Em mundos interiores

  “Em um Mundo interior” é o primeiro filme brasileiro sobre a temática do Autismo (TEA) , dirigido por Flávio Frederico e Mariana Pamplona. Produzido pela Kinoscópio, o filme participou da seleção oficial do Festival É Tudo Verdade 2017.

No dia 27/03/2021 a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e o grupo Prisma* de psicanalistas pesquisadores do autismo organizaram uma mesa sobre o filme , e fomos chamados para participar. Depois de ouvir os diretores e os pais de um menino autista, pudemos trocar pensamentos e experiências. Falamos da escola, dos dilemas do diagnóstico, das particularidades sensoriais das crianças, da linguagem e do acompanhamento fonoaudiológico, da inclusão e das questões legais e políticas da lei 12764, de 27 de dezembro de 2012. Esta lei estende à pessoa autista os mesmos direitos legais anteriormente garantidos às pessoas com deficiência.

O filme “Em um mundo interior” acompanha a vida de 5 crianças, um adolescente e um adulto autista. Conforme nos contam os diretores, foi um trabalho de dois anos , participando do dia a dia deles, com suas famílias, em sua rotinas, seus tratamentos e na escola. A história dessas crianças é narrada aos poucos, levando-nos a um mergulho em suas vidas. É um filme de observação, que abrange uma grande variedade de pessoas, pensamentos clínicos e realidades. O transtorno do espectro autista, como entendido hoje, é um amplo guarda-chuva que inclui pessoas com inteligência normal, acima da média e abaixo da média, que tem linguagem verbal ou não, com diferentes graus de dependência ou autonomia na vida. Cada pessoa autista tem suas particularidades : dentro do “espectro” encontramos sujeitos muito diferentes entre si.

Quando um autista nos fala e conta como percebe e sente o mundo, como pensa e processa as informações, como se dá conta de seu corpo e do outro aprendemos muito sobre o seu modo de ser . Hoje podemos falar em termos de neurodesenvolvimento típico ou atípico. Evitar pensar o autismo dentro de uma ótica deficitária é o que os autistas nos pedem. Como nos diz Temple Grandin : ” eu sou diferente, não menos”.

Uma diferença bastante presente em pessoas autistas se dá no campo da sensorialidade. O DSM V ( manual de classificação americano dos transtornos mentais) cita na descrição do quadro a “hiper ou hiporreatividade à entrada sensorial ou interesses incomuns em aspectos sensoriais do ambiente “. Hoje acreditamos que esta sensorialidade diferente pode ser uma dos maiores motivos de sofrimento para as pessoas autistas, e muitas pesquisas das neurociências estão sendo feitas para tentar compreende-las melhor. É comum encontrar nestas pessoas alterações não somente quantitativas, mas qualitativas e de integração sensorial. Por outro lado, no campo da psicanálise, estamos observando alguns fatos muitos interessantes que relacionam a constituição da imagem do corpo e do ego corporal com as relações objetais precoces. Por isso, nas intervenções com os bebês com risco de autismo o corpo é cada vez mais levado em conta. Busca-se o atendimento das alterações e sofrimentos sensoriais no sentido de promover uma sincronização polissensorial. No desenvolvimento do bebê, a presença do outro, do cuidador, é que torna possível a autoregulação e a constituição de um sentimento de existir , em que corpo e psiquismo estão integrados. Como podemos perceber neste texto de uma psicanalista francesa:

“Durante esta troca que tanto o bebê quanto a mãe procuram, o bebê é levado pelos braços da mãe, que apoia suas
costas e sua nunca com doçura, firmeza e ardor. Assim, a constituição das costas, deste segundo plano vertical de segurança, faz-se em conjunto com a instalação do olhar. Como se as costas se tornassem o fundo dos olhos e constituíssem um portador de segurança durante a criação do laço entre um e outro pelo olhar. É nestas condições que a tridimensionalidade pode se instalar. O corpo torna-se capaz de guardar boas experiências e interiorizá-las.” **

Vemos nestas pequenas frases como a sensação de tridimensionalidade adquirida pelo bebê – e a própria sensação de ter costas- se relaciona com a troca de olhares e o toque materno. Nos bebês com risco de autismo, viscissitudes neste processo podem acarretar desvios no próprio neurodesenvolvimento. Sabemos que alguns bebês apresentam dificuldades que os impedem de receber este toque e este olhar por parte dos seus cuidadores. Assim, ajudar estes bebês em suas dificuldades torna possível que o ciclo benigno do amor se reestabeleça.

Ainda há muito para aprender sobre a sensorialidade no autismo.

