Foi eleito. A ideia de que possa ser eleito novamente me mortifica.
Que ele brinca com a tragédia, tem argumentos.
Pode-se alguém dizer qualquer coisa? Qualquer coisa que se pense? Todo disparate? E se alguém está no alto, mais alto que todos, em posição de poder dizer, não seria então mais necessário que o seu dizer fosse cuidadoso para com aqueles que o escutam? …
É certo que nunca saberemos toda a verdade. Certezas são sedutoras tanto quanto falsas. A machonice à toda prova. Não duvidar, não ter dúvidas. Se você assiste a uma conversa como essa. Faz cinco anos…
Enfim.
O que dizer sobre o que aconteceu com o nosso país. Como este nosso país pensa? Pensa assim?
“Com o passar do tempo, com as liberalidades, drogas, a mulher também trabalhando, aumentou-se bastante o número de homossexuais”… Essa fala traz a ideia da família moderna como responsável por desvios da sexualidade, pelos comportamentos ditos “anormais”. É uma maneira de pensar, de enxergar o mundo.
Há algo de picaresco na imagem de um homem fazendo o gesto de um revólver, como se fosse brincadeira. Zorro ao contrário, montado ao cavalo, sem máscara. Um playmobil . Palavras que zunem pelo ar como golpes de espada. Como se não fossem cortantes…Temos o vírus, temos as mortes. Mas ele brinca; “já sei…a culpa é minha…” : faz troça.
Este que fala acima tornou-se nosso presidente … eleito. Esta maneira de enxergar o mundo se fortalece a cada dia. Não é um discurso que desconhecíamos. Pois! O rei está nu, é certo, mas quem se importa… Este é um rei que foi eleito em sua nudez dizendo todo o tipo de disparates. Cobriu-se este pândego com um manto imaginário… Alucinação que resiste aos argumentos, às provas da realidade.
Precisamos de um rei assim? Se é verdade que o que ele diz faz sentido para muitos, a questão não está apenas num projeto de “direita” , mal professado por ele. É o desejo de endireitar que assusta mais. Um pensamento ortopédico que justifica crimes de toda ordem.
Prefiro Riobaldo, prefiro Diadorim.
O amor, prefiro.
A onda normatizadora está em todos, em todos nós. Tem tsunamis que arrastam almas, rios de lama piores do que aquele. Por isso tenho gostado de livros, livros, livros. Agarro-os, para a lama não me arrastar. São cordas, bóias, faróis. Livros que ajudam a mergulhar em histórias de pessoas diferentes .
Caíram-me ao colo, recentemente, histórias que são dinamite para os preconceitos meus. “A Gorda”, de Isabela Figueiredo e “A metafísica dos tubos”, de Amelie Nothomb. A moça gorda, a menina autista . Elas me fizeram companhia nestes dias sombrios. A gorda me seduziu com sua volúpia, sua sensorialidade, sua honestidade. Poucas vezes li tão linda a descrição do amor entre uma filha e uma mãe. A vontade que a filha tem do corpo da mãe, o ódio.
Da menina diferente e seu lago de carpas, aprendi a vontade de morrer. Não tem como não empatizar com ela e ser autista , ser a gorda , viajar com elas nas páginas destes livros. Como não se transformar depois deste mergulho? Estas autoras me transformaram.
Leiam, leiam, a literatura nos salvará. Vamos tratar de entender que somos iguais no que mais importa. E que esta violência da qual este homem é arauto não deve mais seduzir toda a nação. Não pode. Seja você de esquerda, de direita, tudo bem e tudo certo. Mas este país “cordial” é violento, e precisamos nos responsabilizar, ao menos, por nossas palavras.
E, por fim, um poema:
Tiradentes
Carlos Pena Filho
É o muito esperar que existe em torno
que me destina a ação desbaratada.
A morte é bem melhor do que o retorno
ao nada.
