Meninas e o Álcool

Não há um consumo seguro de álcool na adolescência.

A cura da adolescência é a passagem do tempo. ” nos diz  Winnicott.

Sabemos que eles e elas vão testar nossos limites, mas temos de nos posicionar firmemente : “Onde houver o desafio do rapaz ou da moça em crescimento, que haja um adulto para aceitar o desafio.” 

Os elementos masculino puro e feminino puro na clínica

EXTRAIDO DE: Os elementos masculino puro e feminino puro na clínica: a história de Vítor
Cecilia Luiza Montag Hirchzon, Maria Cecilia Schiller Sampaio Fonseca ,Maria Lúcia de Toledo Moraes Amiralian

( Natureza Humana 5(2): 443-457, jul.-dez. 2003).

Winnicott coloca-se como um psicanalista preocupado especialmente com a compreensão do ser humano e seu processo de desenvolvimento. “Desenvolvimento é a minha especialidade”, diz ele na palestra “Este Feminismo”, de 1964, e é dessa maneira que se propõe compreender o caminho percorrido por homens e mulheres desde a concepção até a morte. O eixo central de sua teoria é o processo de amadurecimento, a continuidade do ser. O seu foco é no aspecto sadio do desenvolvimento, onde considera até a morte natural “como a derradeira marca da saúde” . Saúde para ele significa não apenas ausência de doença, como algumas vezes é conceituada, mas sim uma condição que possui em si um aspecto positivo. O desenvolvimento inclui a compreensão das falhas e ausências que tanto podem impedir como propiciar que ele seja pleno. Dentro desse processo de amadurecimento, escolhemos nos deter nos elementos masculino puro e feminino puro, que consideramos uma abordagem de grande originalidade na obra de Winnicott. A constatação da existência desses elementos ocorre numa sessão onde, após longo tempo de trabalho com um paciente, surge uma situação inusitada.