E por falar em sensorialidade, na mesa que aconteceu com os colegas da sociedade de psicanálise , as escolhas musicais do início e do fim do filme foram muito lembradas. A música é uma forma de linguagem e as canções escolhidas comunicam alguns aspectos do documentário – o início que nos coloca em contato com a problemática do autismo e o final que traz uma mensagem de esperança nas conquistas das crianças. As canções nos tocam de muitas formas, são linguagem. Nos tocam sensorialmente por causa da melodia, do ritmo, das entonações da voz do cantante, e também podem ser escutadas simbolicamente, por sua letra. Pra além do texto, a música “O Quereres”, que abre o filme, fala da ferida narcísica dos pais das crianças atípicas ( “onde sou só desejo- queres não”) . A canção tem um tom de reclamação, de lamento queixoso- o confronto com a alteridade expresso pelas antíteses do texto e pela melodia , dissonante, altissonante, que por vezes parece um grito. Na repetição dos versos, antíteses, e pela própria construção harmônica da música, estresse adiado de resolução, sentimos uma tensão : tensão do autismo , do impasse do encontro com o diferente.

Já a canção escolhida para o fim do filme, Paciência, de Lenine, tem um outro andamento. É uma música num tom menor, lenta, e nos pede em sua letra para dar tempo ao tempo. Paciência. Ela diz: “ enquanto o tempo acelera e pede pressa , eu me recuso. Enquanto todo mundo espera a cura do mal, eu finjo ter paciência”.

A escolha das duas músicas neste filme foi muito feliz. No início O quereres fala uma coisa que escutamos sempre, cada vez que uma criança chega no nosso consultório trazida pelos seus pais com este  tipo de sintoma, o sintoma autista. Há um descompasso entre a expectativa dos pais e a criança. Há um desencontro, há dor. O filme fala do processo da descoberta do diagnóstico em cada família. Neste processo, algumas famílias se sentiram amparadas, outras não. Há os pais que se queixam de não terem tido a diferença do filho reconhecida pela pediatra. Há a mãe que diz que saiu em busca de tudo o que pudesse enlaçar a filha após saber que por causa da plasticidade neural seu cérebro eliminaria os neurônios  não utilizados até os 3 anos. Na fala dessa mãe a gente percebe o senso de urgência, na fala dos outros pais, a idéia da negligência. Como enganchar estes discursos com a paciência que estas crianças precisam para poder desabrochar? Como enganchar estes discursos com a necessidade de uma certa capacidade negativa que a gente acredita que tem de estar presente na abordagem daqueles que se propõe a atender essas crianças? É a mensagem transmitida pela musica de Lenine- pedido de um autista que precisa de tempo. Diferente do grito do Caetano, esta canção pede paciência, pede tempo, pede espera.

Há 3 palavras para pensar quando falamos de autismo. A primeira é espectro. O espectro autista é um grande guarda-chuva. Aqui podemos pensar nas caracteristicas autistas tendo um aspecto dimensional no humano. Ou seja, haveria um continuum, um borramento entre condições. Hoje com o conceito de espectro consideramos como autistas pessoas que ontem não consideraríamos. Pessoas com características mais esquizoides, mais narcísicas. Por outro lado, a categoria “psicose infantil” desparece das classificações. É como se não houvesse diferença entre essas condições.

Mas a palavra espectro também traz a ideia de um espirito maligno, uma assombração, fantasma. Um dos meninos do filme descobre o nome do que ele tem depois de anos : ele encontra um folheto no banco do carro e diz “mãe, eu sou isso?” . Ele vinha sendo cuidado sem dizer de si mesmo “eu sou Asperger”. Quando alguém diz “ Eu sou Asperger” onde está a sua subjetividade? Esse é o lado perigoso do diagnóstico. Como uma família se apropria, que uso ela faz do diagnóstico da criança? Ele vai ser usado para ajudar a família e a criança ou para assombrar e fechar as portas , para tirar a esperança de que mudanças podem acontecer?

Em medicina a gente usa o termo “fechar um diagnostico”. Então o que queremos dizer quando um diagnóstico é fechado? Fechado é a segunda palavra que eu quero destacar aqui.

(Como psiquiatra, essa é a angústia que tenho todas as vezes, absolutamente todas as vezes, que sou chamada a dar , ou fechar, um diagnóstico dessa natureza. Psiquiatra infantil, meu lugar de fala, traz um um contrato implícito: eu dou diagnóstico, eu proponho tratamento e as vezes prescrevo medicamento para a criança. Mas temo que o diagnóstico venha para fechar, para trazer um atalho que interponha este nome entre a criança e seu futuro. Todas essas descobertas da neurociência, sobre a sensorialidade, os modos diferentes de aprender, os aspectos da cognição social e dos circuitos atencionais devem ser campos de abertura para a compreensão da criança. Não devem vir para reduzi-la a um cérebro disfuncional. O momento do diagnostico é muito delicado. Os pais estão doídos, estão dentro da lógica do grito da música do Caetano. Querem palavra, querem escuta e querem direção.)