Não nasce a pátria agora, o sonho mente,
mas, em meio à mentira, sonho e luto
pois sei que sou o espaço entre a semente
e o fruto.
https://www.gestoespontaneo.com.br/wp-content/uploads/2021/06/playmobil-1.jpg380293Arianne Angelellihttps://www.gestoespontaneo.com.br/wp-content/uploads/2018/04/logotipo_site-1.pngArianne Angelelli2021-06-25 20:39:112022-10-03 08:24:53Tres livros, um poema, uma canção
Coisa boa de se ter filhos pequenos é poder ler com eles as histórias feitas para crianças , que enternecem nossa imaginação e nos trazem de volta para a sabedoria esquecida da infância. Há livros para crianças que todo adulto deveria ler. Nesses tempos em que a realidade nos bate na cara todos os dias com estatísticas escabrosas, acordos sinistros, milhões de árvores cortadas, vidas cortadas, verbas cortadas para a arte , é bom poder ouvir histórias e ver lindas figuras que falam sobre relações humanas…como elas deveriam ser. Pautadas pela ética e pelo respeito. Deveríamos entremear com este tipo de contos as nossa leituras jornalisticas e escutar histórias infantis no intervalo do noticiário… quem sabe assim nos resguardássemos da desesperança e do cinismo que nos ameaça , a partir de dentro de nossos corações já endurecidos.
O homem que amava caixas , de Stephen M King, é a uma dessas histórias que li há algum tempo, e da qual sempre me recordo. Um homem diferente tem uma fixação por caixas. Não sabe dizer ao seu filho que o ama. Então, passa a construir para ele caixas em forma de castelos, com formato de aviões, e todos os tipos de caixas, para brincarem. O filho, que ama o pai, não se importa com sua esquisitisse. É por meio das caixas que se comunicam.
Esta história me lembra um filme que vi na adolescência, e nunca mais esqueci também. Outro dia encontrei-o num streaming , assisti de novo, e voltei a me encantar com ele. É a história de um rapaz que amava pássaros. O título foi traduzido aqui no Brasil como ” Asas da Liberdade”. Este rapaz encontra um amigo que o ama apesar de seus gostos estranhos. Passam a perseguir pássaros, criar pássaros juntos. A amizade floresce apesar das suas diferenças.
O homem que amava caixas, que diagnóstico ele teria? Seria um autista de alto funcionamento, um “Asperger”? Seria psicótico? Ou teria um bonito transtorno obsessivo compulsivo, destes que a gente lê no livro de psicopatologia, acumulador de caixas, caixinhas e caixotes? Todos os achavam esquisito. Mas ele tinha um filho, e brincavam.
O homem das caixas e o homem dos pássaros moram hoje dentro de mim. Quando alguém tem um gosto assim, estranho, é por meio desta preferência que escolhe se comunicar melhor. Nem sempre é fácil entender. Pode ser só em filmes e histórias que tamanhas esquisitices encontrem um final feliz. Mas na sala de análise há sempre caixas a nos confundir… às vezes conseguimos brincar com elas. E quando isso acontece, é muito bom.
O Homem que amava caixas foi editado pela editora Brinque-Book.
O filme Birdy ( Asas da Liberdade) é de 1984, dirigido por Alan Parker. Disponível em youtube , Apple TV e Google Play.
https://www.gestoespontaneo.com.br/wp-content/uploads/2021/06/caixas.jpg395415Arianne Angelellihttps://www.gestoespontaneo.com.br/wp-content/uploads/2018/04/logotipo_site-1.pngArianne Angelelli2021-06-17 15:12:152021-06-18 13:36:55O homem que amava caixas
O filme israelense Day After I’m Gone ( O dia seguinte à minha partida) apresenta de forma dramática e intensa a tensão que pode estar presente entre um pai e uma filha que apresentam muitas dificuldades de comunicação. Habitando o mesmo espaço físico, existe um abismo entre eles e uma impossibilidade de se construir uma ponte que possa criar um caminho de encontro.
O abismo entre eles nos é apresentado logo no início do filme. Yoram, que é veterinário, diz à sua colega de trabalho que se descobre que o filho entrou na adolescência quando se passa a odiá-lo. Após formular essa frase chocante e de impacto, conta do desaparecimento de sua filha adolescente há dois dias. A amiga lhe interroga onde ela poderia estar e se a polícia ainda não foi acionada, provavelmente pensando que a garota poderia estar em apuros ou sofrido violência. Ele, apesar de preocupado e aflito, nega tal fato dizendo que ela já vai voltar, que é “coisa de adolescente”. Percebemos então que o pai também não está podendo acessar os próprios sentimentos de preocupação com a filha. Voltando para casa, porém, já sensibilizado pela conversa com a amiga, decide ir à delegacia. É repreendido pela delegada pela demora em comunicar o desaparecimento. A delegada lhe diz que a filha é criança, e ele não concorda, pois considera a filha responsável pelos próprios atos. A policial retruca que, por lei, por ter apenas 16 anos, ela ainda é uma criança. Para obter dados sobre a filha e poder iniciar uma busca começa a lhe fazer perguntas: se tem a senha do celular da filha, se ela tem facebook ou instagram, etc. Ele não tem nenhuma dessas informações- o que já vai revelando a distância e o desconhecimento da vida e do cotidiano da filha.