Relata que esse paciente, apesar de sucessos em sua vida e outras análises anteriores, não se sente satisfeito. Continua na análise atual em busca de algo que ainda não encontrara. A sessão a que se refere passa-se em torno da “inveja do pênis”, como se fosse vivida por uma menina e não por um homem adulto, casado e com uma vida profissional ativa. Isso surpreende Winnicott, que se vê interpretando “Estou escutando uma garota. Sei perfeitamente bem que você é homem, mas estou escutando uma garota e falando com uma. Estou lhe dizendo: você está falando sobre inveja do pênis”. Enfatiza que isso não tem nada a ver com homossexualidade . O paciente responde aliviado: “Se eu fosse falar a alguém a respeito dessa garota seria chamado de louco”. Ao que Winnicott responde: “Não é que você tenha contado isto a alguém; sou eu que vejo uma garota e escuto-a falar, quando  na verdade há um homem em meu divã. O louco sou eu”. O alívio provocado era devido a haverem chegado, na transferência, a uma vivência que acompanhava o paciente por toda a sua vida. Era por tocar numa cisão que muito cedo se estabelecera dentro dele, na busca de ajustar-se a uma expectativa de sua mãe. Esta havia desejado que ele, seu segundo filho, fosse menina e o havia visto e tratado como tal. Essa situação tão precoce o levou a incorporar a “loucura da mãe”, mantendo essa cisão quase total entre ser menino e menina, sentindo-se “louco”. Quando Winnicott assume e traduz a loucura da mãe, provoca o alívio mencionado e novos rumos na condução de sua análise. Encontra-se então Winnicott diante da tarefa de procurar entender e elaborar o que se passara, já que havia se deparado com algo novo, que não tinha pensado até então e que não tinha nenhuma referência em outros autores. A partir daí começa a formular suas idéias sobre o que seriam esses elementos feminino e masculino puros. Afirma que não é um conceito novo na psicanálise a idéia da predisposição para a bissexualidade: existem elementos masculinos e elementos femininos em todo ser humano. A originalidade de seu pensamento está na concepção de elemento feminino puro e elemento masculino puro como modalidades de relação de objeto, definindo-as como independentes da pulsão, tal como esta é entendida nos textos freudianos. É importante ressaltar que a teoria de desenvolvimento de Winnicott não se apóia na teoria da libido, como proposta por Freud. Ele interpreta a teoria da sexualidade sob outras luzes e propõe um novo paradigma à psicanálise . Winnicott apóia-se no amadurecimento pessoal, em que contempla como aspectos fundamentais as tarefas de constituição do si mesmo (self ) e de sua interação com o ambiente. Há uma tendência inata denominada continuidade do ser, espécie de mola propulsora, que permite ao ser humano percorrer um caminho que o impele de uma dependência absoluta à busca da independência. Winnicott parte da concepção de que no início da vida há uma dependência absoluta, em que o bebê não se diferencia do seio: ele é o seio. Embora, do ponto de vista do observador externo haja a mãe e seu bebê, do ponto de vista do bebê, o que existe é uma unidade existencial: o bebê é o seio que o alimenta, o colo que o sustenta, as mãos que o acariciam. É o mundo do objeto subjetivo, onde ainda não se constituiu a externalidade. Nas primeiras mamadas não há diferença entre o eu e o não-eu, há um estado de indiferenciação. Para que o bebê vá prosseguindo o seu caminho em direção à independência, é necessário que a mãe apresente repetidamente o seio, de uma forma a que Winnicott se refere como “monótona”, ou seja, repetitiva, mas com prazer (não insípida). Essa situação propicia ao bebê a possibilidade de criar esperança, de ter confiança, de poder acreditar no mundo, o que permite a crescente separação e a vivência da sua dependência. A mãe que está à disposição de seu bebê, permitindo que ele seja, estaria vivendo esse tipo de relação de objeto chamada elemento feminino puro: ambos estão sendo. Nesse momento há a identificação primária do bebê com sua mãe e a identificação com aquela que é abre caminho para a constituição do si mesmo e do sentimento do real. A identidade com o elemento feminino puro é condição fundamental para todas as identificações futuras que ocorrem na vida de cada um. A partir do ser, o bebê pode ir fluindo no seu continuar a existir, dando seqüência às tarefas do processo maturacional. Há um emergir do si mesmo (self) e do sentido de identidade primária. Nessas primeiras relações o bebê vive a ilusão de onipotência e a mãe suficientemente boa coloca o que o bebê cria no lugar e no tempo em que necessita. O bebê sente-se um deus criando o mundo. Os fatos do mundo vão adquirindo sentido para ele, preparando para, gradativamente, ir suportando a desilusão, a frustração de que o mundo existe antes de tê-lo “criado”. Essa atitude da mãe permite que a experiência primária de criação vá sendo internalizada, constituindo-se numa fonte interna do viver criativo. O bebê começa a perceber a distinção entre o eu e o não-eu; o ego mais organizado, que se diferencia e se separa pode agora pôr em ação o elemento masculino puro, que é ligado ao fazer. É o fazer emergindo do ser primordial. Como diz Winnicott: “Após ser – fazer e deixar-se fazer. Mas ser, antes de tudo” . Estamos falando de criatividade como Winnicott a considerou: uma proposição universal ligada à saúde, significando uma atitude em relação à realidade externa que implica estar vivo, ou seja, um sentimento de que a vida vale a pena ser vivida. Em “Vivendo de modo criativo”, uma das suas últimas conferências (1970), ao definir criatividade, o autor afirma:

Para ser criativa, uma pessoa tem que existir e ter um sentimento de existência, não da forma de uma percepção consciente, mas como uma posição básica, a partir da qual operar. Em conseqüência, a criatividade é o fazer que emerge do ser, que indica que aquele que é, está vivo. (Winnicott 1986h, p. 31)

