Gestos Alongados

Eu queria levar banana-maçã pro meu pai. Não que ele tivesse me pedido. Estava na lista dele, mas no mercado não tinha. Sei disso porque faço as compras para ele desde março. Ele tem mais de noventa anos e neste 2021 está recluso há catorze meses. Hoje levo.

Conduzo o carro através do seis quilômetros que nos separam. Não é longe, mas nessa pandemia, as coisas se encompridam. Os gestos se alongam em etapas. Antes de sair, coloco máscara de proteção (duas), troco os sapatos, pego o elevador, torço para não encontrar com muita gente.

Uma vontade grande de estar na rua, com ganas de sair dela logo.

No caminho, claro de sol, abro as janelas quando pego velocidade. Sensação de liberdade provisória. É sábado à tarde e vejo poucas pessoas nos pontos de ônibus. Estão com máscaras no rosto, no queixo, nas mãos. Conversam e riem.

Os fins de semana são tempos de ônibus alegres, pessoas em grupo, o tempo mais largo, folgado. Como suas roupas, soltas, sem cintos, fivelas, compromissos. Perto do parque do Ipiranga, ciclistas e pessoas correndo. Um cachorro escapa da guia e vai ao encontro de dois labradores. Uma pequena confusão de latidos e correrias. Na Vila Mariana, passo em frente a restaurantes com mesas ao ar livre, nas calçadas. Famílias em fim de almoço, crianças gritando. Gente querendo viver, difícil pensar na morte.

Chego na rua onde ele mora, estaciono logo. Volto ao ritual. Máscaras, elevador, tirar sapatos. Meu pai abre a porta e se afasta. Agora já se acostumou a não vir me abraçar. Estar com ele também requer gestos alongados. Lavar as mãos, sentar longe, vontade de estar próxima, medo de ficar muito perto. Apartar-se do pleno viver, preservar a vida.

Sinto o piso frio da cozinha sob meus pés. Vejo a quietude da sala, os móveis escuros, um violino mudo em cima de uma poltrona, o teclado encapado em plástico. O sol filtrado pelas cortinas atenua os contornos.

Coloco as bananas na fruteira. Ele sorri. Obrigado, filha. Ele sabe que não precisa delas. Eu também sei. Mas ele gosta e não tinha vindo nas compras.

Venha se sentar.

O apartamento, com seus sofás, quadros, porta-retratos, respira todo à minha mãe. Meu pai vive sozinho em meio às suas lembranças há vinte e cinco meses.

Estar com ele também requer estirar sentimentos. Para que caibam a ausência e a presença dela, dele, dos dois.

Estar com ele requer visitar a falta dela. Na sala, no quarto, nos olhos dele. Por isso tudo é tão comprido. Alongam-se os silêncios, as pausas. Meu pensamento, dilatado, comprime o passado e o futuro.  Revejo a mesa, almoços, risadas e antevejo a sala vazia. Sentimentos condensados.

No quarto, dentro do armário, as roupas soltas de seus hábitos, aguardam um destino.

As caixas de remédio empilhadas perto dos copos me alertam para verificar se estão acabando. Conto os comprimidos de cada uma. Três, seis, nove, treze.

Precisamos pedir pra farmácia, pai. Ele faz que sim com a cabeça e, como se lembrasse de alguma coisa, se levanta, pega a chave e de forma ritmada dá corda no relógio antigo de parede. Os sabiás cantam lá fora, meio da primavera. Os ponteiros seguem se movendo. Vamos comer as bananas. 

“Winnicott  afirma que a criatividade é a base do viver saudável, e que é esta condição que faz com que a vida valha a pena. A possibilidade de viver criativamente é relacionada à qualidade da provisão ambiental recebida no início da vida. Com base na teoria de Winnicott sobre a criatividade, é possível pensar o trabalho do luto como estando vinculado à possibilidade de realizar um ato criativo, com o objetivo de reinstalar a idéia de que a vida vale a pena.” Barone,K.C. O trabalho de luto à luz dos fenômenos transicionais. Caderno Ser e Fazer, 8 outubro 2004

Imagem: Pilar Rodriguez

Os elementos masculino puro e feminino puro na clínica

EXTRAIDO DE: Os elementos masculino puro e feminino puro na clínica: a história de Vítor
Cecilia Luiza Montag Hirchzon, Maria Cecilia Schiller Sampaio Fonseca ,Maria Lúcia de Toledo Moraes Amiralian

( Natureza Humana 5(2): 443-457, jul.-dez. 2003).

Winnicott coloca-se como um psicanalista preocupado especialmente com a compreensão do ser humano e seu processo de desenvolvimento. “Desenvolvimento é a minha especialidade”, diz ele na palestra “Este Feminismo”, de 1964, e é dessa maneira que se propõe compreender o caminho percorrido por homens e mulheres desde a concepção até a morte. O eixo central de sua teoria é o processo de amadurecimento, a continuidade do ser. O seu foco é no aspecto sadio do desenvolvimento, onde considera até a morte natural “como a derradeira marca da saúde” . Saúde para ele significa não apenas ausência de doença, como algumas vezes é conceituada, mas sim uma condição que possui em si um aspecto positivo. O desenvolvimento inclui a compreensão das falhas e ausências que tanto podem impedir como propiciar que ele seja pleno. Dentro desse processo de amadurecimento, escolhemos nos deter nos elementos masculino puro e feminino puro, que consideramos uma abordagem de grande originalidade na obra de Winnicott. A constatação da existência desses elementos ocorre numa sessão onde, após longo tempo de trabalho com um paciente, surge uma situação inusitada.

Relata que esse paciente, apesar de sucessos em sua vida e outras análises anteriores, não se sente satisfeito. Continua na análise atual em busca de algo que ainda não encontrara. A sessão a que se refere passa-se em torno da “inveja do pênis”, como se fosse vivida por uma menina e não por um homem adulto, casado e com uma vida profissional ativa. Isso surpreende Winnicott, que se vê interpretando “Estou escutando uma garota. Sei perfeitamente bem que você é homem, mas estou escutando uma garota e falando com uma. Estou lhe dizendo: você está falando sobre inveja do pênis”. Enfatiza que isso não tem nada a ver com homossexualidade . O paciente responde aliviado: “Se eu fosse falar a alguém a respeito dessa garota seria chamado de louco”. Ao que Winnicott responde: “Não é que você tenha contado isto a alguém; sou eu que vejo uma garota e escuto-a falar, quando  na verdade há um homem em meu divã. O louco sou eu”. O alívio provocado era devido a haverem chegado, na transferência, a uma vivência que acompanhava o paciente por toda a sua vida. Era por tocar numa cisão que muito cedo se estabelecera dentro dele, na busca de ajustar-se a uma expectativa de sua mãe. Esta havia desejado que ele, seu segundo filho, fosse menina e o havia visto e tratado como tal. Essa situação tão precoce o levou a incorporar a “loucura da mãe”, mantendo essa cisão quase total entre ser menino e menina, sentindo-se “louco”. Quando Winnicott assume e traduz a loucura da mãe, provoca o alívio mencionado e novos rumos na condução de sua análise. Encontra-se então Winnicott diante da tarefa de procurar entender e elaborar o que se passara, já que havia se deparado com algo novo, que não tinha pensado até então e que não tinha nenhuma referência em outros autores. A partir daí começa a formular suas idéias sobre o que seriam esses elementos feminino e masculino puros. Afirma que não é um conceito novo na psicanálise a idéia da predisposição para a bissexualidade: existem elementos masculinos e elementos femininos em todo ser humano. A originalidade de seu pensamento está na concepção de elemento feminino puro e elemento masculino puro como modalidades de relação de objeto, definindo-as como independentes da pulsão, tal como esta é entendida nos textos freudianos. É importante ressaltar que a teoria de desenvolvimento de Winnicott não se apóia na teoria da libido, como proposta por Freud. Ele interpreta a teoria da sexualidade sob outras luzes e propõe um novo paradigma à psicanálise . Winnicott apóia-se no amadurecimento pessoal, em que contempla como aspectos fundamentais as tarefas de constituição do si mesmo (self ) e de sua interação com o ambiente. Há uma tendência inata denominada continuidade do ser, espécie de mola propulsora, que permite ao ser humano percorrer um caminho que o impele de uma dependência absoluta à busca da independência. Winnicott parte da concepção de que no início da vida há uma dependência absoluta, em que o bebê não se diferencia do seio: ele é o seio. Embora, do ponto de vista do observador externo haja a mãe e seu bebê, do ponto de vista do bebê, o que existe é uma unidade existencial: o bebê é o seio que o alimenta, o colo que o sustenta, as mãos que o acariciam. É o mundo do objeto subjetivo, onde ainda não se constituiu a externalidade. Nas primeiras mamadas não há diferença entre o eu e o não-eu, há um estado de indiferenciação. Para que o bebê vá prosseguindo o seu caminho em direção à independência, é necessário que a mãe apresente repetidamente o seio, de uma forma a que Winnicott se refere como “monótona”, ou seja, repetitiva, mas com prazer (não insípida). Essa situação propicia ao bebê a possibilidade de criar esperança, de ter confiança, de poder acreditar no mundo, o que permite a crescente separação e a vivência da sua dependência. A mãe que está à disposição de seu bebê, permitindo que ele seja, estaria vivendo esse tipo de relação de objeto chamada elemento feminino puro: ambos estão sendo. Nesse momento há a identificação primária do bebê com sua mãe e a identificação com aquela que é abre caminho para a constituição do si mesmo e do sentimento do real. A identidade com o elemento feminino puro é condição fundamental para todas as identificações futuras que ocorrem na vida de cada um. A partir do ser, o bebê pode ir fluindo no seu continuar a existir, dando seqüência às tarefas do processo maturacional. Há um emergir do si mesmo (self) e do sentido de identidade primária. Nessas primeiras relações o bebê vive a ilusão de onipotência e a mãe suficientemente boa coloca o que o bebê cria no lugar e no tempo em que necessita. O bebê sente-se um deus criando o mundo. Os fatos do mundo vão adquirindo sentido para ele, preparando para, gradativamente, ir suportando a desilusão, a frustração de que o mundo existe antes de tê-lo “criado”. Essa atitude da mãe permite que a experiência primária de criação vá sendo internalizada, constituindo-se numa fonte interna do viver criativo. O bebê começa a perceber a distinção entre o eu e o não-eu; o ego mais organizado, que se diferencia e se separa pode agora pôr em ação o elemento masculino puro, que é ligado ao fazer. É o fazer emergindo do ser primordial. Como diz Winnicott: “Após ser – fazer e deixar-se fazer. Mas ser, antes de tudo” . Estamos falando de criatividade como Winnicott a considerou: uma proposição universal ligada à saúde, significando uma atitude em relação à realidade externa que implica estar vivo, ou seja, um sentimento de que a vida vale a pena ser vivida. Em “Vivendo de modo criativo”, uma das suas últimas conferências (1970), ao definir criatividade, o autor afirma:

Para ser criativa, uma pessoa tem que existir e ter um sentimento de existência, não da forma de uma percepção consciente, mas como uma posição básica, a partir da qual operar. Em conseqüência, a criatividade é o fazer que emerge do ser, que indica que aquele que é, está vivo. (Winnicott 1986h, p. 31)

Diferencia essa criatividade da criação de obras de arte, sendo esta uma forma mais elaborada, diferenciada. Esse ato criativo, próprio do artista, tem uma especificidade que foge ao nosso tema neste momento. Para existir a criatividade, o elemento feminino puro seria o primordial, próprio da fase de fusão com a mãe. Essa abordagem é diferente de outras teorias psicanalíticas, nas quais a origem da capacidade criativa se situaria em estágios e mecanismos mais avançados de desenvolvimento mental. Para Freud, a capacidade criativa seria uma sublimação de pulsões instintivas que não podem se realizar como tais. Para Melanie Klein, seriam reparações de aspectos agressivos ligados à culpa na posição depressiva. Em Winnicott, a criatividade tem a característica de ser primária, constitutiva, determinante de saúde e amadurecimento. Retomando a questão do fazer, temos que falar dos instintos, pois o elemento masculino puro não só se apóia, mas pede ação mobilizada pelo instinto. A partir do momento em que começa a experienciar os instintos como próprios, vê-se o ser humano diante de uma nova tarefa, que é como lidar e integrar ao si mesmo (self) a vida instintiva. Essa vivência no próprio corpo, assim como as diferenças biológicas dos sexos, tem papel fundamental. As diferenças anatômicas e  hormonais entre os sexos são obviamente determinantes de como será o contato, tanto com a sexualidade em si, como com o mundo. Ao seguir o seu curso começam a aparecer as diferenças relativas ao gênero: características mais marcadamente masculinas ou  femininas. É um tema importante para futuras reflexões. Nos primórdios do desenvolvimento, o bebê não precisa atender às suas necessidades, pois a mãe é quem vai atendê-las. À medida em que vai amadurecendo, o si mesmo (self), agora mais definido, o Ego já com a função que diferencia o eu do não-eu, vai sendo capaz de sentir as necessidades como próprias, buscando atendê-las. Quando há falhas nesse processo, surgem dissociações entre o ser e o fazer. Uma das conseqüências é a perda do viver criativo, o “si mesmo” (self) passando a ser aquele que está sempre respondendo e se adaptando à realidade externa, em detrimento do “si mesmo” (self) verdadeiro.

Outro conceito de grande utilidade clínica, próximo a este, apontado por Winnicott no processo de amadurecimento e separação, foi observado no caso clínico de Vítor, relatado adiante. Winnicott afirma que, apesar da dessemelhança entre os sexos, há uma semelhança básica em relação à questão primordial da dependência absoluta, que o leva a propor “um fenômeno separado que denominamos Mulher… que é a mãe não reconhecida dos primeiros estágios de vida de todo homem e de toda mulher”. Podemos agora refletir sobre a questão da diferença entre os sexos, partindo de como cada um deles vai elaborar essa dependência absoluta de uma mulher. Isso é de fundamental importância para o desenvolvimento da identidade de cada sexo. O homem, para ser “si mesmo” e para constituir a sua identidade masculina, terá de se separar desta Mulher,  de quem dependeu totalmente. Já a mulher, para se constituir como tal, não precisa estabelecer necessariamente a separação – pode manter-se identificada com essa Mulher. Observamos, portanto, duas direções distintas: enquanto a mulher lida com a Mulher dentro de si através da identificação, o homem tem que se separar, tornar-se único, o que se constitui em uma urgência no desenvolvimento da sua identidade. A especificidade da identidade feminina caracteriza-se por ser geracional e infinita, isto é, podendo manter dentro de si três mulheres: o bebê menina, a mãe e a mãe da mãe. Essa condição possibilita à mulher o desempenho de diferentes funções sem violar a sua natureza. Pode ocupar posições diversas nas brincadeiras, onde ora é mãe, ora é filha, alternando papéis. Ou, ainda, na idade adulta, exercendo a sua feminilidade, ocupando o lugar de mãe e/ou mulher sedutora. Enquanto isso, o homem não se funde nessa linhagem – sua condição básica é a de ser um: o provedor, aquele que faz. É uma função que ocupa tanto no âmbito familiar, quanto social e profissional: tudo se agrupa em torno desse fazer/ prover. Já podemos observar no menino as brincadeiras mais ligadas ao lutar, brigar, competir – atividades ligadas à ação – enquanto nas meninas, elas se expressam nos diferentes papéis associados ao ser: ser mãe, ser filha, ser mulher. A título de ilustração, poderíamos usar como metáforas: para a mulher, um caleidoscópio, com constantes rearranjos; e, para o homem, a figura geométrica de um poliedro, que mesmo mostrando os diferentes lados, mantém a mesma configuração.   Apesar dessas diferenças, o elemento feminino puro e o elemento masculino puro têm que estar presentes e integrados em todo ser humano, homens e mulheres que, como já dissemos, é a condição primordial do viver criativo.

