Em mundos interiores
“Em um Mundo interior” é o primeiro filme brasileiro sobre a temática do Autismo (TEA) , dirigido por Flávio Frederico e Mariana Pamplona. Produzido pela Kinoscópio, o filme participou da seleção oficial do Festival É Tudo Verdade 2017.
No dia 27/03/2021 a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e o grupo Prisma* de psicanalistas pesquisadores do autismo organizaram uma mesa sobre o filme , e fomos chamados para participar. Depois de ouvir os diretores e os pais de um menino autista, pudemos trocar pensamentos e experiências. Falamos da escola, dos dilemas do diagnóstico, das particularidades sensoriais das crianças, da linguagem e do acompanhamento fonoaudiológico, da inclusão e das questões legais e políticas da lei 12764, de 27 de dezembro de 2012. Esta lei estende à pessoa autista os mesmos direitos legais anteriormente garantidos às pessoas com deficiência.
O filme “Em um mundo interior” acompanha a vida de 5 crianças, um adolescente e um adulto autista. Conforme nos contam os diretores, foi um trabalho de dois anos , participando do dia a dia deles, com suas famílias, em sua rotinas, seus tratamentos e na escola. A história dessas crianças é narrada aos poucos, levando-nos a um mergulho em suas vidas. É um filme de observação, que abrange uma grande variedade de pessoas, pensamentos clínicos e realidades. O transtorno do espectro autista, como entendido hoje, é um amplo guarda-chuva que inclui pessoas com inteligência normal, acima da média e abaixo da média, que tem linguagem verbal ou não, com diferentes graus de dependência ou autonomia na vida. Cada pessoa autista tem suas particularidades : dentro do “espectro” encontramos sujeitos muito diferentes entre si.
Quando um autista nos fala e conta como percebe e sente o mundo, como pensa e processa as informações, como se dá conta de seu corpo e do outro aprendemos muito sobre o seu modo de ser . Hoje podemos falar em termos de neurodesenvolvimento típico ou atípico. Evitar pensar o autismo dentro de uma ótica deficitária é o que os autistas nos pedem. Como nos diz Temple Grandin : ” eu sou diferente, não menos”.
Uma diferença bastante presente em pessoas autistas se dá no campo da sensorialidade. O DSM V ( manual de classificação americano dos transtornos mentais) cita na descrição do quadro a “hiper ou hiporreatividade à entrada sensorial ou interesses incomuns em aspectos sensoriais do ambiente “. Hoje acreditamos que esta sensorialidade diferente pode ser uma dos maiores motivos de sofrimento para as pessoas autistas, e muitas pesquisas das neurociências estão sendo feitas para tentar compreende-las melhor. É comum encontrar nestas pessoas alterações não somente quantitativas, mas qualitativas e de integração sensorial. Por outro lado, no campo da psicanálise, estamos observando alguns fatos muitos interessantes que relacionam a constituição da imagem do corpo e do ego corporal com as relações objetais precoces. Por isso, nas intervenções com os bebês com risco de autismo o corpo é cada vez mais levado em conta. Busca-se o atendimento das alterações e sofrimentos sensoriais no sentido de promover uma sincronização polissensorial. No desenvolvimento do bebê, a presença do outro, do cuidador, é que torna possível a autoregulação e a constituição de um sentimento de existir , em que corpo e psiquismo estão integrados. Como podemos perceber neste texto de uma psicanalista francesa:
“Durante esta troca que tanto o bebê quanto a mãe procuram, o bebê é levado pelos braços da mãe, que apoia suas
costas e sua nunca com doçura, firmeza e ardor. Assim, a constituição das costas, deste segundo plano vertical de segurança, faz-se em conjunto com a instalação do olhar. Como se as costas se tornassem o fundo dos olhos e constituíssem um portador de segurança durante a criação do laço entre um e outro pelo olhar. É nestas condições que a tridimensionalidade pode se instalar. O corpo torna-se capaz de guardar boas experiências e interiorizá-las.” **
Vemos nestas pequenas frases como a sensação de tridimensionalidade adquirida pelo bebê – e a própria sensação de ter costas- se relaciona com a troca de olhares e o toque materno. Nos bebês com risco de autismo, viscissitudes neste processo podem acarretar desvios no próprio neurodesenvolvimento. Sabemos que alguns bebês apresentam dificuldades que os impedem de receber este toque e este olhar por parte dos seus cuidadores. Assim, ajudar estes bebês em suas dificuldades torna possível que o ciclo benigno do amor se reestabeleça.
Ainda há muito para aprender sobre a sensorialidade no autismo.
