sempre haverá muitas viscissitudes neste processo. A origem da vida e a diferença entre os sexos permanecem sendo grandes mistérios para nós.
Diante do mistério, toda ciência será sempre pouca- e sempre um pouco louca.
* Juno | Mario & Diana – Psicanálise na vida cotidiana (marioedianacorso.com)
Em mundos interiores
/em Destaque/por Arianne Angelelli“Em um Mundo interior” é o primeiro filme brasileiro sobre a temática do Autismo (TEA) , dirigido por Flávio Frederico e Mariana Pamplona. Produzido pela Kinoscópio, o filme participou da seleção oficial do Festival É Tudo Verdade 2017.
No dia 27/03/2021 a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e o grupo Prisma* de psicanalistas pesquisadores do autismo organizaram uma mesa sobre o filme , e fomos chamados para participar. Depois de ouvir os diretores e os pais de um menino autista, pudemos trocar pensamentos e experiências. Falamos da escola, dos dilemas do diagnóstico, das particularidades sensoriais das crianças, da linguagem e do acompanhamento fonoaudiológico, da inclusão e das questões legais e políticas da lei 12764, de 27 de dezembro de 2012. Esta lei estende à pessoa autista os mesmos direitos legais anteriormente garantidos às pessoas com deficiência.
O filme “Em um mundo interior” acompanha a vida de 5 crianças, um adolescente e um adulto autista. Conforme nos contam os diretores, foi um trabalho de dois anos , participando do dia a dia deles, com suas famílias, em sua rotinas, seus tratamentos e na escola. A história dessas crianças é narrada aos poucos, levando-nos a um mergulho em suas vidas. É um filme de observação, que abrange uma grande variedade de pessoas, pensamentos clínicos e realidades. O transtorno do espectro autista, como entendido hoje, é um amplo guarda-chuva que inclui pessoas com inteligência normal, acima da média e abaixo da média, que tem linguagem verbal ou não, com diferentes graus de dependência ou autonomia na vida. Cada pessoa autista tem suas particularidades : dentro do “espectro” encontramos sujeitos muito diferentes entre si.
Quando um autista nos fala e conta como percebe e sente o mundo, como pensa e processa as informações, como se dá conta de seu corpo e do outro aprendemos muito sobre o seu modo de ser . Hoje podemos falar em termos de neurodesenvolvimento típico ou atípico. Evitar pensar o autismo dentro de uma ótica deficitária é o que os autistas nos pedem. Como nos diz Temple Grandin : ” eu sou diferente, não menos”.
Uma diferença bastante presente em pessoas autistas se dá no campo da sensorialidade. O DSM V ( manual de classificação americano dos transtornos mentais) cita na descrição do quadro a “hiper ou hiporreatividade à entrada sensorial ou interesses incomuns em aspectos sensoriais do ambiente “. Hoje acreditamos que esta sensorialidade diferente pode ser uma dos maiores motivos de sofrimento para as pessoas autistas, e muitas pesquisas das neurociências estão sendo feitas para tentar compreende-las melhor. É comum encontrar nestas pessoas alterações não somente quantitativas, mas qualitativas e de integração sensorial. Por outro lado, no campo da psicanálise, estamos observando alguns fatos muitos interessantes que relacionam a constituição da imagem do corpo e do ego corporal com as relações objetais precoces. Por isso, nas intervenções com os bebês com risco de autismo o corpo é cada vez mais levado em conta. Busca-se o atendimento das alterações e sofrimentos sensoriais no sentido de promover uma sincronização polissensorial. No desenvolvimento do bebê, a presença do outro, do cuidador, é que torna possível a autoregulação e a constituição de um sentimento de existir , em que corpo e psiquismo estão integrados. Como podemos perceber neste texto de uma psicanalista francesa:
“Durante esta troca que tanto o bebê quanto a mãe procuram, o bebê é levado pelos braços da mãe, que apoia suas
costas e sua nunca com doçura, firmeza e ardor. Assim, a constituição das costas, deste segundo plano vertical de segurança, faz-se em conjunto com a instalação do olhar. Como se as costas se tornassem o fundo dos olhos e constituíssem um portador de segurança durante a criação do laço entre um e outro pelo olhar. É nestas condições que a tridimensionalidade pode se instalar. O corpo torna-se capaz de guardar boas experiências e interiorizá-las.” **
Vemos nestas pequenas frases como a sensação de tridimensionalidade adquirida pelo bebê – e a própria sensação de ter costas- se relaciona com a troca de olhares e o toque materno. Nos bebês com risco de autismo, viscissitudes neste processo podem acarretar desvios no próprio neurodesenvolvimento. Sabemos que alguns bebês apresentam dificuldades que os impedem de receber este toque e este olhar por parte dos seus cuidadores. Assim, ajudar estes bebês em suas dificuldades torna possível que o ciclo benigno do amor se reestabeleça.