 

O artigo em sua integra encontra-se em:

http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-24302003000200006

 

Ritmo: um organizador do psiquismo

                           

 

                         “Eu quero a revolução

                    mas antes quero um  ritmo”

                                                        Adelia Prado

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Conheci um menino que acaba de ganhar um irmãozinho , ainda antes de desmamar.

Perto de fazer 2 anos , mama antes de dormir, já come bem e vai a escola, brinca e fala. Mas, com essa novidade tremenda na sua casa, agora reluta em dormir. A mãe, cansada, que amamenta o dia todo o menorzinho, precisa que ele compreenda esse novo limite. Conta que agora ele não quer deixar de sugar, fica por muito tempo “grudado” no peito. Conheci também uma mocinha que só  consegue dormir com o celular do lado, vendo sua série favorita. Acorda cedo para a escola e sente sono nas duas primeiras aulas. Os pais  pensaram em alguma maneira de desconectar a internet dela depois das 22h. Mas ela , esperta, usa a rede da vizinha. E tem o jovem que combina de jogar video game on line com os amigos e passa da meia noite facilmente- inclusive descobriu um jeito de fingir dormir para depois levantar na calada da noite para voltar ao jogo. Numa noite o pai acordou indisposto e foi aquele Deus-nos-Acuda. Quanto mais limites ao jogo os pais colocam, mais aumenta seu desejo de jogar… Por outro lado, a mãe de um mocinho muito parecido com este outro dorme somente com o seu “Stilnox”. Como ela, outros tantos vem desaprendendo a dormir e se descuidando dos rituais saudáveis que o dormir pede ao corpo: não precisa diminuir o ritmo, se tem um indutor de sono a disposição. Voce  pode estar “à mil” e daí BUM : basta tomar o remedinho, para dormir em cinco minutos.

Conheço também um cara muito bacana, pai de dois filhos, que não almoça nem toma café  da manha. Até as duas, três da tarde, passa com café e cigarro, não sente fome. De noite faz uma lauta refeição. Ele é magrinho, mas um outro senhor que conheci teve de fazer cirurgia bariátrica, aquela da redução de estômago. Tinha os hábitos semelhantes,estava muito obeso e comia somente de manha e muito tarde a noite; pois passava o dia na sua loja dentro da estação do trem  sem nenhuma pausa para lanchar ou descansar. Tudo que é  simples ( ou deveria ser) no corpo, depende de um certo ritmo. Dormir e acordar. Comer, trabalhar, descansar. Ir ao banheiro todos os dias. Uma amiga começa sua segunda graduação. Sente que perdeu muito tempo, por isso estuda todos os dias, inclusive sábado, domingo. Muitas horas seguidas. Não percebe que sua capacidade de concentração flutua, e sem fazer as devidas pausas acaba por gastar parte do seu tempo de forma contraproducente. Se sente muito cansada, ansiosa.

Ritmos. Pausas. Cadências. Cada pessoa tem a sua necessidade de sono, de sexo, sua fome, sua capacidade de concentração. Alguns se sentem muito mais espertos de noite, outros se irritam muito quando passa a hora de comer, ou tem enxaquecas. No filme ” O Novíssimo Testamento” a menina divina escuta o coração de cada pessoa e diz a musica que ouve em cada um. Cada um de nós teria um ritmo , uma melodia particular. Mesmo no jeito de falar diferem as pessoas. Nas pausas para respirar. No fluxo do pensamento. E os bebês ja tem seus ritmos dentro do ventre materno. Bebês e mães podem ter os seus ritmos semelhantes, sincronizando facilmente, ou nem tanto. Existem bebês que adoram barulho, passear. Outros tem um temperamento mais arredio. As sensibilidades também variam, muitíssimo. ao som, ao calor, aos estímulos do ambiente. Mas a descontinuidade e as mudanças de estado sempre incomodam os bebês. Quando são trocados, quando são despidos, quando são despertados. Um pouco como nós…quem nunca sentiu um desprazer quando o despertador toca, quando o feriado  acaba, quando esfria de repente.

Quanto mais imatura a pessoa, mais difícil para ela  lidar com as mudanças, as imposições do meio e dos outros, as mil interrupções da vida . Um bebê precisa de outro alguém a lhe garantir um ambiente reassegurador, tranquilo, e esta tranquilidade advém de muitos fatores: um deles o ritmo.

Cedo a mente humana aprende a perceber os padrões ritmicos do ambiente; e dentro do corpo somos também ritmo: respiração e coração. Mas o que é o ritmo? Ritmo é o contraste entre presença e ausência, continuidade e descontinuidade, na presença de certo padrão, no tempo. O que marca um ritmo é a repetição. A compreensão de padrões, mesmo que de forma intuitiva- ou principalmente desta forma-torna possível suportar a ausência e a falta, preencher as lacunas e as esperas; e é por isso que no cuidado com os bebês pequenos a rotina é algo tão importante. O balançar acalma, o ninar é ritmico, a fala humana ao se dirigir a um bebê adquire uma tonalidade especial. Ao longo dos dias e do seu desenvolvimento , a criança, apoiada na previsibilidade dos ritmos maternos e do ambiente, aprende em pouco e pouco a tolerar e a esperar.

” No inicio o ritmo é um recurso para superar a violência da descontinuidade acalmando o bebe por meio da pluralidade de atividades ritmicas ( balanço, sucção, canto de ninar,etc). As experiências do bebê fazem-no confrontar-se com rupturas, descontinuidades, momentos de presença dos objetos que se alternam com ausências. Para evitar que isto  se revele traumático, é a ritmicidade da alternância presença/ausência  que vai  sustentar o crescimento mental”.  Para Vitor Guerra, autor da citação acima, a ritmicidade promove uma ilusão de permanência e continuidade verdadeiramente estruturantes para o psiquismo inicial.

Aquele menino se apega ao seio pois não está suportando agora, com a chegada do irmão, uma dose extra de descontinuidade em sua vida. Adolescentes tem dificuldade em deslogar, desligar, e se desorganizam facilmente. Adultos, também. Estamos demasiado acostumados com as máquinas. Comer, dormir, defecar, descansar: o corpo nos exige essas pausas que o ambiente moderno, que não pára de funcionar, nos nega. O Unibanco já era de 30 horas, antes de ser comprado pelo Itaú, imagina agora. E ninguém escuta mais o Adoniran que não quer perder o trem das onze. O trem das onze é o trem do sono: passou, perdeu, perdeu o sono. Não são apenas  os bebezinhos que precisam do ritmo e da rotina para se organizarem. Num nível profundo e  possivelmente  relacionado ao próprio desenvolvimento da mente, o ritmo aparece com elemento estruturante e organizador. Na vida adulta, ainda precisamos do ritmo e o buscamos para atingir estados mentais mais tranquilos, respirando, aprendendo a esperar e acolhendo os limites do nosso corpo , das nossas necessidades mais profundas , da finitude e da falta que nos constitui , humanos.

Para saber mais sobre o pensamento de Victor Guerra:

https://scholar.google.com.br/scholar?hl=pt-BR&as_sdt=0%2C5&q=el+ritmo+en+la+dimension+victor+guerra&btnG       

 

E aqui uma cena do filme ” o Novissimo Testamento”, filme belga de 2016. Recomendamos muito!

https://youtu.be/7LC0pTOQA4I?list=PLObaNLA3v3VwAnJxQlhbud-1-P5CsxX7B

Rapunzel e sua torre:considerações a respeito da psicose puerperal

Entre a psicose e a normalidade existem mais conexões do que  gostaríamos de acreditar- e a familiaridade do estranho da psicose nos assusta justamente por sua ressonância em nós mesmos. Diz Nino Ferro “Naturalmente, é com os pacientes graves (e com as partes psicóticas de cada paciente) que continuamente nos expomos às maiores dificuldades… à espera de poder transitar por zonas ainda escuras e cegas da nossa mente”.
Como então distanciar-se do terror da psicose puerperal e dos  transtornos mais graves que podem ocorrer no período perinatal- se um dia já fomos também bebês em estado de dependência absoluta, se a rejeição ao bebê não nos provoca empatia? Se o próprio feminino em nossa cultura não nos fornece referência suficiente? Vivemos numa cultura do matricídio, em que as coisas inanimadas prevalecem sobre o humano, e a relação mais primeira, da mãe com seu bebê, é idealizada ou reificada mas não encontra proteção ambiental necessária ao seu sustento. “É preciso uma tribo para cuidar de um
bebê”, diz o ditado. Esta verdade parece estar sendo esquecida nos nossos dias.
Sucumbem os indivíduos mais frágeis diante das pressões e da instabilidade característica da fase perinatal. Instabilidade esta que é orgânica,pelas intensas flutuações hormonais, pela privação do sono, pelas vicissitudes do corpo e seu Real , tão presentes no momento. Mas também psíquica ,também social, também familiar.
Para a psiquiatria, a conexão entre psicose puerperal e transtorno bipolar faz-se evidente, delimitando um fator de risco dos mais importantes.
Porém, para o analista, a desconstrução do rótulo e a busca de um sentido para o sujeito importam mais. No contato com a paciente o terapeuta tenta prosseguir na construção de um “historiar” e um acolhimento para o delírio -composição e remendo criado pela pessoa para dar significado às suas  vivências. A aliança terapêutica é um holding que vai possibilitar o outro holding, o holding do bebê, impossível nos estágios iniciais de desorganização em que a paciente se encontra. Aqui importa menos o reencontro da mãe e do bebê do que a a possibilidade de a mãe re-significar a si mesma, aprisionada
que está dentro da torre da psicose.
Delírios envolvendo o roubo ou a troca do bebê são muito comuns na psicose puerperal. Podem estar muito estruturados (como vimos no filme “O bebê de Rosemary” de Polanski) ou, no mais das vezes, conectados a um estado paranóide difuso, ligado a grandes flutuações do humor. O que  na psicose aparece como delírio surge como fantasia no período do blues puerperal.
Nesta ocasião de transparência psíquica os ciúmes e conflitos surgem como uma forma camuflada do temor de não ser suficiente, de ter seu bebê “sequestrado” pela sogra, pela enfermeira super competente, ou pela própria mãe. Ansiedades estas que são mitigadas pelo ambiente continente, pela passagem do tempo e pelo descanso. O próprio contato com o bebê faz diluir paulatinamente a flutuação do humor de base neurótica do blues puerperal.
Mas na psicose, o terror é vivenciado – não é bonita a psicose, nem fácil de suportar. Os casos puerperais costumam ser muito graves. Mas, pertencendo ao sitio do estranho, não deixam de ressoar profundamente em nós. Quando eclode o surto, muitas vezes ainda no período da internação, intensas angústias mobilizam toda a equipe do hospital- em geral despreparada para isso. Às vezes a visão médica domina a cena, o que pode roubar à mulher a oportunidade de encontrar, a partir da crise, um caminho para a subjetivação. Sem cuidado, a família se desorganiza, impossibilitada de dar e receber escuta. É quando iatrogenias ocorrem, porque o sujeito psicótico deixa de ser considerado um sujeito, mesmo que a desorganização ocorra de forma autolimitada, mesmo nos casos de resolução mais rápida da crise. A equipe hospitalar raramente tem condições de manejar casos de tanta complexidade.
Apesar de não ser infecciosa, a loucura “pega”, e pega de um jeito que muitas vezes não se percebe. Porém, somente uma atitude cuidadosa e não julgadora tem chance de atingir paciente e família neste momento. Há que se encontrar dialética no cuidado : enquanto, de um lado, o psiquiatra busca e ajusta as medicações, o manejo da enfermagem é de particular importância, pois as famílias se desestruturam e a paciente está muito regredida. Enquanto o antipsicótico age para reduzir as manifestações
delirantes e a desorganização, no contato com a paciente o terapeuta prossegue fornecendo uma escuta única, uma escuta para o delírio, para o ser quebrado desta mãe que ainda não pode constituir-se como tal. Sem contar a particularidade da vinda do bebê: quem vai se ocupar dele? Tamanha é a complexidade do manejo nos casos de psicose puerperal.

No conto de fadas que narra a história da Rapunzel, a apropriação pela mulher de algo que pertence à bruxa faz com a mesma reivindique o bebê desta mulher, assim que ele nasce: como pagamento pelo roubo. Sua primeira filha.

Ou seja: a Rapunzel nasce de uma mulher que, na gravidez, comeu rabanetes roubados da horta da bruxa. Mulher que, ao parir, paga uma dívida .
Para quem não se lembra da história, a menina Rapunzel cresce encerrada em uma torre até poder ser resgatada por um príncipe. No conto, é a mediação do príncipe que desfaz o encanto do seu aprisionamento.
Pensando no período pos-parto, podemos imaginar  a psicose como um aprisionamento em que a mãe, que deve à bruxa, não pode apropriar-se do lugar materno. Outrossim, tem seu bebê roubado. Que bruxa é esta? Sua própria mãe? Algo de sua história?
Como saber… Cada mulher e cada Rapunzel terão sua história particular. Mas sabemos que mulheres psicotizam mais no pós parto do que em qualquer outra época da vida… Pois algo arriscado acontece à mulher que pare e é convocada a tornar-se Mãe. Agora ela é chamada a responder a uma pergunta e ocupar um novo papel. Este bebê é meu? Tenho permissão para ocupar este lugar?
Penso que a estória de Rapunzel é cena e enredo vivido no pós parto de muita mãe que passa a delirar sobre a troca, a morte, o sequestro de seu bebê.
De certa forma, é a mãe que está então confinada na torre da sua própria psicose. A mulher, roubada de si mesma, estará à espera de um terceiro, um mediador, que quebre o encanto da indiferenciação entre ela e a bruxa. Estará à espera do “príncipe” sem o qual jamais poderá se separar, se organizar, tocar o chão. Quem poderá enfim ajudá-la a tecer, no vão que surge entre as suas tranças cortadas- cortadas como um cordão umbilical- um pouco de sentido, um tanto de coragem, para poder se apartar da bruxa? Eis uma aproximação poética do trabalho a ser feito no caso da psicose. Dizem que o príncipe também, ao tentar chegar perto da Rapunzel, levou um tombo danado. E aí,
quem se habilita? Será que esta história ainda pode ter um final feliz?
Arianne Angelelli
Julho- 2020

Gesto espontâneo e interpretação criativa

https://www.metodista.br/revistas/revistas-metodista/index.php/MUD/article/view/831/846

Professora Doutora Ivonise Fernandes da Mota

O gesto espontâneo e a interpretação criativa

Ivonise Fernandes da Motta*

PARA SER GRANDE, sê inteiro: nada

 Teu exagera ou exclui

Sê todo em cada coisa.

 Põe quanto és

No mínimo que fazes.

Assim em cada lago a lua toda

Brilha, porque alta vive.

Pessoa, F. (1995/1993). Ficções do Interlúdio / Odes de Ricardo Reis, 414, 14- 2-1933. In Fernando Pessoa, Obra poética. Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar S.A., p. 289.

 Resumo

O presente artigo tece considerações sobre possíveis manifestações do “Verdadeiro Self” que podem ter ocorrência no processo psicanalítico. “Expressões”, “gestos” ou “atitudes” inesperados ou surpreendentes tanto por parte do terapeuta quanto por parte do paciente podem facilitar revivências do passado, da história psíquica do analisando, que podem ser extremamente valiosas para o trabalho psicoterápico em andamento. O termo “interpretação criativa” estaria incluído nessa categoria ou classificação. Descritores: psicoterapia; psicanálise; Donald W. Winnicott; gesto espontâneo; criatividade.