E por falar em sensorialidade, na mesa que aconteceu com os colegas da sociedade de psicanálise , as escolhas musicais do início e do fim do filme foram muito lembradas. A música é uma forma de linguagem e as canções escolhidas comunicam alguns aspectos do documentário – o início que nos coloca em contato com a problemática do autismo e o final que traz uma mensagem de esperança nas conquistas das crianças. As canções nos tocam de muitas formas, são linguagem. Nos tocam sensorialmente por causa da melodia, do ritmo, das entonações da voz do cantante, e também podem ser escutadas simbolicamente, por sua letra. Pra além do texto, a música “O Quereres”, que abre o filme, fala da ferida narcísica dos pais das crianças atípicas ( “onde sou só desejo- queres não”) . A canção tem um tom de reclamação, de lamento queixoso- o confronto com a alteridade expresso pelas antíteses do texto e pela melodia , dissonante, altissonante, que por vezes parece um grito. Na repetição dos versos, antíteses, e pela própria construção harmônica da música, estresse adiado de resolução, sentimos uma tensão : tensão do autismo , do impasse do encontro com o diferente.
Já a canção escolhida para o fim do filme, Paciência, de Lenine, tem um outro andamento. É uma música num tom menor, lenta, e nos pede em sua letra para dar tempo ao tempo. Paciência. Ela diz: “ enquanto o tempo acelera e pede pressa , eu me recuso. Enquanto todo mundo espera a cura do mal, eu finjo ter paciência”.
A escolha das duas músicas neste filme foi muito feliz. No início O quereres fala uma coisa que escutamos sempre, cada vez que uma criança chega no nosso consultório trazida pelos seus pais com este tipo de sintoma, o sintoma autista. Há um descompasso entre a expectativa dos pais e a criança. Há um desencontro, há dor. O filme fala do processo da descoberta do diagnóstico em cada família. Neste processo, algumas famílias se sentiram amparadas, outras não. Há os pais que se queixam de não terem tido a diferença do filho reconhecida pela pediatra. Há a mãe que diz que saiu em busca de tudo o que pudesse enlaçar a filha após saber que por causa da plasticidade neural seu cérebro eliminaria os neurônios não utilizados até os 3 anos. Na fala dessa mãe a gente percebe o senso de urgência, na fala dos outros pais, a idéia da negligência. Como enganchar estes discursos com a paciência que estas crianças precisam para poder desabrochar? Como enganchar estes discursos com a necessidade de uma certa capacidade negativa que a gente acredita que tem de estar presente na abordagem daqueles que se propõe a atender essas crianças? É a mensagem transmitida pela musica de Lenine- pedido de um autista que precisa de tempo. Diferente do grito do Caetano, esta canção pede paciência, pede tempo, pede espera.
Há 3 palavras para pensar quando falamos de autismo. A primeira é espectro. O espectro autista é um grande guarda-chuva. Aqui podemos pensar nas caracteristicas autistas tendo um aspecto dimensional no humano. Ou seja, haveria um continuum, um borramento entre condições. Hoje com o conceito de espectro consideramos como autistas pessoas que ontem não consideraríamos. Pessoas com características mais esquizoides, mais narcísicas. Por outro lado, a categoria “psicose infantil” desparece das classificações. É como se não houvesse diferença entre essas condições.
Mas a palavra espectro também traz a ideia de um espirito maligno, uma assombração, fantasma. Um dos meninos do filme descobre o nome do que ele tem depois de anos : ele encontra um folheto no banco do carro e diz “mãe, eu sou isso?” . Ele vinha sendo cuidado sem dizer de si mesmo “eu sou Asperger”. Quando alguém diz “ Eu sou Asperger” onde está a sua subjetividade? Esse é o lado perigoso do diagnóstico. Como uma família se apropria, que uso ela faz do diagnóstico da criança? Ele vai ser usado para ajudar a família e a criança ou para assombrar e fechar as portas , para tirar a esperança de que mudanças podem acontecer?
Em medicina a gente usa o termo “fechar um diagnostico”. Então o que queremos dizer quando um diagnóstico é fechado? Fechado é a segunda palavra que eu quero destacar aqui.
(Como psiquiatra, essa é a angústia que tenho todas as vezes, absolutamente todas as vezes, que sou chamada a dar , ou fechar, um diagnóstico dessa natureza. Psiquiatra infantil, meu lugar de fala, traz um um contrato implícito: eu dou diagnóstico, eu proponho tratamento e as vezes prescrevo medicamento para a criança. Mas temo que o diagnóstico venha para fechar, para trazer um atalho que interponha este nome entre a criança e seu futuro. Todas essas descobertas da neurociência, sobre a sensorialidade, os modos diferentes de aprender, os aspectos da cognição social e dos circuitos atencionais devem ser campos de abertura para a compreensão da criança. Não devem vir para reduzi-la a um cérebro disfuncional. O momento do diagnostico é muito delicado. Os pais estão doídos, estão dentro da lógica do grito da música do Caetano. Querem palavra, querem escuta e querem direção.)
Após o momento do diagnóstico, vem a pergunta: o que fazer?