Ainda há muito para aprender sobre a sensorialidade no autismo.
E por falar em sensorialidade, na mesa que aconteceu com os colegas da sociedade de psicanálise , as escolhas musicais do início e do fim do filme foram muito lembradas. A música é uma forma de linguagem e as canções escolhidas comunicam alguns aspectos do documentário – o início que nos coloca em contato com a problemática do autismo e o final que traz uma mensagem de esperança nas conquistas das crianças. As canções nos tocam de muitas formas, são linguagem. Nos tocam sensorialmente por causa da melodia, do ritmo, das entonações da voz do cantante, e também podem ser escutadas simbolicamente, por sua letra. Pra além do texto, a música “O Quereres”, que abre o filme, fala da ferida narcísica dos pais das crianças atípicas ( “onde sou só desejo- queres não”) . A canção tem um tom de reclamação, de lamento queixoso- o confronto com a alteridade expresso pelas antíteses do texto e pela melodia , dissonante, altissonante, que por vezes parece um grito. Na repetição dos versos, antíteses, e pela própria construção harmônica da música, estresse adiado de resolução, sentimos uma tensão : tensão do autismo , do impasse do encontro com o diferente.
Já a canção escolhida para o fim do filme, Paciência, de Lenine, tem um outro andamento. É uma música num tom menor, lenta, e nos pede em sua letra para dar tempo ao tempo. Paciência. Ela diz: “ enquanto o tempo acelera e pede pressa , eu me recuso. Enquanto todo mundo espera a cura do mal, eu finjo ter paciência”.
A escolha das duas músicas neste filme foi muito feliz. No início O quereres fala uma coisa que escutamos sempre, cada vez que uma criança chega no nosso consultório trazida pelos seus pais com este tipo de sintoma, o sintoma autista. Há um descompasso entre a expectativa dos pais e a criança. Há um desencontro, há dor. O filme fala do processo da descoberta do diagnóstico em cada família. Neste processo, algumas famílias se sentiram amparadas, outras não. Há os pais que se queixam de não terem tido a diferença do filho reconhecida pela pediatra. Há a mãe que diz que saiu em busca de tudo o que pudesse enlaçar a filha após saber que por causa da plasticidade neural seu cérebro eliminaria os neurônios não utilizados até os 3 anos. Na fala dessa mãe a gente percebe o senso de urgência, na fala dos outros pais, a idéia da negligência. Como enganchar estes discursos com a paciência que estas crianças precisam para poder desabrochar? Como enganchar estes discursos com a necessidade de uma certa capacidade negativa que a gente acredita que tem de estar presente na abordagem daqueles que se propõe a atender essas crianças? É a mensagem transmitida pela musica de Lenine- pedido de um autista que precisa de tempo. Diferente do grito do Caetano, esta canção pede paciência, pede tempo, pede espera.
Há 3 palavras para pensar quando falamos de autismo. A primeira é espectro. O espectro autista é um grande guarda-chuva. Aqui podemos pensar nas caracteristicas autistas tendo um aspecto dimensional no humano. Ou seja, haveria um continuum, um borramento entre condições. Hoje com o conceito de espectro consideramos como autistas pessoas que ontem não consideraríamos. Pessoas com características mais esquizoides, mais narcísicas. Por outro lado, a categoria “psicose infantil” desparece das classificações. É como se não houvesse diferença entre essas condições.
Mas a palavra espectro também traz a ideia de um espirito maligno, uma assombração, fantasma. Um dos meninos do filme descobre o nome do que ele tem depois de anos : ele encontra um folheto no banco do carro e diz “mãe, eu sou isso?” . Ele vinha sendo cuidado sem dizer de si mesmo “eu sou Asperger”. Quando alguém diz “ Eu sou Asperger” onde está a sua subjetividade? Esse é o lado perigoso do diagnóstico. Como uma família se apropria, que uso ela faz do diagnóstico da criança? Ele vai ser usado para ajudar a família e a criança ou para assombrar e fechar as portas , para tirar a esperança de que mudanças podem acontecer?
Em medicina a gente usa o termo “fechar um diagnostico”. Então o que queremos dizer quando um diagnóstico é fechado? Fechado é a segunda palavra que eu quero destacar aqui.
(Como psiquiatra, essa é a angústia que tenho todas as vezes, absolutamente todas as vezes, que sou chamada a dar , ou fechar, um diagnóstico dessa natureza. Psiquiatra infantil, meu lugar de fala, traz um um contrato implícito: eu dou diagnóstico, eu proponho tratamento e as vezes prescrevo medicamento para a criança. Mas temo que o diagnóstico venha para fechar, para trazer um atalho que interponha este nome entre a criança e seu futuro. Todas essas descobertas da neurociência, sobre a sensorialidade, os modos diferentes de aprender, os aspectos da cognição social e dos circuitos atencionais devem ser campos de abertura para a compreensão da criança. Não devem vir para reduzi-la a um cérebro disfuncional. O momento do diagnostico é muito delicado. Os pais estão doídos, estão dentro da lógica do grito da música do Caetano. Querem palavra, querem escuta e querem direção.)