A questão da intimidade e de quem é o outro sempre foi um ponto que muito me intrigou e afligiu. Esse tema é intensamente tratado no livro de Josephine Hart “ Perdas e Danos”, que foi transformado em filme por Louis Malle ( 1992), baseado num caso verídico que aconteceu na Inglaterra : um ministro da Alta Corte se envolve com a namorada do filho, que quando os flagra num encontro se joga pela janela. Enquanto o pai vai vive esse tórrido e proibido romance se pergunta como isso é possível: como pode ele estar ali, deitado ao lado de sua mulher, com quem é casado há tantos anos, como se nada estivesse acontecendo. E como é possível que a esposa sequer desconfie de qualquer coisa enquanto ele vive essa paixão avassaladora e louca. Essa é uma situação que o angustia muito- essa situação de divisão e ambiguidade convivendo dentro de si, sem que o outro ao seu lado tenha sequer ideia.
Sempre me perguntei quem de fato é o outro– o que sabemos das pessoas que convivem ao nosso lado. Essa é uma situação muito comum nos nossos dias, principalmente com filhos adolescentes: por mais que os controlemos, o que sabemos de sua intimidade, de quem são eles?
Este pai, voltando para casa depois do desconcertante diálogo com a policial, permanece sentado, imóvel no sofá, olhando para o nada. Preocupado? Com raiva? Totalmente imóvel e com o olhar perdido. De repente a adolescente Roni abre a porta, entra, cumprimenta-o friamente e vai para seu quarto como se nada tivesse acontecido. Ele pergunta onde estava e ela responde um lacônico “por aí”.
Na noite seguinte o mesmo ritual frio e distante se repete : Roni chega, dá um “oi” e se dirige ao seu quarto. Na madrugada, enquanto dorme, Yoram é acordado com batidas à sua porta – investigadores da polícia chegam dizendo que foi identificado nas redes sociais uma comunicação dela de que iria se suicidar. Ele reage violentamente achando isso um absurdo, uma invasão, mas a polícia força a entrada e de fato a filha já estava desacordada após ter ingerido remédios para se matar. A moça é levada para o hospital.
Atordoado com tudo isso, no hospital , é abordado por um judeu ortodoxo que reza pela filha e lhe entrega um livro de rezas, lhe dizendo que reze também por sua recuperação.
Depois do ocorrido retornam à casa e o mesmo clima de distância permanece sem que ele consiga se aproximar da moça, sem que possam conversar sobre o que aconteceu. O silêncio entre eles permanece inalterado, tenso. No decorrer do filme somos informados de sua esposa morreu recentemente, e de que antes deste fato , os três eram muito próximos e unidos.
Ele, sem saber de fato o que fazer, como se aproximar, conversar e acolher a filha, decide ir visitar a família da esposa que mora ao sul de Israel. Comunica-lhe sua decisão, a qual ela acha muito estranha porque parece que não tinha um bom relacionamento com a mesma. Partem em viagem no mesmo silêncio por todo longo trajeto, fluxo represado, denso e tenso.
Ao chegarem, encontram a família da mãe com todas as suas esquisitices. Vamos nos dando conta porém que esse foi um gesto desesperado , um pedido de socorro de um pai paralisado e impotente diante da impossibilidade de um gesto espontâneo em relação à dor e ao sofrimento da filha. Roni havia lhe pedido que não lhes contasse nada de sua tentativa de suicídio, mas ele o faz numa conversa particular com sua cunhada. Esta lhe pergunta se a moça queria de fato se matar e ele responde que não, que queria apenas lhe mandar uma mensagem, chamar sua atenção. E ele diz que não faz ideia do que ela realmente queria lhe comunicar.