Após o momento do diagnóstico, vem a pergunta: o que fazer?

No filme vê-se projetos terapêuticos diferentes sendo realizados para cada criança. Pensar um projeto terapêutico é um desafio , e isso é mostrado no filme. Existem poucos lugares “prontos” para encaminhar uma criança, lugares únicos que reúnam os profissionais para trabalhar com ela em diferentes modalidades de atendimento. Vê-se no filme que os pais se associaram em Recife para trazer profissionais para atender seus filhos , fundando uma instituição. Júlia, uma das crianças, frequenta o Lugar de Vida, um dos poucos lugares em são Paulo com equipe muiltidisciplinar que leva em conta o pensamento psicanalitico. Encontramos no filme o atendimento fonoaudiológico, fisioterápico, o acompanhante terapêutico, o atendimento na escola, em diferentes abordagens. É muito interessante ver  como as famílias foram tentando organizar uma rede de pessoas para melhor cuidar de seus filhos. Na verdade há muitas necessidades e cada paciente tem questões diferentes. Questões motoras, de sensorialidade, de comportamento, de aprendizagem.

Pensar um projeto terapêutico é levar em conta muitas variáveis. Os recursos são limitados, não só do ponto de vista financeiro. É caro bancar uma equipe multisciplinar particular para o seguimento de uma criança, mas também é preciso definir prioridades, pontos de urgência, encontrar os recursos disponíveis. Os equipamentos públicos, como os Caps infantis, muitas vezes tem grandes filas de espera. É preciso que a equipe que atende a criança possa se conversar. Senão o atendimento do autismo pode ficar completamente esquizofrênico.

Tempo e paciência: é preciso amparar e cuidar dos pais.

(Eu tenho medo dos rótulos . Tenho recebido atualmente no consultório uma demanda nova de adultos que chegam dizendo que se descobriram autistas. Mais uma vez , penso- esse nome veio para fechar ou abrir uma compreensão da pessoa sobre si mesma?)

Finalmente, a terceira palavra para lembrar aqui é a palavra transtorno. Usamos transtorno, na psiquiatria moderna, como uma palavra que se contrapõe à ideia de doença. O objetivo é pensar o autismo não como uma doença, e sim como um conjunto de alterações de comunicação, comportamentos. Busca-se uma compreensão maior , na idéia de transtorno, como variações em relação a uma média e que causam sofrimento significativo para a pessoa. Mas esta palavra transtorno também traduz o incômodo imenso que estas pessoas (nos) provocam. O filme mostra um rapaz adulto com autismo e deficiência mental que é colocado num cercado, quase uma jaula. É a própria cena da segregação, fantasma que ronda a história da psiquiatria como a escravidão ronda , de modo espectral, as relações de classe neste nosso país extremamente desigual. E o que se faz com o que transtorna? Para quem precisamos de tratamento? Para a criança? Para os pais ou para a sociedade que quer normalizar a criança?

Podemos, entre o grito de Caetano e o pedido de Lenine, ouvir as vozes de sete pessoas e seus pais , professores, terapeutas- circulando entre as aberturas e os fechamentos, o transtorno e a acomodação, a aceitação, os possíveis e os impossíveis do autismo.

Agora gostaria de trazer aqui um trecho de Andre Green, numa conferência de 1996 , sobre Winnicot. Ele faz uma citação do livro Natureza Humana e diz “ Há um Winnicott profético neste livro”. Seguem as palavras de Winnicott ( grifo meu)

Eu espero por este dia ( o reconhecimento da psiquiatria infantil) e o venho esperando ao longo de três décadas. Mas o perigo é que o lado doloroso deste processo seja evitado, num esforço para encontrar um atalho; as teorias serão reformuladas , propondo que os distúrbios psiquiátricos não são produzidos por conflitos emocionais, mas pela hereditariedade, constituição, desequilíbrio hormonal, ambientes brutais e inadequados!

Diz Green:

Na época Winnicott não podia ter conhecimento das neurociências ou das ciências cognitivas. Se as palavras estavam faltando, as coisas já estavam ali.