Após o momento do diagnóstico, vem a pergunta: o que fazer?
No filme vê-se projetos terapêuticos diferentes sendo realizados para cada criança. Pensar um projeto terapêutico é um desafio , e isso é mostrado no filme. Existem poucos lugares “prontos” para encaminhar uma criança, lugares únicos que reúnam os profissionais para trabalhar com ela em diferentes modalidades de atendimento. Vê-se no filme que os pais se associaram em Recife para trazer profissionais para atender seus filhos , fundando uma instituição. Júlia, uma das crianças, frequenta o Lugar de Vida, um dos poucos lugares em são Paulo com equipe muiltidisciplinar que leva em conta o pensamento psicanalitico. Encontramos no filme o atendimento fonoaudiológico, fisioterápico, o acompanhante terapêutico, o atendimento na escola, em diferentes abordagens. É muito interessante ver como as famílias foram tentando organizar uma rede de pessoas para melhor cuidar de seus filhos. Na verdade há muitas necessidades e cada paciente tem questões diferentes. Questões motoras, de sensorialidade, de comportamento, de aprendizagem.
Pensar um projeto terapêutico é levar em conta muitas variáveis. Os recursos são limitados, não só do ponto de vista financeiro. É caro bancar uma equipe multisciplinar particular para o seguimento de uma criança, mas também é preciso definir prioridades, pontos de urgência, encontrar os recursos disponíveis. Os equipamentos públicos, como os Caps infantis, muitas vezes tem grandes filas de espera. É preciso que a equipe que atende a criança possa se conversar. Senão o atendimento do autismo pode ficar completamente esquizofrênico.
Tempo e paciência: é preciso amparar e cuidar dos pais.
(Eu tenho medo dos rótulos . Tenho recebido atualmente no consultório uma demanda nova de adultos que chegam dizendo que se descobriram autistas. Mais uma vez , penso- esse nome veio para fechar ou abrir uma compreensão da pessoa sobre si mesma?)
Finalmente, a terceira palavra para lembrar aqui é a palavra transtorno. Usamos transtorno, na psiquiatria moderna, como uma palavra que se contrapõe à ideia de doença. O objetivo é pensar o autismo não como uma doença, e sim como um conjunto de alterações de comunicação, comportamentos. Busca-se uma compreensão maior , na idéia de transtorno, como variações em relação a uma média e que causam sofrimento significativo para a pessoa. Mas esta palavra transtorno também traduz o incômodo imenso que estas pessoas (nos) provocam. O filme mostra um rapaz adulto com autismo e deficiência mental que é colocado num cercado, quase uma jaula. É a própria cena da segregação, fantasma que ronda a história da psiquiatria como a escravidão ronda , de modo espectral, as relações de classe neste nosso país extremamente desigual. E o que se faz com o que transtorna? Para quem precisamos de tratamento? Para a criança? Para os pais ou para a sociedade que quer normalizar a criança?
Podemos, entre o grito de Caetano e o pedido de Lenine, ouvir as vozes de sete pessoas e seus pais , professores, terapeutas- circulando entre as aberturas e os fechamentos, o transtorno e a acomodação, a aceitação, os possíveis e os impossíveis do autismo.
Agora gostaria de trazer aqui um trecho de Andre Green, numa conferência de 1996 , sobre Winnicot. Ele faz uma citação do livro Natureza Humana e diz “ Há um Winnicott profético neste livro”. Seguem as palavras de Winnicott ( grifo meu)
Eu espero por este dia ( o reconhecimento da psiquiatria infantil) e o venho esperando ao longo de três décadas. Mas o perigo é que o lado doloroso deste processo seja evitado, num esforço para encontrar um atalho; as teorias serão reformuladas , propondo que os distúrbios psiquiátricos não são produzidos por conflitos emocionais, mas pela hereditariedade, constituição, desequilíbrio hormonal, ambientes brutais e inadequados!
Diz Green:
Na época Winnicott não podia ter conhecimento das neurociências ou das ciências cognitivas. Se as palavras estavam faltando, as coisas já estavam ali.
Winnicott é profético por intuir este atalho que percebemos claramente hoje em relação ao conceito e ao tratamento dos transtornos mentais da infância. A psiquiatria infantil é muito recente e temo que já esteja morrendo mesmo, no nascedouro. Sonhada por Winnicott, foi construída também por pessoas como Kanner e Asperger que observaram crianças diferentes e as descreveram . Antes, todas essas crianças eram consideradas débeis mentais. Crianças psicóticas, autistas, com todo tipo de síndrome ou deficiência mental eram segregadas e consideradas idiotas, “não educáveis”. Aprendemos muito. Mas ainda temos dificuldade em entender aonde está o problema de hardware, o problema cerebral, genético, hereditário, ou quais sejam, e quais são as questões de software… aqui onde cabe o investimento no que conhecemos das teorias das relações de objeto . Onde o jeito de reclamar a criança para o encontro pode fazer muita diferença no destino dela.