Introdução

               Gesto espontâneo foi um termo utilizado por D. W. Winnicott para designar uma das inúmeras maneiras pelas quais o verdadeiro self pode se expressar. Estaria relacionado ao cerne, ao centro do ser, representando o que há de mais autêntico, mais genuíno para aquela pessoa em especial. Nesse contexto, gostaria de empregar o termo “interpretação criativa” para algo semelhante que pode ter ocorrência no trabalho analítico. A partir do contato com o paciente, nós, psicoterapeutas, podemos nos surpreender com “expressões”, “gestos” ou “atitudes” que poderíamos denominar “inesperados” ou “surpreendentes”. Após muitos anos de trabalho com pacientes com as mais variadas dificuldades, queixas ou sintomas, por vezes algo que se poderia dizer dessa natureza, ocorria: uma palavra, uma atitude inesperada do terapeuta surpreendem o “par analítico” ao trazer à tona algo novo, algo novo para revelação. Por exemplo, dizer a um paciente a frase: “não admito isso em um homem”, após ouvir várias de suas associações, despertaria no mínimo “estranheza”, ou eu diria “surpresa”. À primeira vista, tal expressão poderia ser entendida como autoritária, disruptiva, invasora. Com a evolução ou experiência nos vários e diferentes setores do campo psicanalítico desde sua criação, vários aspectos, teóricos e técnicos, tiveram de ser gradativamente revistos e mudados. O trabalho com crianças e pais trouxe inúmeras contribuições e conhecimento tanto no que se refere ao desenvolvimento psíquico quanto à constituição e construção das bases fundamentais do psiquismo. De maneira semelhante, o trabalho com pacientes psicóticos ou com perturbações mais severas trouxe inúmeras contribuições sobre a importância do que se denomina “manejo de setting”. O “setting” clássico ou tradicional estabelecido por Freud tem suas bases na experiência principalmente com pacientes neuróticos. O trabalho com pacientes regredidos ou em regressão mostrou a necessidade de várias modificações: tempo das sessões, pertinência ou não de interpretações, tipos de interpretação condizentes com o material vivenciado, orientações ao ambiente do paciente (pais, parentes, instituições). Com esse tipo de pacientes, o que denominamos usualmente “neutralidade” do analista cede lugar ao que poderíamos chamar o surgimento da pessoa real do terapeuta. Ou seja, aparece a marca da falha do ambiente. Algo no desenvolvimento daquele indivíduo revela a presença de um aspecto do ambiente que dificultou o desenvolvimento psíquico ou mesmo “traumatizou” ou irrompeu ou interrompeu com invasões disruptivas. O conhecimento advindo do tratamento com pacientes regredidos ou em regressão (como gravidez, crises, por exemplo) nos aproxima da emergência de conhecimentos semelhantes com pacientes neuróticos. O acompanhamento de pacientes diagnosticados neuróticos irá, por vezes, de encontro a revivências primitivas, ao aparecimento de falhas ambientais significativas para o paciente, para sua constituição e desenvolvimento. Frases que à primeira vista parecem “destoantes” ou “estranhas”, como uma terapeuta dizer a um paciente “não admito isso em um homem”, podem ser um sinal da necessidade do encontro com algo do passado, uma falha ambiental do passado do paciente que emerge pelas palavras do terapeuta. Ao sublinhar a importância do ambiente no desenvolvimento psíquico, Winnicott vem ferir mais uma vez o narcisismo do ser humano: não podemos ter controle sobre muitos dos acontecimentos que ocorrem conosco. As pessoas que nos circundam invariavelmente irão limitar, influenciar e até definir situações que podemos até desconhecer, o que nos remete ao observado por Freud em relação à instintividade no ser humano: o homem mais uma vez não é senhor em sua própria morada. Os terapeutas de crianças e adolescentes costumam conhecer bem essas limitações. As dificuldades invariavelmente surgidas na psicoterapia quando do atendimento desse tipo de pacientes expõem os limites de nossa onipotência, de nosso trabalho, limites e alcance que sofrem repercussões de várias ordens envolvendo familiares. O papel materno no desenvolvimento humano é conhecido por vários e diferentes vértices, por pesquisas nas mais diversas áreas do conhecimento. Com os avanços nas pesquisas, o papel paterno tem se mostrado de igual importância para as possibilidades de desenvolvimento psíquico. Winnicott ressalta a importância da figura do pai tanto no que concerne em fornecer apoio para a mãe desempenhar suas funções maternas, quanto em favorecer as várias e sucessivas passagens desde o estágio de dependência absoluta (mãe-bebê) até o de dependência relativa. Para esse autor, o pai tem o lugar do indestrutível, o limite que não pode ser ultrapassado. Por isso mesmo, sua presença liberta o menino, o homem, para a instintividade. A possibilidade de “matar” o pai simbolicamente e não ter a concretização da “morte”, na medida que o pai mantém sua presença e lugar constantes, libera o menino para seus desejos instintivos. Desejar é distinto de concretizar, portanto não oferece ameaças reais ao menino, ao homem e à figura paterna. A rivalidade e a competição edípicas podem ser vivenciadas em tons e matizes ricos e presentes possibilitando o caminhar por esses conflitos sem a necessidade de defesas patológicas ou excessivas. No desenrolar do trabalho analítico, muitos aspectos do terapeuta são trazidos à revelação, além dos emergentes do próprio paciente. Levando-se em consideração que o terapeuta tem seus conflitos neuróticos devidamente analisados, além do conhecimento de vários ângulos de seu funcionamento mental mais primitivo, o surgimento de momentos do que se poderia denominar “expressão do verdadeiro self” pode trazer revelações significativas para o par analítico. A análise cuidadosa dessas expressões faz-se necessária para compreensão e possibilidades de sua utilização a favor do tratamento psicoterápico em andamento. É importante frisar que a presença desses momentos, ou o que eu chamaria “interpretação criativa”, ocupa um lugar diferenciado do que poderia ser facilmente confundido com “acting out” do terapeuta, ou seja, invasão no setting analítico de aspectos do self do terapeuta, que, de maneira intrusiva, pressionam o tratamento. Ao escrever sobre mudanças do setting, D. W. Winnicott delimitou as especificidades, limites e perigos de tais situações. Uma de suas recomendações era a de que o tratamento com pacientes regredidos ou em regressão deveria ser conduzido apenas e tão somente após dez anos de experiência analítica. A complexidade de tais ocorrências demandariam muito do psicoterapeuta tanto em termos psíquicos quanto em termos de conhecimento psicanalítico, daí a necessidade de, no mínimo, dez anos de trabalho com pacientes. Outeiral (2001), ao escrever sobre o tema ressalta: “A contribuição de D. W. Winnicott para ser compreendida requer um profundo aprendizado psicanalítico prévio (e neste ponto concordo plenamente com os padrões de formação da International PsychoAnalysis Association, baseados no “tripé” criado por Eitington: análise pessoal, supervisão e seminários teóricos) que nada tem a ver com superficialidade, ‘intuição pura’, empirismo ou ‘espontaneidade sem sentido’… A clínica que nos é permitida acompanhar é plena de sentido e intencionalidade” (p. 103). Outro aspecto relevante a ser considerado é a impossibilidade de comunicação. É trazido à revelação algo que estava bloqueado ou impedido de ser conhecido ou revelado. O contato cada vez maior e mais profundo com vários aspectos psíquicos do paciente e conseqüentemente do próprio terapeuta tem expressão por meio do surgimento do que denomino neste artigo “interpretação criativa”. Algo do ambiente constitutivo do paciente torna-se presente, possivelmente uma falha. Algo falhou e é revelado por algo que é dito pelo terapeuta e que pode surpreender o próprio terapeuta. Quando falhas foram significativas no desenvolvimento do paciente; a revivência do ocorrido no passado é invariavelmente acompanhada por sentimentos hostis, por sentimentos raivosos. Para Winnicott, o encontro do paciente com as limitações ambientais traz à tona a hostilidade pelos prejuízos, entraves e conseqüências. Esse seria um aspecto relevante ao traduzir a diferenciação entre o mundo psíquico do paciente e o ambiente do qual fez ou faz parte: discriminação cada vez maior advinda do trabalho psicoterápico quanto a quem sou eu e quem é o outro; quem são ou quem foram os participantes do entorno do paciente e geradores das falhas por vezes disruptivas ou invasoras. Trazer à consciência os danos sofridos, suas repercussões e presença na vida do paciente é de vital importância para o reconhecimento do que foi vivido em épocas pretéritas e a possibilidade de, ao revê-las, estabelecer outras bases para o desenvolvimento psíquico. Ao escrever sobre o tema, Margaret Little (1992), psicanalista e paciente de D. W. Winnicott que pôde vivenciar um tratamento com bases na regressão, diz: “A regressão para a dependência é um ‘processo de cura’ (Winnicott 1954b) originado não no analista, mas naquela parte do analisando, seu “verdadeiro self” (Winnicott 1949a, 1960b), que ainda pode esperar uma reversão do fracasso original, encontrando no analista uma adaptação suficiente para as suas necessidades. É preciso haver um ‘tratamento’ em vez de uma ‘técnica’; e um comportamento intuitivo, não interpretação verbal. Mas isso não é fácil, porque envolve o analisando em uma volta assustadora ao primeiro estágio não integrado. Há o risco de aniquilação repetida pelos estímulos aos quais ele tem de reagir fisicamente (reflexo de choque), e com uma integração forçada, contra os quais ele não tem defesas e não pode compreender; de deixarem-no cair quando ele está indefeso, não havendo limites ou controle. O analista tem de ser capaz de renunciar às suas defesas contra a mesma ansiedade, o medo de aniquilação, da perda de identidade, tanto por si mesmo como pelo paciente. Ao mesmo tempo, sua própria identidade deve permanecer distinta, e seu sentido de realidade inalterado, mantendo a consciência em dois níveis extremos, o da realidade e o da ilusão. Ele está na posição de uma mãe vis-à-vis o filho, mas onde nem ele nem o paciente estão de fato nessa situação. Isso exige as mesmas qualidades de uma “mãe suficientemente boa” (Winnicott 1952b), empatia com a criança (Winnicott 1960 a) e capacidade de considerá-la uma pessoa separada. Não contar com a “atitude profissional” para aceitar um “relacionamento direto” com o paciente como distinto da imagem do espelho, e lembrar-se de que a sexualidade não tem qualquer sentido aqui; unir-se fisicamente a ele aceitando a ilusão de unidade; tolerar o ódio do paciente sem revidar quando os traumas originais são revividos (Winnicott 1947, 1960c) e suportar as suas próprias emoções quando elas são despertadas” (Little, 1992, p. 88). Muitos anos de trabalho com pacientes dão ao terapeuta maior segurança e confiança adquiridas gradativamente e que o possibilitam renunciar pouco a pouco a uma “técnica” para a emergência de vários aspectos de seu próprio self ou, dizendo melhor, de seu “verdadeiro self”, o que contribuiria para revelação de aspectos essenciais do self do paciente, tanto aspectos dissociados quanto aspectos não integrados. O surgimento dessas facetas do self no presente com tons e matizes vivos e atuais tornaria possível todo um trabalho de revivências e integração. Winnicott, ao escrever sobre “A interpretação na psicanálise” (1968), afirma: “O princípio que estou enunciando neste momento é que o analista reflete de volta o que o paciente comunicou. Este enunciado muito simples a respeito da interpretação pode ser importante pelo próprio fato de ser simples e evitar as tremendas complicações que surgem quando se pensa em todas as possibilidades que podem ser classificadas na premência interpretativa. Se este princípio muito simples é enunciado, ele imediatamente precisa de elaboração, e sugiro que necessita de elaboração do seguinte tipo: área limitada da transferência de hoje, o paciente tem um conhecimento exato de um detalhe ou de um conjunto de detalhes. É como se houvesse uma dissociação pertencente ao lugar a que a análise chegou hoje. É útil lembrar que, desta maneira limitada ou desta posição limitada, o paciente pode estar dando ao analista uma amostra da verdade, isto é, de algo que é absolutamente verdadeiro para o paciente, e que, quando o analista o devolve, a interpretação é recebida pelo paciente que já emergiu, até certo ponto, desta área limitada ou condição dissociada. Em outras palavras, a interpretação pode ser mesmo dada à pessoa total, enquanto que o material para interpretação derivou apenas de uma parte da pessoa total. Como pessoa total, o paciente não teria sido capaz de ter fornecido o material para a interpretação” (1994, p. 164). A possibilidade de acesso às falhas ambientais vividas pelo paciente tornam possível não apenas o conhecimento dessas vivências e seus efeitos, mas também a emergência de possibilidades do que denominaríamos reparação. A sobrevivência do analista, a sobrevivência do paciente, significando a manutenção da constância do tratamento, e a não retaliação por vivências do tipo aqui descritas – “Não admito isso em um homem” – podem significar um marco de mudança. Nessa situação clínica aqui utilizada para exemplificar o que denomino “interpretação criativa”, o marco presente foi a interdição paterna realizada pelas palavras da terapeuta “não admito isso em um homem”. Evidenciou falhas vividas pelo paciente quanto à função paterna e que, ao serem trabalhadas na psicoterapia, puderam ser conhecidas e re-significadas. Em seu trabalho “O ódio na contratransferência” (1947), Winnicott ressalta a importância de, em certo tipo de pacientes ou em certas situações clínicas, o paciente encontrar o ódio do terapeuta que possibilitaria o surgimento do ódio do paciente, aspecto dissociado e que necessitaria de integração. O ódio do terapeuta traria essa dissociação à revelação e expressaria a permissão do surgimento de aspectos hostis do paciente para o trabalho integrativo. A expressão “não admito isso em um homem” inclui uma carga inegável de sentimentos hostis. Inclui também a firmeza e a força por vezes necessárias para marcar o limite, o limite intransponível, marcar o lugar e a presença do pai, o indestrutível. Margaret Little (1992), no relato de sua análise com Winnicott, assinala a importância do reconhecimento do ambiente para a integração de aspectos dissociados de sua personalidade. Winnicott definia a mãe de Little da seguinte maneira: “Sua mãe é imprevisível, caótica, e estabelece o caos ao seu redor” (p. 50). A esse respeito, Little escreve: “É preciso fazer uma observação sobre a minha família; caso contrário, seria difícil acreditar em muitas coisas que digo, ou mesmo entendê-las. Fico surpresa ao constatar que apesar de na verdade ter dito muito pouco sobre isso verbalmente ao D. W., seu comentário sobre minha mãe foi como uma revelação (não uma interpretação analítica). Ele tornou possível e lícito para mim compreender muitas coisas que eu já sabia, havia observado ou que me disseram” (1992, p. 51). O reconhecimento da importância do ambiente no desenvolvimento psíquico levaria a situações nas quais “o manejo de setting” se faz imprescindível e também ao reconhecimento de momentos nos quais expressões do verdadeiro self tanto do paciente quanto do analista são vitais para a superação de impasses no processo analítico ou para o surgimento de novas facetas valiosas para a continuidade do trabalho desenvolvido. Ao escrever sobre a conceituação de elementos masculinos e femininos expelidos (split-off) encontrados em homens e mulheres, Winnicott relata passagem instigante vivida com um paciente. O paciente já havia realizado uma longa análise, mas apresentava dificuldades em terminá-la. Em determinada sessão, Winnicott relata a presença significativa do que usualmente denominamos “inveja do pênis”, algo incomum ao se pensar que o paciente em questão era um homem. A interpretação fornecida ao paciente foi: – “Estou ouvindo uma moça. Sei perfeitamente bem que você é homem, mas estou ouvindo e falando com uma moça. Estou dizendo a ela: você está falando sobre inveja do pênis”. Os efeitos da interpretação confirmaram sua pertinência. O paciente responde: “Se eu falasse a alguém sobre essa moça, seria chamado de louco”. Winnicott prosseguiu: “Não é que você tenha contado isso a alguém; sou eu que vejo a moça e ouço uma moça falar, quando na realidade, em meu divã achase um homem. O louco sou eu”. E em seguida afirma: “Não tive de elaborar esse ponto, porque a chave era aquela. O paciente disse que agora se sentia são, num ambiente louco. Em outras palavras, achava-se agora liberto de um dilema” (1975, pp. 105-106). Winnicott conclui: “Esse complexo estado de coisas apresentava uma realidade especial para esse homem, porque ele e eu fomos impulsionados à conclusão (embora incapazes de prová-la) de que sua mãe (que já não está viva) viu uma menina quando o viu como bebê, antes de passar a aceitá-lo como menino. Em outras palavras, esse homem teve de ajustar-se àquela idéia da mãe de que seu bebê, seria e era uma menina… mas a loucura da mãe, que viu uma menina onde existia um menino, fora trazida diretamente ao presente através de minha afirmativa: ‘Sou eu que estou louco’. (1975, p. 106). O trabalho psicoterápico teve continuidade nas sessões seguintes, e outra das conclusões de Winnicott foi: “Quando me concedi tempo para refletir sobre o que acontecera, fiquei intrigado. Não havia aqui qualquer conceito teórico novo, nenhum novo princípio de técnica. Na realidade, eu e meu paciente já havíamos percorrido antes esse campo. Entretanto, tivéramos, aqui algo de novo, novo em minha própria atitude e novo em sua capacidade de fazer uso de meu trabalho interpretativo” (1975, p. 108). À medida que o trabalho psicoterápico prossegue e ganha profundidade, surgem possibilidades de acontecimentos dessa ordem, semelhantes ao descrito por Winnicott em “O brincar e a realidade” (1975). Algo bastante diferente, inesperado surge para o par analítico trazendo à luz aspectos importantíssimos do passado do paciente e que, até então, não foram revelados. Em “Holding e interpretação” (1991), Winnicott relata a análise com um paciente homem, por meio da qual podemos acompanhar suas interpretações de angústias e conflitos edípicos. Em “Relato do tratamento psicanalítico de uma menina ‘Piggle’” (1979), Winnicott narra o trabalho realizado em 16 consultas terapêuticas – trabalho que ele denomina tratamento segundo a demanda. Ou seja, a menina comunicava a necessidade da realização de uma consulta, a qual era aceita por Winnicott. Angústias e conflitos edípicos foram profundamente trabalhados. Mais uma vez, ao lermos esses tratamentos conduzidos por Winnicott, torna-se presente a importância do ambiente e das figuras materna e paterna para a constituição e desenvolvimento psíquicos. O tratamento realizado por Winnicott com Gabrielle (Piggle) teve início quando a paciente contava com a idade de dois anos e cinco meses e finalizou quando tinha cinco anos e dois meses de idade. O posfácio do livro que relata a evolução de Gabrielle, após a conclusão do tratamento, dá-nos a confirmação de que as consultas realizadas possibilitaram trabalho integrativo imprescindível ao favorável desenvolvimento psíquico da menina. Esse tipo de tratamento, segundo a demanda, foi possível pelas boas condições ambientais presentes no caso de Gabrielle. Os pais e mesmo a menina tinham condições psíquicas favoráveis ao trabalho psicanalítico necessário para a superação dos sintomas e o movimento integrativo e evolutivo que foi realizado. Uma das conclusões sobre esse tipo de tratamento trazidas no posfácio do livro é: “O fato de os pais poderem participar de um processo de crescimento e reparação foi-lhes de grande valor. Tal participação evitou o que se pode freqüentemente observar: os pais sentem que foram ignorados e, dessa forma, talvez se predisponham a sentimentos de rivalidade e competição com o terapeuta; talvez tenham inveja do terapeuta e da criança, ou, alternadamente, para evitar tais sentimentos penosos, assim como para evitar a conduta obstrutiva insidiosa que pode deles resultar, os pais se retraem, saindo do campo de influências de um relacionamento vivo com a criança, simplesmente entregando-a a um profissional com mais conhecimento e prática” (1979, p. 173). Mais uma vez fica evidenciada a importância em se considerar a participação do ambiente em qualquer tratamento psicanalítico, tanto por seus fatores benéficos quanto pelos impeditivos. A inclusão da participação das falhas ambientais que foram significativas para o paciente nos remete ao surgimento de acontecimentos reveladores dessas falhas e que podem surgir por meio de expressões do verdadeiro self tanto do terapeuta quanto do paciente. Nesse âmbito, incluiria o que denominamos segundo uma visão winnicottiana “o gesto espontâneo” e a denominação que estou utilizando nesse artigo de “interpretação criativa”. Ao usar a expressão “não admito isso em um homem”, aspectos fundamentais do desenvolvimento psíquico do paciente puderam ser trazidos à revelação incluindo falhas de seu próprio ambiente. Ao dizer ao seu paciente “sou eu que estou louco”, Winnicott pôde trazer à tona aspectos essenciais do ambiente do paciente, decisivos para os processos integrativos necessários à finalização de sua análise. Rodman, na introdução do livro “O gesto espontâneo” (1990), compilação de inúmeras cartas escritas por D. W. Winnicott, ao abordar o tema aqui proposto, escreve: “Os que dizem que Winnicott colocou o valor terapêutico da relação com o analista acima do processo interpretativo compreendem mal e trivializam seu parecer, bem mais complexo. Seu trabalho sobrevive e continua sendo fecundamente citado em trabalhos sobre técnica precisamente porque seus textos, de aplicação ampla, não se conformam a tal classificação. Ele permaneceu firme como leitor do inconsciente e acreditando nas interpretações precisas, feitas no momento certo, como sendo o principal instrumento de mudança. Foi apenas no tratamento de pacientes profundamente perturbados que julgou ser indispensável uma fase de manejo (management). Tais pacientes, ao regressar ao ponto em que haviam falhado na primeira infância, exigiam um ambiente de apoio como um corretivo de onde poderia ser retomado o desenvolvimento. Uma versão da psicanálise como bondade profissionalizada, a psicanálise reduzida à empatia, ou a um longo processo cujo desfecho é a confirmação de que a vida do paciente foi realmente arruinada pelos pais, era algo inteiramente estranho a Winnicott. Ele disse que a “psicose é uma doença de carência”, mas sabia que chegar ao ponto de carência exigia um longo período de interpretação psicanalítica” (Rodman, 1990, pp. XXIX e XXX). E ao final da introdução de “O gesto espontâneo” (1990) Rodman conclui: “Ele procurava proteger ações delicadas, transitórias, do peso esmagador da classificação formal. Ele queria engendrar em outros o gosto pela ação experimental, a qual era, a seu ver, pensamento inspirado manifesto na segurança de uma relação. Ele trabalha, portanto, pela criação de condições que encorajariam a disposição de pacientes, analistas e cidadãos comuns a produzir contribuições únicas, a arriscar o gesto espontâneo. Ele celebrou o emergir do mundo interno em formas que outros pudessem contemplar. Ao dar ao conceito de associação livre de Freud uma definição ampla e harmonizada, ele promoveu o espírito psicanalítico a novas estruturas de relevância” (Rodman, 1990, pp. XXX e XXXI). Gostaria de concluir este artigo referendando a importância dos vários e diferentes “gestos espontâneos” e “interpretações criativas” invariavelmente presentes no dia-a-dia de nosso trabalho clínico. O aprendizado resultante, quer dos nossos acertos, quer dos nossos erros, poderá trazer contribuições valiosas nesse complexo caminho do gradativo aumento do conhecimento da natureza humana.