Winnicott é profético por intuir este atalho que percebemos claramente hoje em relação ao conceito e ao tratamento dos transtornos mentais da infância. A psiquiatria infantil é muito recente e temo que já esteja morrendo mesmo, no nascedouro. Sonhada por Winnicott, foi construída também por pessoas como Kanner e Asperger que observaram crianças diferentes e as descreveram . Antes, todas essas crianças eram consideradas débeis mentais. Crianças psicóticas, autistas, com todo tipo de síndrome ou deficiência mental eram segregadas e consideradas idiotas, “não educáveis”. Aprendemos muito. Mas ainda temos dificuldade em entender aonde está o problema de hardware, o problema cerebral, genético, hereditário, ou quais sejam, e quais são as questões de software… aqui onde cabe o investimento no que conhecemos das teorias das relações de objeto . Onde o jeito de reclamar a criança para o encontro pode fazer muita diferença no destino dela.

* Do cotidiano da clínica a um instrumento de pesquisa: Protocolo de Investigação Psicanalítica de Sinais de Mudança em Autismo (PRISMA) – Correio APPOA

**AUTISMO E VÍCIOS (scielo.br)

Acalantos

“meu coração me acordou chorando ontem à noite

o que posso fazer eu supliquei

meu coração disse

escreva o livro

Rupi Kaur ( Outras jeitos de usar a boca, 2014 )

Esta história começa com a perda de um vovô querido que me comoveu muito, colhido pela Covid. E este sobressalto no peito. Meu coração disse: escreva. E então a idéia de um acalanto me veio : a composição de Aldir Blanc e Cristóvão Bastos que fala disso, de avós e netos. Fiz a postagem ( https://www.gestoespontaneo.com.br/avos/) mas meu coração não sossegou.

Porque no meio do caminho da minha busca musical, navegando na internet, dei em outras terras . Topei com um outro avô e um terceiro acalanto, que não conhecia. Navegando na internet também cheguei à Bahia

e ouvi:

Ou seja: encontrei Caetano, vovô moderno, observando seu neto Benjamim aprendendo a dormir! Cantava assim:

O autoacalanto de Benjamin
Que é, por enquanto, caçula de mim
É um deslumbramento
Ele emula o canto de um querubim, curumim

O que é mesmo que isso me ensina?
Um ser que a si mesmo se nina
É um quase lamento
Já é nota de tom
E tem cor de jasmim

Eu nunca tinha visto nada assim

O alumbramento do avô reparando no neto que começa a compor alguma coisa de si, quase um lamento, acalentando a si próprio… eu também não tinha visto nada assim. O avô não só observa o neto, como traduz o que vê, na letra da canção – e o imita. O autoacalanto que ajuda Benjamim a dormir é por seu avô reproduzido, brincado, na própria canção, nas vocalizações que ouvimos após os versos finais.

Coisa de vô e neto.

Quem tem bebê pequeno sabe que aprender a dormir sozinho não é fácil. A possibilidade de um bebê se autoacalentar, principalmente em algumas fases em que se angustia mais de estar separado da mãe : não é pouca coisa não! A nossa colega Gilca nos fala disso em seu post ( https://www.gestoespontaneo.com.br/o-sono-dos-bebes/).

Assim, o que o avô percebe, e faz com que ele se en-cante, é o uso que Benjamin faz das vocalizações para ninar-se a si mesmo.

Este acontecimento psíquico não escapou dos olhos de Winnicott.

Em “O brincar e a Realidade” o autor nos conta desta descoberta e inaugura um campo muito rico de pensamento para a psicanálise . Ele nomeia de objetos transicionais aquelas primeiras posses dos bebês que podem ser o ursinho, o “naná”, ou até a ponta de um cobertor e que os ajuda a se consolar e ficar bem sem a presença da mãe. Ele nos ensina que mesmo palavras que o bebê canta ou repete podem ter para ele um valor transicional, no sentido de permitirem um intercâmbio entre ele e o mundo, confortarem, reassegurarem, na medida em que encarnam ,para ele, a mãe. Estes objetos estão numa área intermediária que “mistura” seu mundo interno e a realidade, uma área de verdadeiro brincar, que ainda não é para o bebê pura imaginação ( pois o objeto tem de estar lá na sua concretude) mas já denota uma capacidade de ir além da concretude das coisas, uma qualidade do que em nós é o psiquico e que nos bebês pequenos está em estado nascente.

Um avô que observa esta coisa acontecendo em seu neto e a torna música nos lembra o quão deslumbrante pode ser a percepção, para o adulto, deste acontecimento. O poeta, o artista, é aquele que olha uma coisa corriqueira, comum, e se deslumbra. Winnicott vai entender a cultura como uma derivação dos objetos transicionais do bebê: na medida em que os espaços de troca culturais são lugares privilegiados onde ou Eu e o mundo se misturam sem que se precise abrir mão da fantasia e da sensação de ter criado, inventado, o mundo. A cultura é o sonho compartilhado com o mundo real.