Acalantos
/em Destaque, familia, Maturidade/por Arianne Angelelli“meu coração me acordou chorando ontem à noite
o que posso fazer eu supliquei
meu coração disse
escreva o livro “
Rupi Kaur ( Outras jeitos de usar a boca, 2014 )
Esta história começa com a perda de um vovô querido que me comoveu muito, colhido pela Covid. E este sobressalto no peito. Meu coração disse: escreva. E então a idéia de um acalanto me veio : a composição de Aldir Blanc e Cristóvão Bastos que fala disso, de avós e netos. Fiz a postagem ( https://www.gestoespontaneo.com.br/avos/) mas meu coração não sossegou.
Porque no meio do caminho da minha busca musical, navegando na internet, dei em outras terras . Topei com um outro avô e um terceiro acalanto, que não conhecia. Navegando na internet também cheguei à Bahia
e ouvi:
Ou seja: encontrei Caetano, vovô moderno, observando seu neto Benjamim aprendendo a dormir! Cantava assim:
O autoacalanto de Benjamin
Que é, por enquanto, caçula de mim
É um deslumbramento
Ele emula o canto de um querubim, curumim
O que é mesmo que isso me ensina?
Um ser que a si mesmo se nina
É um quase lamento
Já é nota de tom
E tem cor de jasmim
Eu nunca tinha visto nada assim
O alumbramento do avô reparando no neto que começa a compor alguma coisa de si, quase um lamento, acalentando a si próprio… eu também não tinha visto nada assim. O avô não só observa o neto, como traduz o que vê, na letra da canção – e o imita. O autoacalanto que ajuda Benjamim a dormir é por seu avô reproduzido, brincado, na própria canção, nas vocalizações que ouvimos após os versos finais.
Coisa de vô e neto.
Quem tem bebê pequeno sabe que aprender a dormir sozinho não é fácil. A possibilidade de um bebê se autoacalentar, principalmente em algumas fases em que se angustia mais de estar separado da mãe : não é pouca coisa não! A nossa colega Gilca nos fala disso em seu post ( https://www.gestoespontaneo.com.br/o-sono-dos-bebes/).
Assim, o que o avô percebe, e faz com que ele se en-cante, é o uso que Benjamin faz das vocalizações para ninar-se a si mesmo.
Este acontecimento psíquico não escapou dos olhos de Winnicott.
Em “O brincar e a Realidade” o autor nos conta desta descoberta e inaugura um campo muito rico de pensamento para a psicanálise . Ele nomeia de objetos transicionais aquelas primeiras posses dos bebês que podem ser o ursinho, o “naná”, ou até a ponta de um cobertor e que os ajuda a se consolar e ficar bem sem a presença da mãe. Ele nos ensina que mesmo palavras que o bebê canta ou repete podem ter para ele um valor transicional, no sentido de permitirem um intercâmbio entre ele e o mundo, confortarem, reassegurarem, na medida em que encarnam ,para ele, a mãe. Estes objetos estão numa área intermediária que “mistura” seu mundo interno e a realidade, uma área de verdadeiro brincar, que ainda não é para o bebê pura imaginação ( pois o objeto tem de estar lá na sua concretude) mas já denota uma capacidade de ir além da concretude das coisas, uma qualidade do que em nós é o psiquico e que nos bebês pequenos está em estado nascente.
Um avô que observa esta coisa acontecendo em seu neto e a torna música nos lembra o quão deslumbrante pode ser a percepção, para o adulto, deste acontecimento. O poeta, o artista, é aquele que olha uma coisa corriqueira, comum, e se deslumbra. Winnicott vai entender a cultura como uma derivação dos objetos transicionais do bebê: na medida em que os espaços de troca culturais são lugares privilegiados onde ou Eu e o mundo se misturam sem que se precise abrir mão da fantasia e da sensação de ter criado, inventado, o mundo. A cultura é o sonho compartilhado com o mundo real.
Vovô Caetano faz a mesma coisa que Benjamin quando compõe sua canção.
Coisa de vô e neto.
Agora vamos rodar o filme para uns cem anos atrás. Há cem anos , também assolado por uma epidemia, um outro avô escreveu sobre seu neto, a partir da observação dos acontecimentos psiquicos que podia inferir das suas brincadeiras. A história é mais ou menos assim.
Este avô foi passear na casa da filha ( dizem que era a sua filha predileta) e observou o neto brincando com um carretel. Ele sacou, como Caetano, que as vocalizações da brincadeira estariam representando a imagem mental da continuidade-descontinuidade da presença materna! A esta altura você já deve estar imaginando que o vovô aqui era o Freud.