Referências

Abram, J. (2000) A Linguagem de winnicott. (M. da Silva, trad.) Rio de Janeiro, RJ: Revinter.

 Laplanche, J & Pontalis J.B. (1983) Vocabulário de psicanálise. (P. Tamen, trad.) São Paulo, SP: Martins Fontes.

Little, M. (1992) Ansiedades psicóticas e prevenção. (M. Fernandes, trad.) Rio de Janeiro, RJ: Imago.

Outeiral, J., Hisada, S., Gabriades, R. (Orgs.) (2001) Winnicott seminários paulistas. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.

Rodman, R. (1990) O gesto espontâneo – cartas selecionadas de D. W. Winnicott. (L. Borges, trad.) São Paulo, SP: Martins Fontes.

Winnicott, D. W. (1968) A interpretação na psicanálise. In Winnicott, C., Shepherd, R., Davis, M. (orgs., 1994). Explorações psicanalíticas D. W. Winnicott. (pp.163-166) (J. Aguiar Abreu, trad.) Porto Alegre, RS: Artes Médicas.

Winnicott, D. W. (1975) O brincar e a realidade. (J. Aguiar Abreu e V. Nobre, trad.) Rio de Janeiro, RJ: Imago.

Winnicott, D. W. (1978) O ódio na contratransferência. In: Da pediatria à psicanálise. (J. Russo, trad.) Rio de Janeiro, RJ: Francisco Alves (Original de 1947).

Winnicott, D. W. (1979) The piggle relato do tratamento psicanalítico de uma menina. (E. Vieira & R. Martins, trads.) Rio de Janeiro, RJ: Imago. Winnicott, D. W. (1991). Holding e interpretação.

O analista no campo analisante: dos impasses às transformações possíveis.

https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/15302/1/Gina%20Tamburrino.pdf

Captando algo humano

http://revistapercurso.uol.com.br/index.php?apg=artigo_view&ida=1108&ori=edicao&id_edicao=52

LEITURA

Rêverie e interpretação: captando algo humano [Rêverie e Interpretação]

Rêverie and interpretation: capturing something human

Gina Tamburrino
Marina F. R. Ribeiro Ribeiro

Rêverie e interpretação. Captando algo humano é um dos primeiros lançamentos da coleção Kultur da Editora Escuta. A coleção tem como principal objetivo a apresentação de temas que refletem sobre a “natureza e a cultura humana”. Não se trata de uma coleção versada apenas em autores psicanalíticos. Entretanto, é Thomas Ogden, um psicanalista norte-americano, o primeiro autor convidado a apresentar seu pensamento.

Rêverie e interpretação apresenta o conceito de rêverie com a profundidade esperada pelos clínicos da atualidade. É um livro que trata o tema de forma clara, sincera e sensível. É um verdadeiro presente para o clínico da atualidade.

Ogden prima por uma escrita lapidada; se autodenomina um “escritor analítico”, e faz jus a esta designação. O texto é claro, vivo, interessante, bem cuidado. Os capítulos do livro têm como origem artigos publicados na década de 1990. Há um prefácio para a edição portuguesa, de outubro de 2013, do qual destacamos três pontos. O primeiro é a liberdade de pensamento a partir da qual o autor se expressa: “Um tema que trespassa subliminarmente pelo livro é a ideia de que precisamos criar a psicanálise para cada paciente” (p. 15). Uma psicanálise viva é criada a cada sessão, com cada paciente. O setting é a moldura que permite o enquadre para dupla analítica criar. O segundo ponto é o desapego a dogmas: “Ao ler os artigos neste volume, artigos que escrevi há mais de quinze anos, espanta-me que, em sentido relevante, compreendia então um bocado de coisas que hoje luto para compreender”. O terceiro aspecto, importantíssimo, é quando ele escreve: “o papel indispensável dos ‘fracassos’ do analista em se concentrar naquilo que o paciente está dizendo (porque tais ‘fracassos’ constituem o lugar de nascimento da rêverie)”. Ou seja, onde o analista se percebe fracassando, aí está o nascimento da rêverie. Ideia que Ogden desenvolve no capítulo seis que honrosamente leva o nome do livro, rêverie e interpretação, e que constitui o capolavoro do texto.

O primeiro capítulo, Sobre a arte da psicanálise, é uma visão atual de como Ogden pensa o trabalho analítico. Assemelha-se e complementa o capítulo dois (Do que eu não abria mão) de outro livro do autor também publicado no Brasil: Esta arte da psicanálise. Sonhando sonhos não sonhados e gritos interrompidos (Artmed, 2010). Ambos os capítulos apresentam uma visão humanista da psicanálise e da vida: “[…] creio que a tarefa analítica envolva mais profundamente o esforço do par analítico para ajudar o analisando a se tornar humano em um sentido mais amplo do que o que ele conseguiu até o momento” (p. 30). E, mais à frente, Ogden também desilude o leitor: “a incapacidade de ser plenamente humano é um aspecto do ‘destino de toda a humanidade'” (p. 32). E loca a análise aí: “é nesse esforço de sermos plenamente humanos que estamos vivos enquanto analista e analisando; é nesse experimento que vive a arte da psicanálise” (p. 34).

O autor abre o primeiro capítulo do livro com uma frase interessantíssima: “A palavras e frase, bem como a pessoas, deve-se facultar certa imprecisão” (p. 21), “pois estão em constante movimento” (p. 23). “A imaginação”, afirma ele, “depende de um jogo de possibilidades” (p. 21). Aquilo que é vivo é fluido e impreciso; a experiência analítica é dessa ordem, um desapego difícil de significados fixos; ao texto psicanalítico criativo também se deve facultar certa imprecisão.

É de grande beleza a aproximação que Ogden faz, também no capítulo um, da experiência humana de encontro entre o escritor analítico e o leitor e o analista e o analisando. O escritor analítico “deve” ser capaz de criar uma linguagem da experiência de vitalidade e/ou desvitalização humanas para si e para o leitor. Falar sobre vitalidade e desvitalização humanas não leva “ao aprender da experiência” (Bion, 1962) humana. É preciso criar sentido para poder transmiti-lo. E isto apenas se torna possível diante de uma fala dramática que comporta intimidade e pessoalidade. Ambos, escritor e leitor, precisam ter uma experiência de estar vivo e presente. “Para estar vivo e presente na própria linguagem, para ter ‘o próprio tom de voz da fala um pouco… emaranhado nas palavras’, a pessoa que fala pede que um aspecto seu seja reconhecido pelo ‘ouvido da imaginação’ (do ouvinte)” (p. 29).

Ogden, assim como Winnicott (um dos autores que o inspira, além de Bion, entre outros), consegue expressar o complexo com frases aparentemente simples. Não nos enganemos, Ogden escreve sobre a complexidade da interação humana, especificamente a analítica, de forma sofisticadamente simples, o que faz dele um dos destacados autores da psicanálise contemporânea.

Os capítulos dois e três são eminentemente clínicos, nos quais a bússola de Ogden é a análise de formas de vitalidade e desvitalização no processo analítico. A presença do conceito do terceiro analítico norteia o pensamento clínico do autor: “[…] compreendo o terceiro analítico intersubjetivo como um sujeito criado pela interpretação inconsciente analista e analisando” (p. 42). O autor trabalha com a concepção de Winnicott sobre “o lugar em que vivemos” (uma terceira área da experiência entre realidade e fantasia), e com a ideia de Bion de que o analista mantém vivos e traz à vida aspectos do paciente, através de uma continência bem-sucedida. Ogden dá especial relevo à espontaneidade do analista que o salva de uma neutralidade caricaturesca. A contratransferêcia é compreendida dentro da unidade transferência-contratransferência e “refere-se a uma construção inconsciente intersubjetiva” (p. 39). Há uma importante preocupação com as formas de manejo e com a técnica analítica para lidar com os sentimentos de vitalidade e desvitalização que emergem na experiência analítica.

O terceiro capítulo apresenta a análise da perversão através da “análise da transferência-contratransferência perversa tal como se desenrola na relação analítica” (p. 71). É uma visão ímpar o modo como Ogden dá a ver de que maneira “a cena analítica perversa e o sujeito perverso da análise são construídos […] pela dupla analítica com o objetivo de evitar [a dolorosa] experiência de morte psíquica […]” (p. 73). No caso clínico trazido pelo autor, vemos uma interessante discussão clínica sobre um caso de perversão e o uso da técnica: “Um elemento da técnica que se reflete na análise descrita é o uso que o analista faz de seus pensamentos, sentimentos, sensações, fantasias, devaneios, ruminações e outros, mundanos, reservados e cotidianos, no processo de tentar entender a rede de significados intersubjetivamente gerados que constituem a transferência-contratransferência” (p. 95). O que é um grande desafio em um caso de perversão que implica uma erotização defensiva, além de encenações (enactments) sexualizadas.