Vovô Caetano faz a mesma coisa que Benjamin quando compõe sua canção.

Coisa de vô e neto.

Agora vamos rodar o filme para uns cem anos atrás. Há cem anos , também assolado por uma epidemia, um outro avô escreveu sobre seu neto, a partir da observação dos acontecimentos psiquicos que podia inferir das suas brincadeiras. A história é mais ou menos assim.

Este avô foi passear na casa da filha ( dizem que era a sua filha predileta) e observou o neto brincando com um carretel. Ele sacou, como Caetano, que as vocalizações da brincadeira estariam representando a imagem mental da continuidade-descontinuidade da presença materna! A esta altura você já deve estar imaginando que o vovô aqui era o Freud.

Freud e seus netos, filhos de Sophie

Sobre o relato da brincadeira do neto, transcrevo abaixo suas próprias palavras:

“As diferentes teorias sobre a brincadeira das crianças … esforçam-se por descobrir os motivos que levam as crianças a brincar, mas deixam de trazer para o primeiro plano o motivo econômico, a consideração da produção de prazer envolvida. Sem querer incluir todo o campo abrangido por esses fenômenos, pude, através de uma oportunidade fortuita que se me apresentou, lançar certa luz sobre a primeira brincadeira efetuada por um menininho de ano e meio de idade e inventada por ele próprio. Foi mais do que uma simples observação passageira, porque vivi sob o mesmo teto que a criança e seus pais durante algumas semanas, e foi algum tempo antes que descobri o significado da enigmática atividade que ele constantemente repetia.

A criança de modo algum era precoce em seu desenvolvimento intelectual. À idade de ano e meio podia dizer apenas algumas palavras compreensíveis e utilizava também uma série de sons que expressavam um significado inteligível para aqueles que a rodeavam. Achava-se, contudo, em bons termos com os pais e sua única empregada, e tributos eram-lhe prestados por ser um “bom menino‟. Não incomodava os pais à noite, obedecia conscientemente às ordens de não tocar em certas coisas, ou de não entrar em determinados cômodos e, acima de tudo, nunca chorava quando sua mãe o deixava por algumas horas. Ao mesmo tempo, era bastante ligado à mãe, que tinha não apenas de alimentá-lo, como também cuidava dele sem qualquer ajuda externa. Esse bom menininho, contudo, tinha o hábito ocasional e perturbador de apanhar quaisquer objetos que pudesse agarrar e atirá-los longe para um canto, sob a cama, de maneira que procurar seus brinquedos e apanhá-los, quase sempre dava bom trabalho. Enquanto procedia assim, emitia um longo e arrastado “o-o-o-ó”, acompanhado por expressão de interesse e satisfação. Sua mãe e o autor do presente relato concordaram em achar que isso não constituía uma simples interjeição, mas representava a palavra alemã “fort.” Acabei por compreender que se tratava de um jogo e que o único uso que o menino fazia de seus brinquedos, era brincar de “ir embora” com eles. Certo dia, fiz uma observação que confirmou meu ponto de vista. O menino tinha um carretel de madeira com um pedaço de cordão amarrado em volta dele. Nunca lhe ocorrera puxá-lo pelo chão atrás de si, por exemplo, e brincar com o carretel como se fosse um carro. O que ele fazia era segurar o carretel pelo cordão e com muita perícia arremessá-lo por sobre a borda de sua caminha encortinada, de maneira que aquele desaparecia por entre as cortinas, ao mesmo tempo que o menino proferia seu expressivo “o-o-ó”. Puxava então o carretel para fora da cama novamente, por meio do cordão, e saudava o seu reaparecimento com um alegre “da” (ali). Essa, então, era a brincadeira completa: desaparecimento e retorno. Via de regra, assistia-se apenas a seu primeiro ato, que era incansavelmente repetido como um jogo em si mesmo, embora não haja dúvida de que o prazer maior se ligava ao segundo ato.

A interpretação do jogo tornou-se então óbvia. Ele se relacionava à grande realização
cultural da criança, a renúncia instintual (isto é, a renúncia à satisfação instintual) que efetuara ao deixar a mãe ir embora sem protestar. Compensava-se por isso, por assim dizer, encenando ele próprio o desaparecimento e a volta dos objetos que se encontravam a seu alcance.” ( Freud- Além do princípio do prazer -1920).

Quando publicou este texto, em 1920, contando a história da brincadeira do neto, Freud havia acabado de perder sua filha Sophie, a mãe deste garotinho, para a gripe espanhola!