No filme vê-se projetos terapêuticos diferentes sendo realizados para cada criança. Pensar um projeto terapêutico é um desafio , e isso é mostrado no filme. Existem poucos lugares “prontos” para encaminhar uma criança, lugares únicos que reúnam os profissionais para trabalhar com ela em diferentes modalidades de atendimento. Vê-se no filme que os pais se associaram em Recife para trazer profissionais para atender seus filhos , fundando uma instituição. Júlia, uma das crianças, frequenta o Lugar de Vida, um dos poucos lugares em são Paulo com equipe muiltidisciplinar que leva em conta o pensamento psicanalitico. Encontramos no filme o atendimento fonoaudiológico, fisioterápico, o acompanhante terapêutico, o atendimento na escola, em diferentes abordagens. É muito interessante ver como as famílias foram tentando organizar uma rede de pessoas para melhor cuidar de seus filhos. Na verdade há muitas necessidades e cada paciente tem questões diferentes. Questões motoras, de sensorialidade, de comportamento, de aprendizagem.
Pensar um projeto terapêutico é levar em conta muitas variáveis. Os recursos são limitados, não só do ponto de vista financeiro. É caro bancar uma equipe multisciplinar particular para o seguimento de uma criança, mas também é preciso definir prioridades, pontos de urgência, encontrar os recursos disponíveis. Os equipamentos públicos, como os Caps infantis, muitas vezes tem grandes filas de espera. É preciso que a equipe que atende a criança possa se conversar. Senão o atendimento do autismo pode ficar completamente esquizofrênico.
Tempo e paciência: é preciso amparar e cuidar dos pais.
(Eu tenho medo dos rótulos . Tenho recebido atualmente no consultório uma demanda nova de adultos que chegam dizendo que se descobriram autistas. Mais uma vez , penso- esse nome veio para fechar ou abrir uma compreensão da pessoa sobre si mesma?)
Finalmente, a terceira palavra para lembrar aqui é a palavra transtorno. Usamos transtorno, na psiquiatria moderna, como uma palavra que se contrapõe à ideia de doença. O objetivo é pensar o autismo não como uma doença, e sim como um conjunto de alterações de comunicação, comportamentos. Busca-se uma compreensão maior , na idéia de transtorno, como variações em relação a uma média e que causam sofrimento significativo para a pessoa. Mas esta palavra transtorno também traduz o incômodo imenso que estas pessoas (nos) provocam. O filme mostra um rapaz adulto com autismo e deficiência mental que é colocado num cercado, quase uma jaula. É a própria cena da segregação, fantasma que ronda a história da psiquiatria como a escravidão ronda , de modo espectral, as relações de classe neste nosso país extremamente desigual. E o que se faz com o que transtorna? Para quem precisamos de tratamento? Para a criança? Para os pais ou para a sociedade que quer normalizar a criança?
Podemos, entre o grito de Caetano e o pedido de Lenine, ouvir as vozes de sete pessoas e seus pais , professores, terapeutas- circulando entre as aberturas e os fechamentos, o transtorno e a acomodação, a aceitação, os possíveis e os impossíveis do autismo.
Agora gostaria de trazer aqui um trecho de Andre Green, numa conferência de 1996 , sobre Winnicot. Ele faz uma citação do livro Natureza Humana e diz “ Há um Winnicott profético neste livro”. Seguem as palavras de Winnicott ( grifo meu)
Eu espero por este dia ( o reconhecimento da psiquiatria infantil) e o venho esperando ao longo de três décadas. Mas o perigo é que o lado doloroso deste processo seja evitado, num esforço para encontrar um atalho; as teorias serão reformuladas , propondo que os distúrbios psiquiátricos não são produzidos por conflitos emocionais, mas pela hereditariedade, constituição, desequilíbrio hormonal, ambientes brutais e inadequados!
Diz Green:
Na época Winnicott não podia ter conhecimento das neurociências ou das ciências cognitivas. Se as palavras estavam faltando, as coisas já estavam ali.
Winnicott é profético por intuir este atalho que percebemos claramente hoje em relação ao conceito e ao tratamento dos transtornos mentais da infância. A psiquiatria infantil é muito recente e temo que já esteja morrendo mesmo, no nascedouro. Sonhada por Winnicott, foi construída também por pessoas como Kanner e Asperger que observaram crianças diferentes e as descreveram . Antes, todas essas crianças eram consideradas débeis mentais. Crianças psicóticas, autistas, com todo tipo de síndrome ou deficiência mental eram segregadas e consideradas idiotas, “não educáveis”. Aprendemos muito. Mas ainda temos dificuldade em entender aonde está o problema de hardware, o problema cerebral, genético, hereditário, ou quais sejam, e quais são as questões de software… aqui onde cabe o investimento no que conhecemos das teorias das relações de objeto . Onde o jeito de reclamar a criança para o encontro pode fazer muita diferença no destino dela.