Coringa : do riso à dor
Joker (Todd Phillips,2019) é mais que a história de um vilão forjado pelo ambiente da privação e do abandono. É a história de um sujeito psicótico que tenta se curar a partir do humor. Filho do delírio materno, Arthur segue tentando aprender e apreender a linguagem do mundo por meio das suas nuances e sutilezas, pelo atalho do humor: mas não consegue encontrar o riso do Outro , não consegue capturar o seu olhar.
Hoje é dia das crianças, eu queria falar do riso. E desde que assisti ao filme Coringa, há uma semana, venho me lembrando dele … a atuação de Joachin Phoenix é tão impressionante que algumas imagens me capturaram e fizeram companhia durante muitos dias. Suas falas, seus gestos, seu caderno de piadas; sua dança, sua dor, sua fragilidade; a lógica pessoal tão própria a ele; as tentativas de estar num mundo hostil e incompreensível. Embora Coringa seja o louco, é quem denuncia a hipocrisia e a violência; assim como no seriado da Netflix “Casa de Papel” sua máscara virá a ser adotada por todos os que se veem calados pela injustiça e pela negligência, quando por fim o caos se instalar quase nos momentos finais do filme. O clima de caos social já se anuncia no início do filme, com o rádio noticiando o acúmulo dos ratos e do lixo na cidade de Gotham, enquanto Arthur se maquia para trabalhar ( como palhaço) : não há riso e sim abandono, solidão, descaso. Arthur é palhaço. Vive com a mãe e tenta se inserir na ordem do mundo por meio do trabalho: mas busca um reconhecimento que não encontra junto aos colegas e nem mesmo nas entrevistas com a assistente social que parece ser a responsável pelo tratamento psiquiátrico e pelo recebimento das medicações para controle da sua doença psicótica. Em um dado momento , diz a ela que não sabe bem “se existe” e não obtém ressonância, nada de uma escuta : e Arthur diz a ela que ela não ouve. No trabalho, ganha uma arma de um colega, a pretexto de ajuda-lo a se defender ( pois sofreu ataque de uma gangue quando trabalhava de palhaço). E diz ao colega” você sabe que não posso ter uma arma…”. Escreve em seu caderno algo como ” o problema de se ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você se comporte como se não tivesse”. O filme é bem construído na medida em que alguns dos seus delírios e alucinações nos são apresentados como reais, gerando a impressão de um borramento das suas vivências em relação aos fatos objetivos e suas percepções delirantes, recurso utilizado em filmes deste tipo ( como Tully http://www.gestoespontaneo.com.br/2018/07/02/natividade/ ). Este recurso gera empatia pela sua triste figura e uma maior compreensão do seu mundo mental. Há um sentimento de compaixão, senão simpatia, que surpreende, já que outros Coringas conhecidos de filmes anteriores não davam margem a este tipo de construção por sua vilania e crueldade. Mas seguir pelo caminho da “explicação” e justificativa do crime a partir da penúria e privação é sempre um caminho perigoso. O que comove aqui é a sua fantasia de cura* por meio do riso, do humor, humor que ele não acessa senão por imitação, por meio da máscara ( metáfora do seu não-rosto, do seu não-ser), humor que ele tenta buscar com o intelecto de forma obsessiva em seu caderno de anotações, copiando e assistindo a humoristas de stand-up. Mas Coringa não tem graça. Arthur tem um problema de riso inadequado que se expressa quase como um tique vocal nos momentos de maior angústia. O riso caricato de Arthur é bizarro e grotesco, e provoca no outro o que o “unheimlich” ( estranho) convoca: agressividade, asco- o Coringa é aquele para o qual os rostos não se voltam , é o feio, o louco, o estranho, o bizarro. E no entanto seu sonho é ir à TV e fazer os outros rirem; apresentar-se, fazer um show. Há um pai que existe-não existe. Fica pouco claro se o o pai do Batman é também pai de Arthur: no delírio dele, no delírio da mãe, ou na improvável hipótese de ser o pai de fato (que teria se eximido de filiá-lo por meio de um ato de coação à mãe, forçando-a a “assinar papéis falsos” de adoção). De todo modo, o menino jamais foi “adotado” por nenhum pai. Sua origem permanece indeterminada. (Mesmo filhos biológicos precisam ser de certa forma “adotados”- re-conhecidos: porque nenhum filho que nasce cumpre plenamente a fantasia de seus pais, e para se constituir pessoa precisará ser amado, filiado de alguma forma por alguém.) O menino escuta de sua mãe que sua missão na vida será trazer alegria e riso aos outros: a mãe o chama de “Happy” ( feliz). Feliz é tudo o que ele não é; mas a sina é tomada ao pé da letra – sendo o palhaço e carregando consigo a marca bizarra do riso imotivado, que denuncia sua miserável condição. A ironia está ligada à impossibilidade deste rapaz convocar o riso do Outro.
Para Freud, o humor é um dom precioso e raro. E é subversivo, porque proporciona um atalho para a expressão do reprimido, da agressividade- revela as imperfeições, as falhas, as incongruências e a fragilidade humana. Porém o humor permite que estes conteúdos se apresentem ao outro de forma aceitável: os chistes, as piadas e as ironias se utilizam de condensação e deslocamento para causar um efeito supreendente e que provoca o riso. O riso libera o corpo, e quando despertado pelo outro e pelos deslizamentos da linguagem , dá sentido a uma parte alienada do eu que se encontrava reprimida. Assim como o insight e apreensão estética de algo, o riso pode ser prazeroso não somente pela sua liberação motora mas também por integrar conteúdos do Si Mesmo, por ser atalho para enfrentar temores, vergonhas, sexualidade e morte recalcadas : ” numa brincadeira pode até se dizer a verdade…”
Assim o riso tem um papel civilizador, e a capacidade de humor é um recurso precioso para o indivíduo. Rir é gostoso, poder rir de si mesmo é como poder ser para Si Mesmo um pai bondoso que tolera o erro, o rebaixamento, a falha, o tropeço. Não para o Coringa que tem falhas básicas na sua estruturação: seu riso é uma caricatura, seu rosto é uma pintura, ele compreende as piadas com sua mente mas não é chamado a participar do banquete do mundo, está do lado de fora, está só.
Parece que o rapaz Arthur intui que o humor é a chave do simbólico que precisa acessar para passar a existir no mundo. Como um código, uma senha, que tenta descobrir. Sua busca fracassa, e o resto da história a gente já sabe; sem sonho e sem riso, sem humor e sem reconhecimento, resta a violência e o delírio. Interessante notar que à medida que delira o “Joker” cria para si uma identidade, um nome, e passa a existir no ato violento. Coringa forja o seu riso com o sangue da sua ferida-numa imagem fortíssima. Não há melhor metáfora para a sua maquiagem que o sangue (dor) transformado em riso -não pela via do humor, que se utiliza do recurso simbólico; mas pela concretude da marca deste sangue em seu rosto.