Sobre o relato da brincadeira do neto, transcrevo abaixo suas próprias palavras:
“As diferentes teorias sobre a brincadeira das crianças … esforçam-se por descobrir os motivos que levam as crianças a brincar, mas deixam de trazer para o primeiro plano o motivo econômico, a consideração da produção de prazer envolvida. Sem querer incluir todo o campo abrangido por esses fenômenos, pude, através de uma oportunidade fortuita que se me apresentou, lançar certa luz sobre a primeira brincadeira efetuada por um menininho de ano e meio de idade e inventada por ele próprio. Foi mais do que uma simples observação passageira, porque vivi sob o mesmo teto que a criança e seus pais durante algumas semanas, e foi algum tempo antes que descobri o significado da enigmática atividade que ele constantemente repetia.
A criança de modo algum era precoce em seu desenvolvimento intelectual. À idade de ano e meio podia dizer apenas algumas palavras compreensíveis e utilizava também uma série de sons que expressavam um significado inteligível para aqueles que a rodeavam. Achava-se, contudo, em bons termos com os pais e sua única empregada, e tributos eram-lhe prestados por ser um “bom menino‟. Não incomodava os pais à noite, obedecia conscientemente às ordens de não tocar em certas coisas, ou de não entrar em determinados cômodos e, acima de tudo, nunca chorava quando sua mãe o deixava por algumas horas. Ao mesmo tempo, era bastante ligado à mãe, que tinha não apenas de alimentá-lo, como também cuidava dele sem qualquer ajuda externa. Esse bom menininho, contudo, tinha o hábito ocasional e perturbador de apanhar quaisquer objetos que pudesse agarrar e atirá-los longe para um canto, sob a cama, de maneira que procurar seus brinquedos e apanhá-los, quase sempre dava bom trabalho. Enquanto procedia assim, emitia um longo e arrastado “o-o-o-ó”, acompanhado por expressão de interesse e satisfação. Sua mãe e o autor do presente relato concordaram em achar que isso não constituía uma simples interjeição, mas representava a palavra alemã “fort.” Acabei por compreender que se tratava de um jogo e que o único uso que o menino fazia de seus brinquedos, era brincar de “ir embora” com eles. Certo dia, fiz uma observação que confirmou meu ponto de vista. O menino tinha um carretel de madeira com um pedaço de cordão amarrado em volta dele. Nunca lhe ocorrera puxá-lo pelo chão atrás de si, por exemplo, e brincar com o carretel como se fosse um carro. O que ele fazia era segurar o carretel pelo cordão e com muita perícia arremessá-lo por sobre a borda de sua caminha encortinada, de maneira que aquele desaparecia por entre as cortinas, ao mesmo tempo que o menino proferia seu expressivo “o-o-ó”. Puxava então o carretel para fora da cama novamente, por meio do cordão, e saudava o seu reaparecimento com um alegre “da” (ali). Essa, então, era a brincadeira completa: desaparecimento e retorno. Via de regra, assistia-se apenas a seu primeiro ato, que era incansavelmente repetido como um jogo em si mesmo, embora não haja dúvida de que o prazer maior se ligava ao segundo ato.
A interpretação do jogo tornou-se então óbvia. Ele se relacionava à grande realização
cultural da criança, a renúncia instintual (isto é, a renúncia à satisfação instintual) que efetuara ao deixar a mãe ir embora sem protestar. Compensava-se por isso, por assim dizer, encenando ele próprio o desaparecimento e a volta dos objetos que se encontravam a seu alcance.” ( Freud- Além do princípio do prazer -1920).
Quando publicou este texto, em 1920, contando a história da brincadeira do neto, Freud havia acabado de perder sua filha Sophie, a mãe deste garotinho, para a gripe espanhola!
Entre Freud, Winnicott, e hoje, muita coisa mudou e muita coisa permanece a mesma.
Cem anos depois, cá estamos nós, assolados por uma nova pandemia, que nos levou muitos avôs ( inclusive o vovô Aldir Blanc), assim como no passado a gripe espanhola levou Sophie. Por que o texto de Freud permanece atual?
Aqui está um avô que observa. Diferente de Caetano, que compôs uma musica , este avô também tentou entender, traduzir, as vocalizações de seu neto e o nascimento de algo psiquico que aquilo representava. Este mesmo homem, assolado pela dor da perda da mãe deste garotinho, publicou no mesmo ano desta morte um trabalho profundo e audacioso ( Além do principio do prazer) onde tentou entender a natureza da repetição no acontecer psíquico. É neste trabalho que ele fala desta brincadeira do carretel. O que ele não fala, e hoje podemos pensar, é que na medida em que escreve também brinca, como seu neto, sentindo falta de sua amada Sophie.
Ele , no decorrer do seu texto, termina por desenvolver idéias sobre a destrutividade que nos ataca por dentro- a qual chamou de instinto de morte. Ainda hoje, recorremos a este texto, lemos , relemos, na busca de entender essa onda de morte que nos assola. Este presidente que, sem máscara, nos assusta. Este vírus que parece mais ligeiro do que a gente, do que a nossa inteligência, nossa capacidade de fazer ligações.