Entre Freud, Winnicott, e hoje, muita coisa mudou e muita coisa permanece a mesma.

Cem anos depois, cá estamos nós, assolados por uma nova pandemia, que nos levou muitos avôs ( inclusive o vovô Aldir Blanc), assim como no passado a gripe espanhola levou Sophie. Por que o texto de Freud permanece atual?

Aqui está um avô que observa. Diferente de Caetano, que compôs uma musica , este avô também tentou entender, traduzir, as vocalizações de seu neto e o nascimento de algo psiquico que aquilo representava. Este mesmo homem, assolado pela dor da perda da mãe deste garotinho, publicou no mesmo ano desta morte um trabalho profundo e audacioso ( Além do principio do prazer) onde tentou entender a natureza da repetição no acontecer psíquico. É neste trabalho que ele fala desta brincadeira do carretel. O que ele não fala, e hoje podemos pensar, é que na medida em que escreve também brinca, como seu neto, sentindo falta de sua amada Sophie.

Ele , no decorrer do seu texto, termina por desenvolver idéias sobre a destrutividade que nos ataca por dentro- a qual chamou de instinto de morte. Ainda hoje, recorremos a este texto, lemos , relemos, na busca de entender essa onda de morte que nos assola. Este presidente que, sem máscara, nos assusta. Este vírus que parece mais ligeiro do que a gente, do que a nossa inteligência, nossa capacidade de fazer ligações.

E vamos tentando fazer ligações.

Ligar, desligar, brincar, simbolizar, escrever, compor. A história que começa com um avô perdido, chega na Bahia, encontra outro avô, coloca o Winnicott na caravela, volta cem anos do tempo, mais um avô, mais um neto, mais uma perda, outra pandemia. Conseguem me acompanhar nesta viagem?

(o que posso fazer eu supliquei

meu coração disse

escreva o livro )

No ano em que perdeu sua filha o avô Freud não fez uma canção – ele mesmo dizia não ser um cara muito musical- e sim escreveu um trabalho que nos encanta até hoje. Este trabalho com certeza fez parte do processo de Winnicott na formação da idéia do objeto transicional. Pensemos o bebê representando o processo de continuidade-descontinuidade da presença materna por meio do jogo do carretel. Pensemos Benjamin, ninando a si mesmo, cem anos depois. E entre Caetano e Freud, Winnicott- que não foi avô mas mesmo assim foi grande em descrever muitos alumbramentos no desenvolvimento das inúmeras crianças que observou ao longo dos anos da sua clínica.

Sim, coisa de avô e neto: um acalanto leva ao outro, e Freud aprende com seu neto! Sua escrita de “Além do principio do prazer” , iniciada antes, mas publicada no ano da morte da filha, também é uma elaboração da perda que sofre.

O que é esta combinação de amor tão poderosa ? Um dos terrenos mais férteis para estes acalantos e composições todas que nos ajudam, enfim, a compreender o humano . Para mim a psicanálise é isso.

E aqui estou euzinha- brincando de escrever no blog e reunir dentro de mim estes mestres que admiro.

Talvez o mesmo motivo que fez vovô Freud escrever, vovô Caetano cantarolar, e seus netinhos brincarem seja o que me move agora a postar, neste blog, uma certa costura de todos estes retalhos que me ajudam a pensar , resistir, lidar com este momento difícil da pandemia e as perdas que ela vem nos trazendo.

É também um autoacalanto…

retirado de : http://ocantinhodadiversao.blogspot.com/2011/09/brincadeiras-folcloricas.html

( dedico este post à Elisa Cintra, que vem trabalhando conosco , em seu curso, o brincar. )

avós

Em maio do ano passado perdemos para o Covid também Aldir Blanc, 73 anos, lá em Vila Isabel, onde quem é bacharel não tem medo de bamba. Psiquiatra como nós, formado em medicina, um dos maiores compositores, letristas, escritores, poetas brasileiros. Entre tantas composições que fazem já parte do nosso cancioneiro, da memória cultural do nosso país, algumas são menos conhecidas.

É o caso de “Acalanto pros Netos” , composta em parceria com Cristóvão Bastos.