No capítulo quatro – Privacidade, rêverie e técnica analítica – Ogden retoma o papel do uso do divã enquanto dispositivo do processo analítico; o analista fora do campo visual do analisando possibilita “estados sobrepostos de rêverie”. O divã favorece a privacidade da dupla para entrar em contato com seus estados de rêverie; mas isso não significa que o analista deve “insistir (de forma explícita ou implícita) que todo paciente de análise use sempre o divã”. Discute a relação entre o número de sessões semanais com o uso do divã: deveria o analista usar o divã quando o número de sessões é menor do que a ideal? Nesse capítulo o autor também renuncia à regra fundamental da análise de que o paciente deve dizer tudo o que lhe vier à mente. Aborda o fato de que a “técnica deve facilitar o processo” (p. 114), e que tanto o paciente como o analista devem ter a liberdade de falar e de silenciar. Tanto a comunicação quanto a privacidade devem ser consideradas para preservar a vitalidade do processo analítico. Ogden apoia-se na concepção de Winnicott de que no âmago de todos nós há um elemento sagrado, isolado e não comunicável.

No capítulo cinco, o autor discute as associações de sonhos no contexto da sessão como um evento intersubjetivo, aliás, como tudo na sessão. Considerando sempre a intersubjetividade do terceiro analítico: […] “Visto que as associações do analista com a experiência do sonho são extraídas da experiência do sonho no e do terceiro analítico, elas não são menos importantes, enquanto fonte de significado analítico em relação ao sonho, do que as associações do paciente” (p. 131). Entretanto, reconhecer o terceiro analítico intersubjetivo e tecer elaborações a partir dele não é tarefa fácil, o analista precisa dar tempo para que o paciente “responda ao seu próprio sonho, pois isso pode dar margem a uma forma de encenação transferencial-contratransferencial (enactment) em que o analista se serve dos sonhos do analisando e lhe oferece uma invenção narcisista” (p. 139). A experiência de sonhar é uma “experiência humana que não pode ser traduzida em uma narrativa linear, verbal, simbólica, sem perder a sintonia com o efeito criado pela própria experiência de sonhar…”; essa experiência se opõe ao significado do sonho, e, portanto, à sua compreensão (p. 139). Ao final do capítulo, retoma que a técnica analítica deve “servir ao processo analítico”, e não engessar o analista em dogmas desvitalizantes para o processo, ou seja, a técnica deve favorecer o processo e não emperrá-lo!

Consideramos que o capolavoro do livro é o capítulo seis, pois traz uma lapidada descrição de rêverie: “[…] Trata-se de uma experiência primorosamente privada que envolve os mais constrangedores aspectos cotidianos (e ainda assim tão importantes) de nossas vidas. Os pensamentos e sentimentos que a constituem são raramente discutidos com nossos colegas” (p. 146). E, mais à frente: “Paradoxalmente, apesar de o analista sentir suas rêveries como privadas e pessoais, é enganoso vê-las como ‘suas’ criações próprias, já que são, ao mesmo tempo, construções intersubjetivas inconscientes criadas em conjunto (embora assimetricamente), que chamei de ‘o terceiro analítico intersubjetivo'” (p. 147).

Ogden considera que o analista precisa tolerar “a experiência de estar à deriva” (p. 148), de ser levado pelas correntes inconscientes presentes na sala de análise. Entende que o movimento analítico é mais um estado de “deslizando em direção a” do que “chegando a” (p. 148).

A rêverie gera um desequilíbrio emocional no analista. “Os distúrbios emocionais associados com a rêverie geralmente são sentidos pelo analista como produto da interferência de suas preocupações do momento, de excessiva autoabsorção narcísica, imaturidade, inexperiência, fadiga, treino inadequado, conflitos emocionais não resolvidos, etc. A dificuldade de usar as rêveries no exercício da análise é facilmente compreendida, uma vez que tal experiência é tão próxima, tão imediata, que é difícil de ser vista: ela é, nas palavras de Frost (1942), ‘presente demais para se imaginar'” (p. 150).

A experiência de rêverie é sempre um elemento desorganizador para o analista, que ele tende a descartar, a se envergonhar, a considerar uma inabilidade, uma falha técnica. E, ao mesmo tempo, é a bússola emocional do analista, se ele tiver a condição e a liberdade psíquica de considerá-la; não é uma tarefa fácil. “Não há como ‘pular fora’ dos problemas ao se fazer o esforço de utilizar analiticamente a rêverie” (p. 150).

Após a apresentação de um interessantíssimo caso clínico, o autor concebe “o processo analítico envolvendo a criação de novos eventos intersubjetivos inconscientes que nunca antes existiram na vida afetiva, seja do analista seja do analisando” (p. 174). Ogden evidencia, em sua apresentação clínica, como suas rêveries e os sonhos da paciente “são criados no ‘mesmo espaço onírico analítico intersubjetivo'” (p. 175). A análise é um processo transformador tanto para o analista quanto para o paciente, ou seja, o analista está completamente implicado no processo, sempre considerando a assimetria da dupla. Lembramo-nos da metáfora de Bion sobre o processo analítico: o analista está no campo de batalha; assim como o analisando, pode matar ou morrer, mas tem a responsabilidade de o comando, no caso da análise, manter-se pensante.

Ogden termina o capítulo escrevendo que considera o uso das rêveries no trabalho analítico como um componente fundamental da técnica analítica. As rêveries nascem “da complexidade infinita do interjogo da vida inconsciente do analisando e do analista e das sempre mutantes construções inconscientes geradas pela ‘sobreposição’ dos dois” (p. 180).

No capítulo sete, Ogden discorre sobre o uso da linguagem em psicanálise, tanto a linguagem na sala de análise como a linguagem escrita. “O experimento de escrever, ler e escutar […] tem muito em comun com o experimento de pensar, sentir e comunicar que está no cerne da experiência analítica” (p. 186). A linguagem que comunica a experiência inconsciente precisaria ser insaturada nos termos de Bion, ou seja, quando uma linguagem sempre aberta a novos significados se fixa em um sentido, esse é provisório. Essa é a linguagem viva, sempre aberta a novos sentidos: “é essencial que o analista use linguagem que aspire a uma forma específica de imprecisão evocativa, às vezes enlouquecedora, quase sempre perturbadora” (p. 196). De forma delicada, Ogden aproxima o leitor da riqueza que existe em compreender menos e experimentar mais a/na experiência analítica: como é escutar esse paciente? como é estar com esse paciente? Não se trata de compreensão, mas de um processo de não “saber demais” (Winnicott, 1971). Ou, trata-se da prática da “arte de nãochegar (ao significado exato)” (Poirier, 1992).

O capítulo oito é um interessante exercício analítico literário; Ogden inicia o texto assim: “[…] Acrescentaria que a poesia é um grande disciplinador para a escuta analítica” (p. 211). Analisa três poemas de Frost e, ao final, escreve: “o poema não é sobre uma experiência; a vida do poema é a experiência” (p. 236). Diríamos que a vida, a vitalidade de uma sessão é a experiência transformadora que pode ocorrer através da e para a dupla analítica, mas para que isso ocorra precisamos estar à deriva das emoções inconscientes que circulam na sala de análise.

Ler Ogden é uma experiência transformadora, para aqueles que ousam se destituir da ilusão do conhecimento, e ficar à deriva.

A palavras e frases, bem como a pessoas, deve-se facultar certa imprecisão.

Boa leitura!

CAPRICHOS…

Caprichos – Adília Lopes

Conheci uma menina
muito caprichosa a comer
tinha dias que só comia chocolate
ou então ovos mexidos
diziam dela está a chocolate
como se diz de Picasso
que teve uma fase azul
de uma vez gritou
que tinha fome de queijadas de Sintra
e de mais nada
partiu brinquedos
até que mandaram uma criada á periquita
comprar-lhe queijadas
amigos da família notavam
que uma criança tem de se habituar
a comer de tudo
não porque se seja a rainha Isabel
que por uma questão de cortesia diplomática
teve de comer ratos no Punjab
nem porque esteja próximo de um período de racionamento
mas porque é a comer do que não se gosta
que se aprende a saber do que se gosta
as crianças mimadas
acabam por escrever gostava de gostar de gostar
e contraem doenças infecciosas
com muita facilidade
esta apanhou tosse convulsa
e enquanto teve tosse convulsa
só comeu pombinhas de pão
um dia a padeira enganou-se
em vez de pombinhas trouxe vianinhas
e a mãe da menina
ao vê-la chorar como uma possessa
despediu a padeira
a menina durante a convalescença
refinou
tinha ódio ao pão com manteiga
todos estavam a par deste seu ódio
pois em casa da tia Balbina
só aceitava comer pão com manteiga
dizia pão têga
o que já não era próprio da sua idade
acontecia que se recusava a pronunciar
certos sons
está em não dizer man nem ei
murmuravam na sala de visitas da tia Balbina
mas como quem fala de um prodígio
e não como quem diz coitadinha
depois de sete criadas terem sido despedidas
por não saberem cozinhar a preceito
pudim de beiço de vaca
apresentou-se uma que era extraordinária
a menina passou a tratá-la por Predilecta
a Predilecta compreendeu tão bem a menina
que no dia em que preparou com mais esmero
o prato preferido da menina
pudim de pardais assados em água
deitou no pudim um punhado quase mortal de arsénico.

Para os familiarizados com a psiquiatria infantil ensinada em São Paulo e no interior, neste e no século passado, dois nomes importantes de formadores nos vem logo à mente: Amelia de Vasconcelos e Di Loreto, psiquiatra que deu cursos de formação e supervisão a muitos dos aspirantes à especialização do atendimento de crianças. Quando a psicanálise ainda conversava mais com a psiquiatria (por que razão estão de mal, agora, não se sabe…); ainda mais no atendimento das crianças, todo médico que se especializasse na área, pediatra ou psiquiatra, estudava as teorias do desenvolvimento e aprendia que não se pode aplicar os conceitos da psicopatologia do adulto aos pequenos; que passam por doenças “normais” durante todo o seu período de maturação . Estas não devem e não merecem ser “patologizadas” e entendidas superficialmente, fora do seu contexto bio-psico-social. Amelia costumava advogar que o pediatra, habituado à clinica e ao atendimento de crianças fora do âmbito da psiquiatria, seria o mais indicado a se especializar na área, por ter uma visão mais integral da criança, enquanto que os psiquiatras partiriam sempre de um viés patologizante no seu processo de diagnóstico infantil. Embora a medicina baseada em evidências de hoje reconheça muito pouco o valor da psicanálise, na formação de muitos de nós a contribuição de psicanalistas como Winnicott e Melanie Klein trouxe a possibilidade de um pensar muito mais abrangente, profundo e perguntador. Aprendi a perguntar foi mesmo com a psicanálise. Lendo Winnicott, a presença do paradoxo constante e do pensamento perguntador me trouxeram para mais perto do que me parece ser o verdadeiro curiosear científico do que a psiquiatria biológica. Esta, como bem explica um psiquiatra amigo meu, entrou em mania e hoje em dia quer explicar tudo a partir do cérebro.

Porque que é que a simplicidade da linguagem é tão importante para os pensadores iluministas? Porque o verdadeiro pensador iluminista, o verdadeiro racionalista, nunca pretende convencer ninguém a fazer nada. Não, nem sequer deseja convencer ninguém: tem permanentemente consciência de que pode estar errado. Acima de tudo, valoriza demasiado a independência intelectual dos outros para querer convencê-los em questões importantes. Prefere provocar a contradição, preferivelmente sob a forma de crítica racional e disciplinada. Não procura convencer mas despertar – desafiar os outros a formarem opiniões livres.(…) . Ele sabe que, fora do estreito campo da lógica, e talvez da matemática, nada pode ser provado.” Karl Popper

Esta frase de Popper- um dos críticos da psicanálise- serve bem aqui para advogar em favor dela. A boa psicanálise, a psicanálise “da gema” se faz por meio das perguntas e das dúvidas e do reconhecimento de que muito pouco sabemos. Inclusive, para o Di Loreto, nós -os psis- somos poetas pouco competentes . Nossa teorias tentam explicar o que os poetas sabem muito melhor … e quando estamos no lugar de ser aquele- que-cuida, temos de tomar todo dia um chá de humildade , exercitando a tolerância diante do não-saber , é o que de mais precioso temos a oferecer aos nossos pacientes. E eu estava caçando um tema para escrever quando este poema poisou na minha janela – é dele que quero falar.

Conheci uma menina
muito caprichosa a comer…

tinha ódio ao pão com manteiga
todos estavam a par deste seu ódio

dizia pão têga
o que já não era próprio da sua idade
acontecia que se recusava a pronunciar
certos sons

No seu livro “Posições Tardias” ( ed casa do psicologo, 2007), Di Loreto traz importantes contribuições para um entendimento das crianças “mimadas”, “birrentas” e “mandonas”. Considera este comportamento normal, não patológico, numa certa fase. Mas a partir de certo tempo sua persistência indica que algo não vai bem.

Não sei como o leitor do ramo, que trabalha com a mente de crianças, compreende a birra. Para mim, ficou por duas décadas vagamente colocada como distúrbio de conduta , o que significa em termos de compreensão da mente, rigorosamente nada. Ganharia localização útil e compreensível,se entendida como uma das alterações do desenvolvimento da potência. Mas, o que é mais importante para a prática, é a seguinte constatação: quer sob a forma de crises escandalosas, quer como oposição surda e sistemática, a birra é, na cultura psi, uma patologia menor, quando não é vista apenas como “manha” e “mimo”, acompanhando a cultura popular.E, como tal, permite manejos fáceis, simples e lineares, ( “colocar limites”), aconselhado tanto por leigos quanto por profissionais. ( A irresistível atração exercida pelo conselho óbvio).

Isso não “bate” com minha experiência clínica, que me ensina que a birra é uma patologia maior, porque evidencia a permanências de grandes cisões na mente .Crianças acima de 4 anos que reagem com birra às frustrações razoáveis e realistas, demonstram que estão se organizando de modo defeituoso, um grande aspecto da personalidade, a potência. Porém, muito mais sério é o indicativo da ausência de birra, principalmente da sua ausência no segundo ano,e que tende, no entanto, a passar despercebida…

Para Di Loreto, no desenvolvimento, o bebê dependente do primeiro ano , ao crescer, aprende a falar e andar e correr, e com a potência motora recém-adquirida,aliada ao pensamento mágico caracteristico da fase, está pronto a ganhar o mundo. Crianças entre 2 e 4 anos experimentam a onipotência, como parte do seu processo de crescimento. São hipertímicas, tirânicas, fazem birra, testam os limites.Nesta fase, uma grande questão enfrentada pela criança pequena é o destino a ser dado ao seu medo. Porque algo acontece no processo do crescer: o medo surge e a onipotência se quebra. O que acontece nesse processo depende da sua maturação, do ambiente e da tomada de uma posição mais depressiva, em que começa a tomar conhecimento de sua própria destrutividade e se ocupar do outro, saindo da fase do “tudo ou nada” em direção da construção da auto estima a partir da sua verdadeira potência. A confiança em si mesma e na sua capacidade de reparar , a entrada no Édipo ( momento em que a criança passa a lidar com o sentimento de exclusão e não ser o centro do mundo) são as maiores bases para a auto-estima e a capacidade para lidar com os limites. Quando tudo corre bem a introjeção do limite se dá de pouco em pouco . Mas o que acontece quando as dissociações predominam sobre a direção natural da integração na criança…e as relações de poder, disfarçando uma sensação de impotência , negada, passam a predominar no palco das relações familares? A criança poderosa não consegue dar um bom destino ao seu medo, falha no processo de integração. A birra, saudável num momento do desenvolvimento, passa a ser expressão de um bloqueio do amadurecimento.

a menina durante a convalescença
refinou
tinha ódio ao pão com manteiga
todos estavam a par deste seu ódio
pois em casa da tia Balbina
só aceitava comer pão com manteiga
dizia pão têga
o que já não era próprio da sua idade
acontecia que se recusava a pronunciar
certos sons
está em não dizer man nem ei
murmuravam na sala de visitas da tia Balbina
mas como quem fala de um prodígio
e não como quem diz coitadinha

Para o Di Loreto, neste caso, há

Um narcisismo que, quando assim dissociador, volta-se contra o individuo.