E vamos tentando fazer ligações.
Ligar, desligar, brincar, simbolizar, escrever, compor. A história que começa com um avô perdido, chega na Bahia, encontra outro avô, coloca o Winnicott na caravela, volta cem anos do tempo, mais um avô, mais um neto, mais uma perda, outra pandemia. Conseguem me acompanhar nesta viagem?
(o que posso fazer eu supliquei
meu coração disse
escreva o livro )
No ano em que perdeu sua filha o avô Freud não fez uma canção – ele mesmo dizia não ser um cara muito musical- e sim escreveu um trabalho que nos encanta até hoje. Este trabalho com certeza fez parte do processo de Winnicott na formação da idéia do objeto transicional. Pensemos o bebê representando o processo de continuidade-descontinuidade da presença materna por meio do jogo do carretel. Pensemos Benjamin, ninando a si mesmo, cem anos depois. E entre Caetano e Freud, Winnicott- que não foi avô mas mesmo assim foi grande em descrever muitos alumbramentos no desenvolvimento das inúmeras crianças que observou ao longo dos anos da sua clínica.
Sim, coisa de avô e neto: um acalanto leva ao outro, e Freud aprende com seu neto! Sua escrita de “Além do principio do prazer” , iniciada antes, mas publicada no ano da morte da filha, também é uma elaboração da perda que sofre.
O que é esta combinação de amor tão poderosa ? Um dos terrenos mais férteis para estes acalantos e composições todas que nos ajudam, enfim, a compreender o humano . Para mim a psicanálise é isso.
E aqui estou euzinha- brincando de escrever no blog e reunir dentro de mim estes mestres que admiro.
Talvez o mesmo motivo que fez vovô Freud escrever, vovô Caetano cantarolar, e seus netinhos brincarem seja o que me move agora a postar, neste blog, uma certa costura de todos estes retalhos que me ajudam a pensar , resistir, lidar com este momento difícil da pandemia e as perdas que ela vem nos trazendo.
É também um autoacalanto…
( dedico este post à Elisa Cintra, que vem trabalhando conosco , em seu curso, o brincar. )
avós
/em Destaque, Maturidade/por Arianne AngelelliEm maio do ano passado perdemos para o Covid também Aldir Blanc, 73 anos, lá em Vila Isabel, onde quem é bacharel não tem medo de bamba. Psiquiatra como nós, formado em medicina, um dos maiores compositores, letristas, escritores, poetas brasileiros. Entre tantas composições que fazem já parte do nosso cancioneiro, da memória cultural do nosso país, algumas são menos conhecidas.
É o caso de “Acalanto pros Netos” , composta em parceria com Cristóvão Bastos.
Aldir contou numa entrevista (http://www.abi.org.br/entrevista-aldir-blanc/) que os netos para ele foram como flores brotando num deserto! Em suas palavras:
” Em outubro de 91, sofri um acidente de carro. Fraturei o fêmur de maneira incomum, fui submetido a uma séria cirurgia e, não por culpa dos excelentes médicos, fiquei com a perna dura. Após oito meses de cama, isso me arrasou e eu comecei lentamente a desistir. Não só de melhorar, mas talvez de viver. No ano seguinte, fui surpreendido com a chegada de três dos quatro netos, e a minha vida mudou inteiramente. Sei que a metáfora é batida, mas foi como se flores brotassem no deserto. “
Trago hoje aqui o Aldir para que suas palavras nos confortem em meio a este deserto que nos cerca, neste momento em que tantos vovôs e vovós estão partindo fora do combinado. O Aldir vovô escreveu este acalanto em que a sensação de continuar-se nos netos, flores no deserto , é poeticamente representada. A letra é tão linda, que transcrevo aqui:
Na primeira febre, a minha febre
E quem é quem pedindo proteção?
Ponho a mão na testa do meu neto
E é meu avô que está estendendo a mão
Nessa comunhão dos três
Eu sou avô do meu avô
Ele é o menino ali
E ri das confusões
Que o grande amor pode fazer
É um milagre essa multiplicação
De mãos e febres por buscar ternura
E então com medo de morrer
A fragilíssima trindade jura
Ficaremos sempre assim por perto
E quando meu neto tiver neto
Uma febre unindo o que passou
Dirá pro tempo: oi, meu avô.
É por aí: um piano em debussy
O morcego e o sapoti na praia dos coqueiros
O avô sou eu numa bicicleta
De canelas finas, mexe com as meninas
Explode a trovoada, a chuva canta
E a enxurrada leva todos nós
Fracionados sim, mas fusionados
Rumo ao delta, à queda, ao fim, à foz
E uma vez que voltaremos
Numa febre que menino-avô terei
Até o filósofo sorri
“é o mesmo rio. eu me enganei”
Escutem só:
É o mesmo rio…
Avô e neto fusionados, fracionados, pelo tempo que é eterno e não existe.