Aldir contou numa entrevista (http://www.abi.org.br/entrevista-aldir-blanc/) que os netos para ele foram como flores brotando num deserto! Em suas palavras:

” Em outubro de 91, sofri um acidente de carro. Fraturei o fêmur de maneira incomum, fui submetido a uma séria cirurgia e, não por culpa dos excelentes médicos, fiquei com a perna dura. Após oito meses de cama, isso me arrasou e eu comecei lentamente a desistir. Não só de melhorar, mas talvez de viver. No ano seguinte, fui surpreendido com a chegada de três dos quatro netos, e a minha vida mudou inteiramente. Sei que a metáfora é batida, mas foi como se flores brotassem no deserto. “

Trago hoje aqui o Aldir para que suas palavras nos confortem em meio a este deserto que nos cerca, neste momento em que tantos vovôs e vovós estão partindo fora do combinado. O Aldir vovô escreveu este acalanto em que a sensação de continuar-se nos netos, flores no deserto , é poeticamente representada. A letra é tão linda, que transcrevo aqui:

Na primeira febre, a minha febre
E quem é quem pedindo proteção?
Ponho a mão na testa do meu neto
E é meu avô que está estendendo a mão

Nessa comunhão dos três
Eu sou avô do meu avô
Ele é o menino ali
E ri das confusões
Que o grande amor pode fazer
É um milagre essa multiplicação
De mãos e febres por buscar ternura
E então com medo de morrer
A fragilíssima trindade jura
Ficaremos sempre assim por perto
E quando meu neto tiver neto
Uma febre unindo o que passou
Dirá pro tempo: oi, meu avô.

É por aí: um piano em debussy
O morcego e o sapoti na praia dos coqueiros
O avô sou eu numa bicicleta
De canelas finas, mexe com as meninas

Explode a trovoada, a chuva canta
E a enxurrada leva todos nós
Fracionados sim, mas fusionados
Rumo ao delta, à queda, ao fim, à foz

E uma vez que voltaremos
Numa febre que menino-avô terei
Até o filósofo sorri
“é o mesmo rio. eu me enganei”

Escutem só:

na voz de Clarice Grova

É o mesmo rio…

Avô e neto fusionados, fracionados, pelo tempo que é eterno e não existe.

Mas o acalanto não termina! Uns anos depois, eis que Cristóvão Bastos recebe de Roberto Didio a letra de Acalanto pros Avós. Musicou na hora!

Uma linda continuação da própria idéia da continuação que a primeira letra trazia:

Quem me chamava pra brincar no chão
E viajava pela imensidão
Num cavalo alado de madeira
Me rodeava querendo atenção
Pousava o rosto no meu coração
Era noite azul com giz de cera

Quem escalava o time de botão
Também ganhava o céu no seu balão
Eu nem levantava da cadeira
Então corria em minha direção
Pegando a velha alma pela mão
Pra subir na jabuticabeira

Do meu pijama não largava, não
Adormecia noutra contação
Fábulas, no fundo, verdadeiras
O sol passava o braço no portão
Sanhaço vindo pela contramão
Minha rua amanheceu na feira

A luz sumindo, eu me sentindo mal
Sabendo que não estaremos sós
O grande amor partiu igual cristal
Consigo ouvir a voz dos meus avós
Cruzando o mesmo rio, sem avisar.

Querem ouvir? Aqui está.

Depois disso…fico já sem palavras.

Este post é dedicado ao meu amigo Ricardo

CLANDESTINO

Faltavam apenas trinta minutos para começar o espetáculo. Por trás da cortina abri uma pequena fresta para espiar a plateia, e para minha surpresa visualizei apenas duas cadeiras vazias no fundo da sala. Incrível como aquelas duas cadeiras foram suficientes para me paralisar. Senti um frio na espinha e um suor gelado escorrendo pelo meu corpo. Neste momento senti o intruso me visitar.

               Como era de costume em todos os dias de apresentação, enquanto finalizava minha maquiagem, já não conseguia mais me reconhecer. Fui remetida para o dia de meu nascimento. Gestada como intrusa, intrusa por nascença:  a fórceps. Não há fotos, mas o registro carrego comigo como uma cicatriz.

                Quantos milhares de olhares não são suficientes para eu ser reconhecida ? Que diabos esses dois lugares me fazem tanta falta ainda, a ponto de me impedir, de me suspender da vida. Olhares que não puderam ser acolhidos, olhares que não puderam ser refletidos em sua própria imagem.

               A garganta seca e a respiração fica mais curta. Dizem que gargarejo com água morna, sal e gengibre ajuda. E não é que a sabedoria popular está certa. Já sinto o ar penetrar dentro de mim com esse simples cuidado.

               Faltam apenas dez minutos para começar quando ouço o primeiro sinal tocar. A plateia barulhenta começa a se acalmar. Dentro de mim procuro um lugar, um colo talvez. E como se uma mãe interna me fizesse um afago me trazendo confiança.

 Cinco minutos depois, toca o segundo e o silêncio se faz presente. Esse é um momento de estar só. Como é difícil conquistar a capacidade de ficar só sem ter vivenciado a presença viva e real de alguém. Os minutos se tornam eternidade neste instante. Puxo a respiração o mais fundo que consigo e vou procurando soltar o ar devagar.