E, como diz a Adilia Lopes, precisamos estar atentos para não deitar a estes indivíduos “um punhado quase mortal de arsênico” disfarçado em pílulas como os antipsicóticos ou as anfetaminas, tão amplamente utilizados e tantas vezes inoperantes nestes casos.

Adultos também fazem birras. Alguns se mantém vivos por meio dos embates que travam com a vida. Esses embates encobrem uma real dificuldade de se adaptar, pensar, abdicar da condição de estar no controle, ter poder sobre o outro.

Para Winnicott ” é no entremeio que talvez resida a coisa mais difícil no desenvolvimento humano, ou talvez a mais penosa de reparar,de todas as falhas iniciais que ocorrem. O que existe no meio…é o fato de o sujeito colocar o objeto fora da sua área de controle onipotente;isto é, o sujeito perceber que o objeto é um fenômeno externo, não uma entidade projetiva, na verdade, o reconhecimento de que o objeto é uma entidade autônoma.” – entenda-se aqui por “objeto” a outra pessoa com quem ele se liga.

Como diz o Drummond, amor é o que se aprende no limite, amor começa

tarde.

Somente a retomada do caminho da integração pode contribuir para o enfraquecimento da relação “dominador-dominado”, preponderante em alguns casos. É difícil:

Gostaria de ser, mas não sou um GRANDE DEUS TERAPEUTA. Também não sou um terapeuta desastrado. Sou comum, mediano, feijão com arroz, bem temperado. Uso fármacos, como terapeutica sintomática, uso psicoterapia, se consigo reter o paciente…Esclarecimentos às familias têm evitado muita via-sacra de médico em médico, de Serviço em Serviço, um mais idealizado que o outro, e cada um mais denegrido que o outro, quando o fracasso terapêutico se evidencia.” ( Di Loreto)

Dedico este post a todos os pacientes com os quais falhei, e com os quais ainda tenho falhado.

Los silêncios  . Quem fala no silêncio da menina que não fala?   

Os silêncios  . Quem fala no silêncio da menina que não fala?

Começa assim. Sexta de noite, depois de uma semana puxada de consultório, pós feriado, uma amiga querida nos convida para o cinema. O título do filme? Los silêncios. Hummm. No Instituto Moreira Sales. Sem pipoca. Chegamos. Cinema quase vazio,  começa o filme com a imagem de uma canoa, que chega a uma ilha . O barulho da canoa na água, a pouca luz , e passa pela cabeça a pergunta: valeu a pena vir? Porque começa um sono, que vem sim, do horário, do dia, do fim da semana, mas que enfim se transforma em viagem. De inicio, quero des- esperar , pular fora da canoa.

Depois entendo sem entender: esta chegada  é um convite . Como um preparo para a entrada neste mundo particular, feito de silêncios, nao-ditos, espíritos,  real  e imaginário. Dizia Victor Guerra que a transição sono- vigilia é a hora do fantasma, do sinistro, mas também a hora da entrada no mundo do sonho. Antes de adormecer, há um momento de transição, em que inicia o intercurso entre pensamentos, restos do dia, e devaneios, imagens… É a entrada num processo primário de pensamento, em que a mente escorrega em associações frouxas, figuras flutuantes, perdendo a linha reta das palavras e das ideias. É torvelinho. É a  entrega do corpo e da alma a um fluxo livre que desemboca enfim no sono e no sonhar. Me vem à mente: às vezes, como as crianças, demoro e custo a dormir, com dificuldade de me deixar levar para este momento de transição. Num dia tenso , falta a segurança para se sustentar numa canoa que balança. Quero  des-esperar e pular fora. Assim me sinto no cinema começando a ter sono até que uma luz , na tela, se transforma em uma pessoa que recebe e acolhe os passageiros da canoa. Percebo que também chego. Chego à ilha. Chego de canoa.

Um filme assim é como uma vertigem. Na vida diurna , moderna, estamos encharcados, empapuçados de palavras. Somos falantes , ou até ouvintes , mas há poucos lugares  para a  escuta . Assim é estranho penetrar no silêncio e se deixar envolver por ele. Filmes assim são preciosos. Densos , ricos nas linguagens não  verbais , envolventes. Transportam para o reino do silêncio e do sentimento, e nos ajudam a botar reparo no agora das coisas. O pensamento também é um modo de não estar presente. A película tem um andamento particular, muitas vezes lento : e o silêncio a atravessa de muitas maneiras. O escuro, a pouca luz. O não dito da menina, filha, índia, que começa a intrigar a gente: por que ela não fala? E o silêncio do luto. Trata este filme do desamparo de Amparo, viúva dos conflitos da Colombia, refugiada em uma região  fronteiriça numa comunidade amazônica. Sem trilhar o caminho da vitimização, retrata a mulher em seu processo de integração na comunidade , enquanto lida com sua grande perda.

Em ” Los Silencios” falam os mortos e falam os vivos, fala a modernidade e fala o modo mais primitivo de viver dos índios, em seu contato com o sobrenatural, com o ritual e em comunidade. Perto do final do filme se rompe o silêncio dos que antes foram calados , e então o luto de Amparo se encaminha para uma resolução ritual, poética. Se o poeta tentou fotografar os silêncios, Beatriz Seigner, diretora deste filme, bem logrou filmá-lo.

O filme está em cartaz.

Dificil fotografar o Silêncio. Poema de Manoel de Barros.

Cartas de Winnicott ( por Cecilia Hirchzon)

Este é Winnicott: criativo, arrojado, franco, irreverente, humilde, sedento de reconhecimento, sensível, voltado para problemas sociais, libertário e sobretudo fiel a si mesmo.

 

 

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições! Ninguém me diga “vem por aqui”.
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou…
Não sei por onde vou, Não sei para onde vou
– Sei que não vou por aí!

(José Régio. Poemas de Deus e do Diabo, 2005)

 

 

Cartas de Winnicott

Por Cecília Luiza Montag Hirchzon

Em um misto de busca de informação, curiosidade e talvez até um tanto de voyeurismo, fui à procura da correspondência de Winnicott para conhecer … quem era a pessoa que se expressava e existia através de suas cartas.

O livro sobre a sua correspondência em que me baseei foi O gesto espontâneo: D. W. Winnicott (1990), escrito por Robert Rodman que  teve acesso às cartas pela primeira vez em 1958.

O meu primeiro olhar foi de surpresa, seguido de interesse e admiração por esta pessoa genuína que se revela a cada passo, em todo o seu ser.

Ao comentar os diferentes autores, Winnicott elogia os trabalhos em que os analistas contribuem com suas próprias concepções, estimulando-os a ser eles mesmos. Paralelamente preocupa-se com a “confusão na Sociedade, quando vários termos são usados como se fossem plenamente aceitos”, salientando a necessidade “de descobrir uma linguagem comum”.

Mostra-se crítico, algumas vezes, com suas próprias colocações (em carta a Willi Hoffer): “manifestei um profundo desgosto por tê-la escrito, já que se trata de uma carta inteiramente ruim” (p. 26); assume conscientemente características suas : “sou daquelas pessoas que se sentem compelidas a trabalhar à sua própria maneira e a se expressar na sua própria linguagem” (p. 47).

Essas qualidades não implicam, no entanto, falsa modéstia, sabendo reconhecer o próprio valor e reivindicando seus direitos, como em uma carta endereçada a David Henderson: “Nesse caso acho que o senhor poderia ter mencionado o meu nome no lugar do de (Leo) Kanner … não entendo por que devemos procurar nos EUA algo que existe em nosso país” (p. 56).

A situação institucional e o risco de idolatria são temas frequentes de suas preocupações, como quando alerta Melanie Klein: “Estou preocupado com essa estrutura que poderia ser chamada kleiniana. Suas ideias só viverão na medida em que forem redescobertas e reformuladas por pessoas originais, dentro e fora do movimento psicanalítico” (p. 31). O comportamento por vezes impiedoso com alguns autores não o impede que em outros momentos reconheça o talento, por exemplo, de Bion: “Quero que você saiba o quanto valorizo o trabalho que você vem fazendo e apresentando em seus ensaios sobre o pensamento. Como muitas outras pessoas, eu os considero difíceis, embora extremamente importantes” (p. 115).

Nas situações em que se sente excluído, nada o impede de pedir e até mesmo implorar por um olhar sobre sua contribuição à cena analítica, daqueles que, em grande parte do tempo, não conseguem (ou não querem) reconhecer a originalidade de sua obra. Dirigindo-se a Melanie Klein, pede um movimento dela em sua direção: “Trata-se de um gesto criativo e não posso estabelecer relacionamento algum através desse gesto se ninguém vier ao meu encontro” (p. 30).

Tendo se desenvolvido em um “grupo psicanalítico e conhecido todas as suas pressões e tensões internas”, admite conhecer “a psicanálise apenas como uma ciência em luta” (p. 168), o que revela a pulsante e frequentemente explosiva atmosfera institucional daquele período.

Embora Winnicott tivesse sido médico do Departamento Infantil do Instituto Britânico de Psicanálise durante 25 anos, presidente durante dois períodos de três anos (1956-1959 e 1965-1968), e secretário científico e de treinamento por períodos de três anos (p. XV), a oposição à sua teoria foi intensa; isso não fez, felizmente para nós, com que ele renunciasse às inovações peculiares de seu pensamento: “não me importo que demonstrem que estou errado, nem que me critiquem ou ataquem. Mas fiz um trabalho importante, com o suor do meu rosto psicanalítico (isto é, clinicamente), e recuso-me a ser eclipsado” (p. 126).

Muitas vezes, em sua franqueza beirando a irreverência, passa por cima de qualquer formalismo escrevendo a altas patentes, como o Primeiro-Ministro Chamberlain, ou a Lord Beveridge. A sua participação ativa como cidadão levantando questões humanitárias mostrava-se em cartas a parlamentares e também a jornais, como o New Society e mais frequentemente ao Times, a respeito de temas como o perigo da transformação de médicos em funcionários públicos, a relação de profissionais da saúde com trabalhadores, interferência de voluntários acobertados por apoio governamental, delinquência, crime, TV patrocinada etc. Não se limita a criticar, mas também formula sugestões importantes. Enfatiza também em palestras radiofônicas sua preocupação com a democratização do conhecimento, tornando-o acessível a um público amplo.

Preocupado com a rigidez da psicanálise ortodoxa, alerta: “no todo, parece que não se disse aos estudantes que todos os analistas falham, que todos tem casos difíceis” (p. 155).

Este é Winnicott: analista criador de uma teoria que representa um marco fundamental no desenvolvimento da psicanálise.

Este é Winnicott: criativo, arrojado, franco, irreverente, humilde, sedento de reconhecimento, sensível, voltado para problemas sociais, libertário e sobretudo fiel a si mesmo.

A respeito desse autor e desse autor e dessa obra, poderíamos dizer, com Merleau-Ponty: “A verdade é que esta obra exigia esta vida” .

Penso que o texto acima descrito representa para mim uma experiência de “jogo do rabisco”, no qual as cartas de Winnicott se apresentaram como uma expressão autêntica e espontânea do seu ser. Através dessa correspondência e do meu olhar, acredito que fomos (as cartas e eu) desenhando, garatujando, e construindo um retrato dessa figura humana intensa na vida e na criação.

 

“Trata-se de um gesto criativo e não posso estabelecer relacionamento algum através desse gesto se ninguém vier ao meu encontro”

 

Leia o artigo na integra em

http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31062010000100010

O bolo de caneca

Por Odeliz Basile

A memória  guarda o seu passado. O olhar, o sabor, o cheiro, o toque, a cor a alegria e o dissabor vivido na infância de cada um de nós.

Toda criança é criança em qualquer tempo ou lugar do mundo. Cada um a seu jeito tráz na memória suas brincadeiras e brinquedos prediletos.

Quem não se lembra das cantigas de criança como: “Alecrim”, “Ciranda Cirandinha”, “Se essa rua fosse minha”,  “O Cravo brigou com a Rosa”, “ O sapo não lava o pé”, ou então, “ A barata diz que tem”, entre tantas outras canções.

Brincadeiras e brinquedos como boneca, carrinho de rolimãs, luta de espadas, bola, cabelereira, bicicleta, cabra cega , bater figurinha, esconde-esconde e futebol. Ou então, os brinquedos como  escorregador, gira-gira, gangorra, balança , bicicleta e patinete.

Leia mais

Algumas reflexões a respeito do elemento feminino puro

Ivonise Fernandes da Motta
Revista de Psicologia da UNESP, 6(1), 2007. 1
Algumas reflexões a respeito do elemento feminino puro                                                                                                        

Resumo: Este artigo tem por objetivo tecer algumas reflexões a respeito do que é
denominado elemento feminino puro na obra do pediatra e psicanalista D. W.
Winnicott. A importância da relação dual mãe-bebê no início da vida como
estruturante do indivíduo e fundamental para o estabelecimento de boas bases para o
desenvolvimento psíquico é discutida e ilustrada através de um caso clínico. Algumas
questões relevantes para a prática clínica psicoterápica são também abordadas através
de algumas reflexões sobre o trabalho clínico com a regressão.
Palavras-Chave: Winnicott, elemento feminino puro, trabalho com regressão,
relação dual mãe-bebê.

 

 

 

Cuidado com as pessoas feridas porque                                                                                                                                                                          
elas sabem que podem sobreviver”.

   (Josephine Hart)                                                                                                                                                                

Oh, pedaço de mim
Oh, metade arrancada de mim
leva o vulto teu
que a saudade é o revés de um parto
a saudade é arrumar o quarto
do filho que já morreu
Oh, pedaço de mim
Oh, metade adorada de mim
lava os olhos meus
que a saudade é o pior castigo
e eu não quero levar comigo
a mortalha do amor
Adeus.
(Chico Buarque de Holanda)

 

Bollas (1992), Khan (1981), Phillips (1988), Safra (1999), Winnicott (1990), dentre
vários autores em psicoterapia psicanalítica, ao colocarem em relevância a importância dos
fatores ambientais desde o início da vida humana, desde a concepção de um feto, ou mesmo
até antes de sua concepção (anseios, expectativas dos pais), nos sublinham a importância do
interjogo entre forças instintivas e o encontro ou desencontro com os outros constitutivos do
entorno de casa ser humano. Nesses outros teríamos que incluir desde os fatores culturais até
as características do tempo, espaço, geografia, história, etc., constitutivos dos outros seres
humanos presentes ao nosso redor.
Winnicott (1990) em vários trabalhos escritos e publicados após sua morte no livro “A
Natureza Humana”, nos quais evidencia que já tinha elaborado uma teoria própria do
psiquismo humano, estruturação e funcionamento, nos alerta para a presença do caos que
estaria incluído nas idéias ou na busca por perfeição.
Não é necessário postular um estado original de caos. Caos é um conceito que traz consigo a
idéia de ordem; a escuridão tampouco está presente no início, já que a escuridão implica na
idéia de luz. No início, antes que cada indivíduo crie o mundo novamente, existe um simples
estado de ser, e uma consciência (awareness) incipiente da continuidade do ser e da
continuidade do existir no tempo. O caos aparece pela primeira vez na história do
desenvolvimento emocional através das interrupções reativas do ser, especialmente quando tais
interrupções são longas demais. O caos é, primeiramente, uma quebra na linha do ser, e a
recuperação ocorre através de uma revivência da continuidade; se a perturbação ultrapassa um
limite possível de ser tolerado, de acordo com as experiências anteriores de continuidade do ser,
ocorre que devido às leis elementares da economia, uma quantidade de caos passa a fazer parte
da constituição do indivíduo. (Winnicott, 1990, p. 157).
Seguindo as idéias de Winnicott, a necessidade por um estado de ordem ou “perfeição”
implicaria na existência, no psiquismo, de um estado de desordem, um estado caótico
resultado de um desencontro da criança com a mãe ou com quem cumpre as funções
parentais. O que diferencia esta maneira de compreender a natureza humana seria o
entendimento de tal fenômeno não como algo instintivo sempre presente nos seres humanos o
que, costumeiramente na literatura psicanalítica denominamos “instinto de morte”, mas sim
como algo que poderia ocorrer em certos indivíduos ou em certas fases vividas pelas pessoas,
conseqüência de invasões desmedidas ou sobrecargas excessivas no que Winnicott denomina
“continuidade do ser”.
A compreensão de tal diferença no entendimento de questões desse tipo nos parece
bastante relevante, principalmente diante de certas situações clínicas, certas situações vividas
com nossos pacientes e que, dependendo do olhar que tivermos, poderá mudar radicalmente o
tipo de tratamento e conduta a ser seguida.