Mas o acalanto não termina! Uns anos depois, eis que Cristóvão Bastos recebe de Roberto Didio a letra de Acalanto pros Avós. Musicou na hora!
Uma linda continuação da própria idéia da continuação que a primeira letra trazia:
Quem me chamava pra brincar no chão
E viajava pela imensidão
Num cavalo alado de madeira
Me rodeava querendo atenção
Pousava o rosto no meu coração
Era noite azul com giz de cera
Quem escalava o time de botão
Também ganhava o céu no seu balão
Eu nem levantava da cadeira
Então corria em minha direção
Pegando a velha alma pela mão
Pra subir na jabuticabeira
Do meu pijama não largava, não
Adormecia noutra contação
Fábulas, no fundo, verdadeiras
O sol passava o braço no portão
Sanhaço vindo pela contramão
Minha rua amanheceu na feira
A luz sumindo, eu me sentindo mal
Sabendo que não estaremos sós
O grande amor partiu igual cristal
Consigo ouvir a voz dos meus avós
Cruzando o mesmo rio, sem avisar.
Querem ouvir? Aqui está.
Depois disso…fico já sem palavras.
CLANDESTINO
/em Destaque/por Viviane P.D. SalomoneFaltavam apenas trinta minutos para começar o espetáculo. Por trás da cortina abri uma pequena fresta para espiar a plateia, e para minha surpresa visualizei apenas duas cadeiras vazias no fundo da sala. Incrível como aquelas duas cadeiras foram suficientes para me paralisar. Senti um frio na espinha e um suor gelado escorrendo pelo meu corpo. Neste momento senti o intruso me visitar.
Como era de costume em todos os dias de apresentação, enquanto finalizava minha maquiagem, já não conseguia mais me reconhecer. Fui remetida para o dia de meu nascimento. Gestada como intrusa, intrusa por nascença: a fórceps. Não há fotos, mas o registro carrego comigo como uma cicatriz.
Quantos milhares de olhares não são suficientes para eu ser reconhecida ? Que diabos esses dois lugares me fazem tanta falta ainda, a ponto de me impedir, de me suspender da vida. Olhares que não puderam ser acolhidos, olhares que não puderam ser refletidos em sua própria imagem.
A garganta seca e a respiração fica mais curta. Dizem que gargarejo com água morna, sal e gengibre ajuda. E não é que a sabedoria popular está certa. Já sinto o ar penetrar dentro de mim com esse simples cuidado.
Faltam apenas dez minutos para começar quando ouço o primeiro sinal tocar. A plateia barulhenta começa a se acalmar. Dentro de mim procuro um lugar, um colo talvez. E como se uma mãe interna me fizesse um afago me trazendo confiança.
Cinco minutos depois, toca o segundo e o silêncio se faz presente. Esse é um momento de estar só. Como é difícil conquistar a capacidade de ficar só sem ter vivenciado a presença viva e real de alguém. Os minutos se tornam eternidade neste instante. Puxo a respiração o mais fundo que consigo e vou procurando soltar o ar devagar.
Quando toca o terceiro sinal, as luzes se apagam, abrem-se as cortinas e a história é contada. A história poderá ser recontada mais uma vez, inúmeras vezes se for preciso. É um novo nascimento com outras possibilidades de olhares. Neste momento, já não sinto mais a presença do meu intruso por mais que que eu sinta que as duas cadeiras sempre estarão vazias em todas as minhas apresentações.
Wanderlust- a busca do objeto transformacional
/em Destaque/por Arianne AngelelliDurante este período de pandemia procuramos escrever sobre diversos assuntos e não nos ater somente ao vivenciado pelo isolamento social. Refletindo sobre ele, sabemos que neste final de ano as famílias estão pesarosas por não poderem festejar, reunindo-se em grupos menores e temendo o contágio pelo coronavirus. Levaremos um tempo para compreender todo o alcance desta distopia . Trata-se de um momento de deprivação, segundo a visão winnicottiana, pois perdemos algo que tínhamos vivenciado anteriormente: a liberdade de ir e vir, abraçar nossos amigos, ficar perto sem a preocupação de estar espalhando desavisadamente um vírus que pode ser fatal.
Nosso grupo, habituado a reuniões calorosas e regadas a comes e bebes, passou a se reunir por zoom e usar um tempo do espaço de estudo para compartilhar experiências e apoiar-se mutuamente. A possibilidade de estar on-line abriu mais um braço no espaço potencial que pôde ser compartihado e usado para pensar, sonhar e brincar.