Diz Winnicott que quando a criança descobre que pode se esconder, que tem essa possibilidade, isso lhe dá a descoberta de um poder… mas se ao mesmo tempo é uma glória poder se esconder, é uma tragédia não ser encontrado! De certa forma a moça, neste filme, não era encontrada pelo pai, que a via mas não a percebia, não a sentia: ela lhe era uma estranha. Em seu trabalho sobre a tendência antissocial Winnicott diz que quando a criança ou adolescente apresentam comportamentos de agressividade, mentiras, roubos, rebeldia, estes comportamentos antissociais estão expressando um sentimento de que algo bom foi perdido por uma falha que é atribuída ao ambiente. Sabendo que a falha é do ambiente, estão vivendo uma deprivação afetiva e desejam resgatar o que tinham de bom e perderam. Endereçam então ao próprio ambiente esse protesto que ao mesmo tempo é um pedido de ajuda. O momento do comportamento antissocial é justamente um momento de esperança: identificaram em seu entorno algum sinal que lhes deu a esperança, ou a ilusão, de que a falha pode ser reconhecida de modo a se restabelecer a situação anterior.
A tia, ao se inteirar do fato, imediatamente diz que tem sim que contar à família, que seria absurdo não contar, que isso é muito sério – e a partir daí assume a administração da situação. Reúnem a família inteira em uma “roda de conversa”, chamam a menina para lhe dizer, cada um à seu modo, que reconhecem a dor da sua perda, da terrível vivência da doença e morte da mãe. Falam inclusive da própria dor relativa a esta morte, reiterando que Roni é membro da família e muito querida por todos ali. Cada um fala de seus sentimentos por ela, da importância que tem, reconstruindo sua história desde o nascimento, rememorando momentos significativos de sua vida.
Ao partirem, ela está, obviamente, furiosa com o pai por ter violado o seu segredo. Pede à ele para voltar dirigindo o carro, pedido que já havia feito na ida mas ele não permitiu – e eis que dessa vez ela vem dirigindo no caminho de volta. O mesmo silêncio se mantém entre eles, apenas um pouco mais leve. No caminho, passam pelo túmulo da mãe e a filha chora: a situação do luto extremamente dolorosa já não é negada. Chegam em casa e num primeiro momento não parece haver qualquer mudança no relacionamento entre eles… Roni vai para seu quarto enquanto Yoram fica na varanda.
Porém, quando a moça vai à cozinha pegar um copo de água , logo em seguida, encontra o livro de rezas que o pai trouxera do hospital. Olha, acha estranho e pergunta a ele o que é aquilo, ao que ele lhe responde: Rezei por você enquanto você estava no hospital… Ela sorri …e vem sentar no sofá da sala, ligando a televisão.
Através desse simples gesto a filha consegue se dar conta do amor do pai, da sua importância para ele, sua angústia e sofrimento com o que poderia ter lhe acontecido. Sendo o pai não religioso, ter rezado por ela e ter trazido o livro para casa era muito significativo, e assim finalmente ela conseguiu ser encontrada.
As vezes é muito difícil lidar com os adolescentes e saber exatamente qual seria a conduta mais acertada, e a medida adequada do limite. Apesar do seu pedido de não contar nada à família da mãe e da fúria pelo pai não ter atendido a este pedido, foi de extrema importância a família ter se encarregado do seu desespero e do sofrimento de Roni. A ação da família foi reconhecer e nomear sua angústia e sua perda, acolhendo esses dois seres atolados em si mesmos, sem conseguir compartilhar o sofrimento, por não poder elaborar o luto da mãe/esposa que funcionava como a ponte e o elo de comunicação da família.
Também foi um processo muito importante a possibilidade do pai ter a humildade de reconhecer sua total impotência para lidar com a situação, se aproximar da filha e compreender o que se passava com ela.
O momento atual da humanidade é um momento de luto coletivo, onde estamos tendo que lidar com muitas perdas ao mesmo tempo, desde a morte física de pessoas próximas e queridas, como a nossa vida roubada- um momento em que como um todo estamos sofrendo uma deprivação. As crianças perderam os amigos, a escola. Os professores, suas atividades regulares, sua rotina, assim como adultos e adolescentes. A ideia da morte paira no ar como uma possibilidade real e concreta. Roubaram-nos a possibilidade de fazer planos e com isso os sonhos, os projetos…Estamos à deriva…. cada um de nós tendo que encontrar em sua história e circunstância a esperança de um porto onde atracar com segurança permanecer em espera. As relações de amor que cultivamos, agora, são o nosso porto seguro.
https://www.gestoespontaneo.com.br/wp-content/uploads/2020/07/the-day-after.jpg320480Diana Goldberghttps://www.gestoespontaneo.com.br/wp-content/uploads/2018/04/logotipo_site-1.pngDiana Goldberg2021-06-17 11:46:222021-06-17 18:55:19A difícil arte da intimidade