Diferencia essa criatividade da criação de obras de arte, sendo esta uma forma mais elaborada, diferenciada. Esse ato criativo, próprio do artista, tem uma especificidade que foge ao nosso tema neste momento. Para existir a criatividade, o elemento feminino puro seria o primordial, próprio da fase de fusão com a mãe. Essa abordagem é diferente de outras teorias psicanalíticas, nas quais a origem da capacidade criativa se situaria em estágios e mecanismos mais avançados de desenvolvimento mental. Para Freud, a capacidade criativa seria uma sublimação de pulsões instintivas que não podem se realizar como tais. Para Melanie Klein, seriam reparações de aspectos agressivos ligados à culpa na posição depressiva. Em Winnicott, a criatividade tem a característica de ser primária, constitutiva, determinante de saúde e amadurecimento. Retomando a questão do fazer, temos que falar dos instintos, pois o elemento masculino puro não só se apóia, mas pede ação mobilizada pelo instinto. A partir do momento em que começa a experienciar os instintos como próprios, vê-se o ser humano diante de uma nova tarefa, que é como lidar e integrar ao si mesmo (self) a vida instintiva. Essa vivência no próprio corpo, assim como as diferenças biológicas dos sexos, tem papel fundamental. As diferenças anatômicas e  hormonais entre os sexos são obviamente determinantes de como será o contato, tanto com a sexualidade em si, como com o mundo. Ao seguir o seu curso começam a aparecer as diferenças relativas ao gênero: características mais marcadamente masculinas ou  femininas. É um tema importante para futuras reflexões. Nos primórdios do desenvolvimento, o bebê não precisa atender às suas necessidades, pois a mãe é quem vai atendê-las. À medida em que vai amadurecendo, o si mesmo (self), agora mais definido, o Ego já com a função que diferencia o eu do não-eu, vai sendo capaz de sentir as necessidades como próprias, buscando atendê-las. Quando há falhas nesse processo, surgem dissociações entre o ser e o fazer. Uma das conseqüências é a perda do viver criativo, o “si mesmo” (self) passando a ser aquele que está sempre respondendo e se adaptando à realidade externa, em detrimento do “si mesmo” (self) verdadeiro.

Outro conceito de grande utilidade clínica, próximo a este, apontado por Winnicott no processo de amadurecimento e separação, foi observado no caso clínico de Vítor, relatado adiante. Winnicott afirma que, apesar da dessemelhança entre os sexos, há uma semelhança básica em relação à questão primordial da dependência absoluta, que o leva a propor “um fenômeno separado que denominamos Mulher… que é a mãe não reconhecida dos primeiros estágios de vida de todo homem e de toda mulher”. Podemos agora refletir sobre a questão da diferença entre os sexos, partindo de como cada um deles vai elaborar essa dependência absoluta de uma mulher. Isso é de fundamental importância para o desenvolvimento da identidade de cada sexo. O homem, para ser “si mesmo” e para constituir a sua identidade masculina, terá de se separar desta Mulher,  de quem dependeu totalmente. Já a mulher, para se constituir como tal, não precisa estabelecer necessariamente a separação – pode manter-se identificada com essa Mulher. Observamos, portanto, duas direções distintas: enquanto a mulher lida com a Mulher dentro de si através da identificação, o homem tem que se separar, tornar-se único, o que se constitui em uma urgência no desenvolvimento da sua identidade. A especificidade da identidade feminina caracteriza-se por ser geracional e infinita, isto é, podendo manter dentro de si três mulheres: o bebê menina, a mãe e a mãe da mãe. Essa condição possibilita à mulher o desempenho de diferentes funções sem violar a sua natureza. Pode ocupar posições diversas nas brincadeiras, onde ora é mãe, ora é filha, alternando papéis. Ou, ainda, na idade adulta, exercendo a sua feminilidade, ocupando o lugar de mãe e/ou mulher sedutora. Enquanto isso, o homem não se funde nessa linhagem – sua condição básica é a de ser um: o provedor, aquele que faz. É uma função que ocupa tanto no âmbito familiar, quanto social e profissional: tudo se agrupa em torno desse fazer/ prover. Já podemos observar no menino as brincadeiras mais ligadas ao lutar, brigar, competir – atividades ligadas à ação – enquanto nas meninas, elas se expressam nos diferentes papéis associados ao ser: ser mãe, ser filha, ser mulher. A título de ilustração, poderíamos usar como metáforas: para a mulher, um caleidoscópio, com constantes rearranjos; e, para o homem, a figura geométrica de um poliedro, que mesmo mostrando os diferentes lados, mantém a mesma configuração.   Apesar dessas diferenças, o elemento feminino puro e o elemento masculino puro têm que estar presentes e integrados em todo ser humano, homens e mulheres que, como já dissemos, é a condição primordial do viver criativo.

 

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http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-24302003000200006