Também nos surpreendemos com as possibilidades dos atendimentos virtuais, que consideramos uma adaptação do setting para fazer frente à limitação que a pandemia nos trouxe neste ano . Assim como o enquadre analítico está dentro da mente do analista, também os modos de atender podem se flexibilizar e percebemos como nunca que o espaço potencial acontece mesmo em condições desfavoráveis, bastando para que ele ocorra o encontro e a capacidade de brincar daqueles que se envolvem e se des-envolvem por meio deste encontro.
Neste momento difícil, tivemos de exercitar a nossa capacidade criativa.
Ficou melhor na pandemia quem pôde vivenciar, no início da vida, a experiência da transicionalidade. Para Winnicott, o objeto transicional tem a função de permitir que a separação entre a mãe e o bebê ocorra de um modo positivo , saudável. É algo que o bebê usa como sua primeira posse não-eu, que pode estar no lugar da mãe ausente, e é ao mesmo tempo parte da realidade interna e externa do bebê. Dele deriva o faz-de-conta, o brincar, a possibilidade de ilusão… “O objeto transicional abre espaço para o processo de aceitação da diferença e da similaridade”- nos diz Winnicott em seu livro ” O Brincar e a Realidade”. Ser criativo na pandemia e poder lidar com a deprivação sem enlouquecer ou adoecer dependeu de podermos criar espaços de transicionalidade para lidar com a solidão, o medo e a finitude.
O autor americano Cristopher Bollas, leitor da obra de Winnicott, debruçou-se sobre o conceito de objeto transicional e formulou uma nova idéia : a idéia de objeto transformacional. Para ele, a experiência com o objeto transformacional ocorre ainda anteriormente aos fenômenos transicionais, quando o bebê ainda não se percebe separado de sua mãe. Ele é buscado pela vida toda como aquele objeto que traz ao Self a experiência de unidade, de ser UM com o objeto. O primeiro objeto transformacional é a mãe, que fornece ao bebê, de maneira instintiva, “experiências as quais estão em sintonia com o idioma dele e que, portanto podem provocar uma transformação em seu estado de Self”, diz Sarah Nettleton. Ao crescer, buscamos repetir esta experiência vivida inicialmente com a mãe, buscando objetos que nos traduzam e ao mesmo tempo nos transformem. Neste caso os objetos são prolongamentos de nossa realidade interna.
Como não falar, neste tempo de isolamento e limitação dos deslocamentos físicos, da vontade de viajar, de conhecer lugares novos, de poder encontrar objetos no mundo que nos possam maravilhar e tirar da experiência cotidiana ? Muitas vezes buscamos nas viagens e nos nossos sonhos com lugares distantes a experiência transformacional. Wanderlust, desejo ardente de viajar, pode ser lido também como o anseio pela revivescência de uma experiência transformacional e estética, a busca da novidade que nos traz para mais perto de nós mesmos.
Segundo o site “Significados” ( https://www.significados.com.br ) “wanderlust é uma palavra em alemão que pode ser traduzida como um desejo intrínseco e profundo de viajar.
Ela é formada da junção de outras duas outras palavras alemãs. Wander, que encontra origem no verbo wandern e corresponde à prática da caminhada ou trilha. E lust, que quer dizer luxúria, ou mais que um desejo, uma vontade profunda.
O sentimento representado por wanderlust é de querer viajar pelo mundo mais do que qualquer outra coisa. É de não sentir-se confortável quando se está estável em um local. É um interesse genuíno por conhecer novas culturas e explorar ambientes ainda não conhecidos.
Diz-se do wanderlust que quanto mais se alimenta esta ânsia, mais ela cresce. Mais lugares surgem no mapa para visitar, e mais inquieta por mudar de lugar torna-se a pessoa.”
Wanderlust pode ser também uma saudade de lugares imaginados , idílicos, onde nunca estivemos antes. Como dizia Renato Russo ” meu vício de insistir nessa saudade que eu sinto de tudo que eu ainda não vi”. Num nível profundo, uma busca de natureza estética, e até mística, que nos impele a buscar o objeto transformacional nos lugares, nas obras de arte, nas experiências e nas pessoas.
A possibilidade de trabalho virtual abriu para alguns a chance de deslocamentos outrora inimaginados, enquanto que outros, mais tementes do contágio, ou limitados por outras razões, viveram 2020 dentro de casa e podendo viajar apenas na sua imaginação. Acostumados a viajar e sonhar com viajens, levamos um grande susto com a pandemia que fechou fronteiras e aumentou a desconfiança entre as pessoas, sendo o medo do contágio uma nova roupagem para o medo do estrangeiro que sempre esteve presente em nossas vidas. Um vírus que veio da China para nos lembrar que não somos tão livres assim, que não somos imbatíveis.
Wanderlust, vontade de viajar, tivemos que lidar com a necessidade de ficar em casa e buscar as experiências transformacionais de outra maneira… Que vontade de sair de casa, livremente, encontrar pessoas e viajar! Mas precisamos esperar ainda mais um pouco, e ousar viajar para dentro de nós mesmos, sonhar com o presente e redescobrir no aqui e no agora a beleza de viver.