Exemplo Clínico
M., uma mulher de aproximadamente 35 anos, procurou atendimento psicoterápico
mobilizada por uma série de situações familiares bastante difíceis. Doenças graves e de longa
duração a rodeavam, colocando-a à frente de decisões e vivências muito complexas. Sua
família de origem não apresentava condições de dar-lhe suporte ou apoio adequados diante de
tais dificuldades. M. vinha de uma psicoterapia que, segundo sua perspectiva, estava trazendo
mais confusão e peso do que ajuda ou soluções.

Começamos a trabalhar focalizando, num primeiro plano, as questões mais
emergenciais ou urgentes e, pouco a pouco, pudemos aprofundar as questões mais encobertas
ou submersas e desvendar muitos aspectos de sua estruturação, funcionamento,
desenvolvimento psíquico. Olhar muitas de suas vivências poderia facilmente levar a
conclusões da presença de atitudes suicidas ou de tendências masoquistas pronunciadas.
Envolvimentos amorosos ou ligações com pessoas que poderiam induzir esse tipo de dedução.
Mas, ao mesmo tempo, haviam escolhas muito adequadas e relacionamentos com “boa”
qualidade.
Apesar das inúmeras supervisões desse caso ou discussão com colegas nos quais esses
aspectos foram abordados, resolvi desde o início deixar-me guiar por minhas próprias
vivências transferenciais e contratransferenciais. Seguindo essa direção, essas conclusões
pareciam superficiais e insatisfatórias. Algo mais teria que ser trazido à revelação, e mesmo,
às vezes, surgindo a aparência da possibilidade de que ela estaria “à beira do abismo”, nunca
houve preocupação de minha parte de que isso ocorreria. Segundo a conceituação de
Winnicott (1954/1978), o diagnóstico psicológico que pude realizar no início de seu
tratamento foi o de que ela pertenceria ao grupo um, ou seja, ao grupo de pacientes que
operam como pessoas totais e cujas dificuldades estão na alçada das relações interpessoais.
Dizendo de outra maneira, ela pertenceria ao grupo de pacientes denominados “normais” ou
“neuróticos”.
Uma década se passou desde então, e trouxe a confirmação de que meu olhar e sentir
estavam corretos ou, poderíamos dizer de maneira melhor, mais próximos de sua realidade
psíquica. M. enfrentou as várias dificuldades ou pedras do caminho. Foram muitas e
pesadíssimas, e à medida que foi caminhando, pode ir trabalhando com profundidade suas
angústias, das mais primitivas e arcaicas até as mais evoluídas, com a mesma determinação e
contato presentes.
Suas decisões foram se tornando gradativamente mais firmes, da mesma maneira que
seus limites, trazendo organização a situações com aparência “caótica”. E mesmo diante de
inevitáveis perdas importantes, mostrou força e enfrentamento característicos de “vida”,
muito mais do que se poderia denominar “morte”. Aspectos esses que denominamos
usualmente como “regressivos” adquiriram significância em fases de sua vida e de seu
tratamento nas quais as sobrecargas psíquicas tornaram-se pesadíssimas. Tais aspectos não se
confirmaram como determinantes de sua estruturação e funcionamento psíquico.
Minha avaliação diagnóstica feita desde o início, que ali haveria um “bom terreno” e de
que valeria o trabalho, foi confirmada. Situações ambientais e circunstanciais trouxeram
sobrecarga tão intensa que o desastre poderia ocorrer ou ter ocorrido, mas, felizmente, sua
“maneira de ser” havia escolhido outro caminho, eu diria, desde que era uma criança, desde o
começo de seu viver, desde as etapas mais primitivas de seu desenvolvimento.
Quando iniciamos o trabalho psicoterápico, M. vivia situações reais de muita
sobrecarga. Os pesos excessivos existiam nos vários níveis do viver. O marido apresentava
doença neurológica degenerativa grave, havendo repercussões das mais severas e que
gradualmente foram se agravando, o que era esperado segundo o diagnóstico que ele tinha.
Isso resultou em que M. teve de gradativamente assumir todas as responsabilidades
familiares, inclusive a sustentação econômica do lar. Decisões difíceis tiveram que ser
tomadas: internação do marido em instituição especializada quando o quadro degenerativo
estava avançado, para que ele pudesse ter os cuidados necessários à melhor qualidade de
sobrevivência possível naquele período. E é também nessa época que algo inesperado e, eu
diria, “bombástico” acontece quando é confirmado o mesmo diagnóstico em sua filha, uma
adolescente. Outra situação semelhante a do marido começava a ocorrer com sua única filha e

cujos caminhos de sofrimentos, limitações e perdas M. já bem conhecia há no mínimo uma
década.
À medida que nosso trabalho prosseguiu e ela foi mantendo contato psíquico com todas
essas vivências, quer em seu mundo interno, quer na realidade externa, com as múltiplas
dificuldades que teve de enfrentar, as melhoras foram surgindo. O que poderíamos chamar de
“defesas maníacas”, ou seja, defesas psíquicas para evitar a dor decorrente da depressão, a dor
decorrente das perdas sucessivas e graduais que vivia, essas defesas maníacas, até necessárias
em certas fases vividas por M., puderam ser abandonadas por outros tipos de defesas
psíquicas mais integradoras, conforme a fase vivenciada pela paciente.
No início do tratamento, a busca de “soluções mágicas”, semelhante a busca do
encontro da possibilidade de uma ‘cura milagrosa” para a doença do marido ou da filha, foi
gradativamente substituída por um contato maior com as perdas sucessivas vividas, um
contato maior com a depressão.
Winnicott (1963/1989), em seus escritos, valoriza a depressão como um sinal de saúde.
Diferencia dos estados psicopatológicos, dizendo da depressão saudável como semelhante a
estados de tristeza associados a sentimentos de perda e culpa. A existência da capacidade de
conter sentimentos depressivos, sentimentos de culpa é indicação que a pessoa atingiu um
estado de integração, um estado unitário de self, atingiu a capacidade para preocupação.
Quando eu era estudante de medicina, aprendi que a depressão traz dentro de si mesma o
germe da recuperação. Esse é um ponto brilhante na psicopatologia, e vincula a depressão ao
sentimento de culpa (a capacidade para sentir culpa é um sinal de desenvolvimento saudável) ao
processo de luto. O luto também tende a terminar seu trabalho. A tendência que trazem
embutida para a recuperação, vincula a depressão igualmente ao processo maturacional da
infância de cada indivíduo, um processo que (em ambientes facilitadores) conduz à maturidade
pessoal, que significa saúde”. (Winnicott, 1963/1989, p. 55-56).
O que eu chamaria de caos foi gradativamente substituído por um viver mais “estável”
ou “tranqüilo”, diante das perturbações inevitáveis que enfrentava em seu dia-a-dia. Ou seja,
em um tipo de situação desse tipo, perfeição é algo totalmente impossível de ser vivenciado, o
usual seria um vivenciar pontilhado de emergências e imprevistos que teriam que ser, foram e
são vividos.
Buscar uma “ilha paradisíaca” ou fugir do sofrimento através de “condutas maníacas”
ou possíveis “desvios mágicos” (promessas de curas milagrosas) apenas acentuaram o caos, a
perturbação, a turbulência. À medida que um maior contato psíquico foi sendo conseguido,
apesar das constatações difíceis visualizadas passo a passo, certo estado de ordem, de
organização foi sendo estabelecido e gradativamente fortalecido.
Passado mais de uma década do início da psicoterapia, a hipótese inicial foi confirmada:
o solo era “bom”, precisava tratamento “adequado”. Quando do encontro com os cuidados
pertinentes a sua situação psíquica, seu caminhar foi ganhando desenvoltura, firmeza,
enfrentamento e superação das difíceis situações “reais” de sua vida, revelando trabalho
similar quanto às suas vivências internas.
Utilizando mais uma vez as palavras de Winnicott (1990)a respeito do caos: “O caos
aparece pela primeira vez na história do desenvolvimento emocional através das interrupções
reativas do ser, especialmente quando tais interrupções são longas demais” (p. 157).
Quando encontrei M., já fazia mais de uma década que ela convivia com a doença
degenerativa do marido, e, portanto, ao escrever esse artigo mais de 20 anos,
aproximadamente 25 anos, foram vividos com tons e características de “caos”, por vezes de
maior ou menor intensidade. Indubitavelmente foram, e são, interrupções de um viver
“normal” ou “comum” por um período demasiadamente longo.
Discussão do Caso Clínico
Levar em consideração o ambiente na constituição e estruturação psíquicas
fundamentais do ser humano é vislumbrar a importância do fator dependência característico
do início de todos os seres humanos: dependência a uma mulher (mãe), dependência aos
outros componentes da família, dependência dos valores culturais da época, dependência das
normas correntes de medicina da época (pediatria, puericultura, etc.).
Valorizar os primeiros anos de vida e, em especial, os primeiros meses de vida como
constitutivos de bases confiáveis ou não para o que costumeiramente chamamos Saúde, é
tocar em questões como dependência, dos mais variáveis tipos possíveis, semelhantes aos
descritos acima, no parágrafo anterior.
A primeira mamada teórica é representada na vida real pela soma das experiências iniciais de
muitas mamadas. Após a primeira mamada teórica, o bebê começa a ter material com o qual
criar. É possível dizer que aos poucos o bebê se torna capaz de alucinar o mamilo no momento
em que e mãe está pronta para oferecê-lo. As memórias são construídas a partir de inúmeras
impressões sensoriais, associadas à atividade de amamentação e ao encontro do objeto. No
decorrer do tempo surge um estado no qual o bebê sente confiança em que o objeto de desejo
pode ser encontrado, e isto significa que o bebê gradualmente passa a tolerar a ausência do
objeto. Desta forma inicia-se no bebê a concepção da realidade externa, um lugar de onde os
objetos aparecem e no qual desaparecem. Através da magia do desejo, podemos dizer que o
bebê tem a ilusão de possuir uma força criativa mágica, e a onipotência existe como um fato,
através da sensível adaptação da mãe. O reconhecimento gradual que o bebê faz da ausência de
um controle mágico sobre a realidade externa tem como base a onipotência inicial transformada
em fato pela técnica adaptativa da mãe. (Winnicott, 1990, p.126).
A importância da adaptação da mãe, facilitada pelo estado de “preocupação materna
primária”, característico dos fenômenos regressivos típicos da gravidez, e conseqüente
aumento de contato da mãe com o bebê teceria a fusão, a ilusão necessárias e imprescindíveis
a esses estados iniciais.
Utilizamos o conceito “preocupação materna primária”, seguindo a definição de Abram:
A mulher grávida sadia transforma-se em mentalmente “enferma” pouco antes de dar à luz e
algumas semanas após o parto. Esse estado único é denominado por Winnicott de “preocupação
materna primária”. A saúde psicológica e física do bebê, de acordo com sua tese, está na
dependência de a mãe ser capaz de ingressar e sair desse estado tão especial de ser. (Abram,
2000, p. 183).
A presença de experiências de contato “suficientemente bom” e ilusão marcariam
constância e estabilidade, como qualidades desses meses iniciais em contraposição a
vivências de invasões, rupturas, ausências por demais prolongadas da figura materna, que
poderiam deixar marcas de vivências disruptivas ou de caos. Marcas de vivências de quebras
nas sensações e vivências de continuidade do ser.
As conceituações dessa ordem feitas por Khan (1981, 1983), Milner (1929, 1991),
Winnicott (1975, 1978, 1989, 1990), dentre vários autores que valorizam a participação do
ambiente no desenvolvimento psíquico, em relação à criatividade primária ou ao elemento

feminino puro ou masculino puro, presentes em homens e mulheres, abriu caminhos para

inúmeras pesquisas sobre esses aspectos básicos do início.
Jan Abram (2000), em seu dicionário das palavras e expressões utilizadas por
Winnicott, ao abordar as questões sobre a criatividade, escreve:
A teoria da criatividade de Winnicott apresenta certas divergências em relação às de Freud e
Melanie Klein. Nela as raízes da criatividade situam-se nos primórdios da vida e no centro da
relação mãe-bebê. De uma forma bastante resumida, segundo Freud, a criatividade do adulto
está vinculada a sua teoria da sublimação. Já para Melanie Klein, a criatividade associa-se a
aspectos reparadores inerentes à posição depressiva (que se estabelece algumas semanas ou
meses após o nascimento). (p.84).
Para Winnicott, estaria presente desde o início nos seres humanos, algo semelhante a
uma tendência em buscar contato, comunicação, encontro, com as condições necessárias para
um desenvolvimento psíquico favorável. Nesse começo, o encontro com um estado de fusão
com a mãe estabelece bases primordiais para o que denominamos o sentido de continuidade
de ser.
Nessa perspectiva, o bebê e a mãe são um único ser. Essa é a vivência imprescindível
para o estabelecimento de bases estáveis para a estruturação e desenvolvimento psíquicos.
Para o desenvolvimento de um viver criativo, e o sentimento que a vida é real, e que tem valor
apesar das adversidades inevitáveis ao longo de qualquer existência humana.
Ao ter essa vivência de fusão com a mãe, na qual o bebê sente que é a mãe, com todas
as qualidades e atributos pertencentes à figura materna, fenômenos descritos como inveja e
voracidade diminuem sua presença e intensidade na medida em que o bebê é possuidor de
tudo que a mãe tem.
Nessa ótica, o que na literatura psicanalítica é denominado de “instinto de morte”, seria a
constatação do desencontro de situações favoráveis ao estabelecimento dessas vivências
iniciais e fundamentais de fusão, ilusão, magia, onipotência, etc. E por isso mesmo, pela
ausência dessas condições iniciais favoráveis, apareceria a busca da perfeição.
A idéia de um tempo maravilhoso no útero (o sentimento oceânico, etc.) é uma organização
complexa de negação da dependência. Qualquer prazer sentido numa regressão faz parte da
idéia de um ambiente perfeito, e contra esta idéia pesa sempre uma outra, tão real para a criança
ou o adulto regredidos quanto a primeira, de um ambiente tão ruim, que não haveria nele
qualquer esperança para uma existência pessoal. (Winnicott, 1990, p. 180).
O elemento feminino puro presente em homens e mulheres, segundo a conceituação de
Winnicott, estaria baseado nesse estado inicial de fusão com a mãe. A dependência inicial
absoluta, o bebê e a mãe fundidos, seria a identificação primária sustentadora e precursora das
possibilidades futuras de um favorável desenvolvimento psíquico. Nesse estágio, a
dependência não seria sentida como tal, já que o bebê vive um estado de tamanha fusão e
completude com a mãe, que a dependência não seria percebida.