               Quando toca o terceiro sinal, as luzes se apagam, abrem-se as cortinas e a história é contada. A história poderá ser recontada mais uma vez, inúmeras vezes se for preciso. É um novo nascimento com outras possibilidades de olhares. Neste momento, já não sinto mais a presença do meu intruso por mais que que eu sinta que as duas cadeiras sempre estarão vazias em todas as minhas apresentações.

Benzinho- a Nossa Pietá brasileira


Benzinho-  A nossa pietá brasileira

Sobre a relação do homem com sua mãe, a nossa blogueira  do Gesto Espontaneo , Cecilia Hirchzon escreve *:

“O homem, para ser “si mesmo” e para constituir a sua identidade masculina, terá de se separar desta Mulher,  de quem dependeu totalmente. Já a mulher, para se constituir como tal, não precisa estabelecer necessariamente a separação – pode manter-se identificada com essa Mulher. Observamos, portanto, duas direções distintas: enquanto a mulher lida com a Mulher dentro de si através da identificação, o homem tem que se separar, tornar-se único, o que se constitui em uma urgência no desenvolvimento da sua identidade. A especificidade da identidade feminina caracteriza-se por ser geracional e infinita, isto é, podendo manter dentro de si três mulheres: o bebê menina, a mãe e a mãe da mãe. Essa condição possibilita à mulher o desempenho de diferentes funções sem violar a sua natureza. Pode ocupar posições diversas nas brincadeiras, onde ora é mãe, ora é filha, alternando papéis. Ou, ainda, na idade adulta, exercendo a sua feminilidade, ocupando o lugar de mãe e/ou mulher sedutora. Enquanto isso, o homem não se funde nessa linhagem – sua condição básica é a de ser um”.

No belíssimo Benzinho, de Gustavo Pizzi,  o primogênito de Irene, mulher brasileira , mãe de quatro filhos, vai embora para a Alemanha. Foi  convidado por uma universidade  interessada no seu talento esportivo. O adolescente vibra enquanto a mãe se quebra, assustada com a partida súbita, fora de hora, do filho. A história de Benzinho é o processo que se desencadeia com a chegada deste convite que tanto abala a Irene  . O principal foco do filme é o  ponto de vista da mãe que tenta aceitar a situação. De sua alegria e de sua tristeza por ver o filho partir .  Irene é “Pietá” : numa das cenas mais lindas que já vi no cinema, a mãe embala seu filho numa bóia , aproveitando este momento de grande intimidade entre eles, já elaborando sua partida…

O amor materno , no filme Benzinho, se desdobra em suas mais variadas possibilidades  ( como diz a Adelia Prado, mulher é desdobrável) . A mãe suficiente boa, por sua saúde e sua capacidade de lidar com a perda e a separação, aparece na interpretação de Irene. Mãe suficientemente boa que se atrapalha, fica brava, dá chilique, chora, pira, respira, mas, enfim, ama. A gente fica apaixonada pela Irene. Embora abatida, apoia o seu filho e o desejo dele, reconhecendo sua alteridade, lidando de forma muito humana e amorosa com a separação.

O longa foi escolhido como o filme brasileiro que vai disputar uma vaga entre os quatro finalistas ao Prêmio Goya de Melhor Filme Ibero-americano, considerado o Oscar espanhol.

E, para refletir…uma música e um poema.

O gato andaluz*

(Rosa Alice Branco)

O meu filho caminha por aí. Já não sei

se é o Douro ou o Darro que lhe embala o sono.

Nem onde guardei as datas e o nome das ruas

ou se vou te encontrar logo à tardinha.

Deixei-me de saber e de pensar que sei.

Um gato arranha à minha porta a miar em andaluz.

Eu arranho a porta a dois dias daqui, duas horas

De avião. É proibido miar nos voos europeus.

Engulo a saliva do dia e assim se faz noite.

E não há gaivotas a gritar por mim. Por mim

estou eu à janela do avião. As malas

com que hei de dizer-te: cheguei. O teu abraço

como um rio qualquer onde corra água.

Esquecer o que ficou para trás e a língua que me fala.

Levar o copo à boca onde nasce a boca,

A fonte do quintal, a nascente do mar. O meu filho

Voa como se caminhasse descalço. Cruzamo-nos

no horizonte sobre a linha do rio onde deságua a luz.

E as palavras aquietam-se no seu nada.

( do livro Soletrar o dia, Ed escrituras, 2004)

o filme pode ser visto pelo Now ou Youtube nos links: https://www.nowonline.com.br/filme/benzinho/385245