Essas considerações me envolveram, portanto, numa afirmação singular sobre os aspectos
masculinos e femininos puros do bebê masculino ou feminino. Cheguei a uma posição em que
posso afirmar que a relação de objeto em termos desse elemento feminino puro nada tem a ver
com impulso (ou instinto)…O estudo do elemento feminino, puro, destilado e não-contaminado,
nos conduz ao SER, e constitui a única base para a auto-descoberta e para o sentimento de
existir (e, depois, à capacidade de desenvolver um interior, de ser um continente, de ter a
capacidade de utilizar os mecanismos de projeção e introjeção e relacionar-se com o mundo em
termos da introjeção e da projeção). (Winnicott, 1975, p. 117)

Sob essas bases e onipotência vivenciadas pelo bebê com a mãe, a criança irá
gradativamente aceitando as desilusões inevitáveis do processo de crescimento e
amadurecimento.
A mãe, através da identificação e empatia com o bebê, irá apresentando “o mundo em
pequenas doses”, ponto que trará as desilusões necessárias ao bom desenvolvimento, de
maneira a serem integradas pelo bebê como avanços ou conquistas e não como invasões ou
rupturas desmedidas. Da mesma maneira, em pequenas doses, o psicoterapeuta irá
gradativamente facilitar o aumento do contato psíquico do paciente, tanto com o seu mundo
intrapsíquico, quanto com os mais diversificados aspectos de seu ambiente.
Nesse contexto, saúde estaria inexoravelmente ligada a viver determinadas etapas no
tempo certo. Nesse início, portanto, saúde estaria relacionada sempre à fusão e dependência
quase que absoluta ou total. Prematuridade ou prolongamentos demasiados longos de certas
fases estariam relacionados a perigos ou possibilidades de entraves ou sobrecargas ao
desenvolvimento favorável.

O Trabalho com Regressão
Sabemos que qualquer tratamento psicanalítico irá trabalhar com regressão, quer em
doses mínimas, quer em doses mais acentuadas, dependendo da situação psíquica do paciente,
quer em seus aspectos e características internos, quer em suas vivências e acontecimentos
com a realidade externa, com aspectos vivenciais, ambientais e por vezes circunstanciais.
Crises menores ou mais severas adentram o viver humano nas mais diferentes etapas e idades.
Nesse contexto, o que Winnicott (1975) denomina elemento feminino puro seria um
aspecto básico por conter os elementos essenciais da confiança e segurança nos vínculos, nos
próprios objetos internos, nas memórias e vivências mais primitivas da existência humana.
Em sendo necessária a regressão para esses estados iniciais, as vivências satisfatórias de fusão
com a mãe constituirão a base indispensável para qualquer trabalho psíquico a ser
desenvolvido.
Uma das inovações mais importantes trazidas por Winnicott (1990) foi a das
possibilidades do uso e trabalho com regressão nos mais diferentes quadros psicopatológicos,
desde os mais regredidos até os pacientes ditos “normais” ou “neuróticos”. A utilização e
manejo de vivências regressivas, segundo esse autor, podem ser vitais para os avanços,
melhorias e possibilidades de mudanças psíquicas.
A regressão, no entanto, tem uma qualidade curativa, pois é possível reformular experiências
precoces através da regressão, havendo algo de verdadeiramente repousante quando se
experimenta e se reconhece a dependência. O retorno da regressão depende da reconquista da
independência, e se isto é bem trabalhado pelo terapeuta, a conseqüência é que a pessoa se
encontrará numa situação melhor do que antes do episódio. Tudo isto depende obviamente da
existência da capacidade de confiar, tanto quanto da capacidade do terapeuta de fazer jus à
confiança. E é possível que ocorra uma longa fase preliminar do tratamento consistindo
exatamente na construção dessa confiança. Na regressão ocorrida dentro de um processo
terapêutico o paciente (de qualquer idade) deve revelar-se capaz de em algum momento
alcançar uma não-consciência do cuidado ambiental e da dependência, o que significa que o
terapeuta está dando uma adaptação suficientemente boa à necessidade. Vemos aqui um estado
de narcisismo primário, que deve ser alcançado em algum momento do tratamento. (Winnicott,
1990, pp. 163-164)

Bollas (1992), ao escrever sobre o trabalho com a regressão em pacientes bastante
perturbados ou em pacientes neuróticos ou normais, reafirma a importância do acesso, uso e
integração de aspectos primitivos ou arcaicos do self, tanto do paciente quanto do analista ou
psicoterapeuta.
Se um analista é bem analisado e tem confiança no funcionamento do seu próprio ego e
relações objetais, penso então ser muito mais provável que ele tenha a capacidade necessária
para uma regressão contratransferencial produtiva durante a sessão. Sabemos que o espaço e o
processo analítico facilitam os elementos regressivos no analista, como também no paciente, e
assim, se cada analista trabalhar a favor e não contra a contratransferência deverá estar
preparado para ficar doente de vez em quando e em determinadas circunstâncias. Sua
receptividade para o reviver da transferência do paciente significará, certamente, que a
representação que este faz de porções perturbadas da mãe, do pai ou do self do infante será
vivenciada no uso transferencial do analista (Bollas, 1992, p. 249)
O caminho percorrido por M. confirmou esses rumos traçados anteriormente: a pesquisa
inicial pela possibilidade de confiança e, quando esta foi adquirida, as vivências necessárias
de dependência que toda sua situação real e psíquica requisitava.
Nos anos iniciais do tratamento a dependência adquiriu grande importância e seu
manejo foi fundamental para o trabalho realizado, envolvendo inclusive questões básicas
sobre setting: aumento do número de sessões, sessões extras, cuidados e medidas diferenciais
em períodos de férias, etc.
Nas fases de regressão, o que denominamos usualmente “neutralidade” do analista, cede
lugar ao que poderíamos chamar o surgimento da pessoa real do psicoterapeuta. O
psicoterapeuta tendo que se colocar no lugar de uma mãe suficientemente boa que consegue
se adaptar às necessidades do paciente, que estando regredido, necessita de cuidados
especiais. O paciente necessita que o psicoterapeuta desempenhe algumas funções egóicas
que, em outros períodos ou fases, ele consegue coordenar até com relativa facilidade.
Durante certo período do tratamento com M. isso ocorreu, quando pude constatar a
importância de compartilhar certas decisões, semelhante à de internar o marido em uma
instituição especializada, quando a degeneração neurológica indicava ser esse o melhor
caminho a tomar, aliado ao trabalho com conflitos e angústias que isso acarretava. Da mesma
maneira, tantas outras decisões nas quais muitas vezes pude intervir ou participar que se
referiam aos tratamentos mais adequados para a filha, adaptações sucessivas e gradativas
quanto às restrições que ela própria e a filha tiveram que enfrentar.
Para dar mais um exemplo do que estou denominando nesse artigo por trabalho com
regressão, requisitando adaptação do psicoterapeuta às condições psíquicas momentâneas do
paciente, poderia citar um fato ocorrido numa determinada noite após uma sessão extra com
M., marcada pelas pesadas pressões vividas por ela na época. Ao sair do consultório percebi
que M. caminhava pela rua indo em direção a sua casa. Eu estava de carro, parei e lhe ofereci
a possibilidade de levá-la até onde morava (relativamente perto de meu consultório e de
minha residência). Procedi dessa maneira porque me preocupava com sua fragilidade, e se ela
seria capaz de se proteger adequadamente na situação psíquica que se encontrava. Através
desse caso, e vários outros nos quais manejos e adaptações foram necessários porque o
paciente estava regredido, pude confirmar a importância desse tipo de mudança de setting, no
que tange ao aumento de confiança por parte do paciente em relação ao psicoterapeuta. O
paciente ao sentir que pode contar com um psicoterapeuta suficientemente bom que,
semelhante a uma mãe suficientemente boa, pode se adaptar ao filho, aumenta os laços de
confiança surgindo a possibilidade de trabalhar aspectos profundos e primitivos do psiquismo.

Ao escrever sobre esse tema, Margaret Little (1992), psicanalista e paciente de D. W.
Winnicott, que pôde vivenciar um tratamento com base na regressão diz:
A regressão para a dependência é um “processo de cura” (Winnicott, 1954 b) originado não
no analista, mas naquela parte do analisando, seu “verdadeiro self” (Winnicott, 1949 a, 1960 b),
que ainda pode esperar uma reversão do fracasso original, encontrando no analista uma
adaptação suficiente para as suas necessidades. É preciso haver um “tratamento” em vez de uma
“técnica”; e um comportamento intuitivo, não interpretação verbal. Mas isso não é fácil, porque
envolve o analisando em uma volta assustadora ao primeiro estágio não integrado. Há o risco de
aniquilação repetida pelos estímulos aos quais ele tem de reagir fisicamente (reflexo de choque),
e com uma integração forçada, contra os quais ele não tem defesas e não pode compreender; de
deixarem-no cair quando ele está indefeso, não havendo limites ou controle.
O analista tem de ser capaz de renunciar às suas defesas contra a mesma ansiedade, o medo
de aniquilação, da perda de identidade, tanto por si mesmo como pelo paciente. Ao mesmo
tempo, sua própria identidade deve permanecer distinta e seu sentido de realidade inalterado,
mantendo a consciência em dois níveis extremos, o da realidade e o da ilusão. Ele está na
posição de uma mãe vis-à-vis o filho, mas onde nem ele nem o paciente estão de fato nessa
situação. Isso exige as mesmas qualidades de “mãe suficientemente boa” (Winnicott, 1952 b),
empatia com a criança (Winnicott, 1960 a) e capacidade de considerá-la uma pessoa separada.
Não contar com a ‘atitude profissional” para aceitar um “relacionamento direto” com o paciente
como distinto da imagem do espelho, e lembrar-se de que a sexualidade não tem qualquer
sentido aqui; unir-se fisicamente a ele aceitando a ilusão de unidade; tolerar o ódio do paciente
sem revidar quando os traumas originais são revividos (Winnicott, 1947, 1960 c) e suportar as
suas próprias emoções quando elas são despertadas” (p.88).
À medida que o trabalho foi prosseguindo, mesmo em fases em que as circunstâncias
externas de M. tornavam-se bastante adversas, o trabalho com os aspectos regressivos foi
satisfatório, possibilitando a volta gradativa a um viver, pouco a pouco, com características de
maior independência. Independência que foi ganhando tamanho e firmeza ao longo do
tratamento desenvolvido, ao longo dos anos percorridos.
No caminho de retorno, o paciente precisa que o terapeuta exerça duas funções – a pior
função que se pode imaginar em todos os aspectos, e a melhor de todas – ou seja, a função da
figura materna idealizada engajada em cuidar com perfeição de seu bebê. O reconhecimento do
terapeuta idealizado e muito mau caminha passo a passo com o gradual aceitação, por parte do
paciente, do bem e do mal existentes no self, da desesperança ao mesmo tempo que da
esperança, daquilo que é real e daquilo que não é, ou seja, de todos os extremos contrastantes.
Ao final, se tudo vai bem, há uma pessoa que é humana e imperfeita relacionando-se com um
terapeuta que é imperfeito, no sentido de não desejar agir perfeitamente apenas para além de um
certo nível, e para além de um certo período de tempo. (Winnicott, 1990, p. 164).

Considerações Finais
O trabalho clínico vivenciado no dia-a-dia com nossos pacientes nos colocam inúmeras
questões além das que mencionamos nas páginas anteriores.
Qual é o estado do indivíduo humano quando o ser emerge do interior do não-ser? Onde fica
a base da natureza humana em termos do desenvolvimento individual? Qual o estado
fundamental ao qual todo ser humano, não importa a sua idade ou experiência pessoais, teria
que retornar se desejasse começar tudo de novo?
A proposição de uma condição deste tipo envolve um paradoxo. No princípio há uma solidão
essencial. Ao mesmo tempo, tal solidão somente pode existir em condições de dependência
máxima. Aqui, neste início, a continuidade do ser do novo indivíduo é destituída de qualquer
conhecimento sobre a existência do ambiente e do amor nele contido, sendo este o nome que
damos (nesse estágio) à adaptação ativa de uma espécie e dimensões tais, que a continuidade do
ser não é perturbada por reações contra a intrusão. (Winnicott, 1990, pp. 153-154)
Para Winnicott o ser emerge da solidão, desse estado inicial de fusão do bebê com a
mãe, de dependência suficientemente boa. A solidão estando intrinsecamente ligada à
dependência e confiança, muito antes que o bebê possa ter alguma percepção destas. Se as
experiências iniciais de fusão com a mãe são suficientemente boas, a confiança nos vínculos,
no viver, na própria criatividade é estabelecida e fortalecida gradualmente ao longo dos dias,
meses e primeiros anos de vida. A presença da confiança estabelecida nesse início dá boas
bases para o interjogo entre ilusão e desilusão. Desilusões características e gradativas do
processo de separação e individuação mãe-bebê, e se bem dosadas levariam ao
amadurecimento, às integrações sucessivas e graduais do self. Essa é a base da capacidade de
ficar só, que surgirá mais tarde no desenvolvimento resultante destes estágios primordiais de
confiança e dependência absolutas. É também dessa raiz que surge a presença de condições
satisfatórias para que a pessoa possa fornecer bons cuidados para consigo própria ao longo de
toda sua existência.
Nesse interjogo de forças, a presença da confiança garante a ilusão guiando para doses
gradativas de desilusão. Desilusão, que se bem dosada, nos levaria a possibilidades de
desdobramentos sucessivos na linha de constituição de uma estrutura psíquica caracterizada
por riqueza interna. Riqueza interna no sentido do que Winnicott denomina “verdadeiro self”.
O termo “verdadeiro self” é revestido dos significados que o conceito representa: identidade
própria, contornos firmemente estabelecidos, tons e matizes individuais em termos de ser e
existir, etc.
Ao iniciar o trabalho com M., estavam presentes boas condições psíquicas, que
poderíamos pressupor, advinham desses estágios iniciais de dependência nos quais
experiências favoráveis puderam ser internalizadas. M. apresentava seus pais e familiares
revestidos de muitas características essencialmente narcísicas, que poderíamos qualificar de
mais “infantilizadas”, e por isso mesmo sem condições de prestar-lhe auxílio diante das
dificuldades que enfrentava. Porém, havia um bom solo, um bom lugar para que o trabalho
que se seguiu fosse desenvolvido.
Em toda análise a longo prazo, o paciente quer saber quem eu sou, e geralmente não
consegue dizer o que tal frase significa. Pois se o que ele ou ela deseja são informações
pessoais, fatos sobre minha vida pessoal e formação educacional, essa não é a questão mais
profunda. Eu acredito que eles diriam isto se pudessem: quero saber algo tem a ver com o
Verdadeiro Self, se não for idêntico a ele. O único jeito de conseguirem um pouco disso é, antes
de mais nada, passando um período de tempo comigo, durante o qual nós passássemos por
muitos estados de humor dentro das regularidades do setting analítico. O que eles eventualmente
ficam sabendo é algo sobre mim, inadvertidamente expresso através da disciplina da

anonimidade, dentro da qual eu focalizo minha atenção e a capacidade de reflexão deles. O que
eles aprendem é que eu não sou uma das figuras de transferência que eles regularmente
percebem, mas ao invés disso, uma estranha e nova figura que eles nunca encontraram antes.
Essa estranheza pode ser um eco da estranheza original de seus próprios pais, a quem eles
conhecem apenas em parte e, ás vezes, a um grau mínimo. Pode-se viver uma longa vida e mal
conhecer os pais, eu quero dizer, compreender as dimensões subjetivas da experiência de vida
de seus pais. Isso leva ao assunto do valor de conhecer alguém, o que está próximo às limitações
narcísicas do conhecimento subjetivo. (Rodman, 1999, pp. 68-69)
Mesmo estando vivendo ainda grandes limitações que circunstâncias de sua vida
presentificam (filha com doença neurológica degenerativa em estado avançado), M. pode
reconstituir, resgatar um viver com melhor qualidade nos vários diferentes setores (trabalho,
cuidados com saúde, amizades, envolvimento amoroso, etc.).
Sem dúvida alguma, foi um árduo e grande trabalho realizado graças tanto às suas boas
condições psíquicas presentes anteriormente ao início da psicoterapia, quanto a sua
determinação e coragem em se adentrar e enfrentar as várias dificuldades vividas, as várias e
pesadas pedras do caminho. Através do atendimento do caso de M. tive a possibilidade de
questionar e de confirmar vários aspectos do que denominamos trabalho com regressão,
incluindo-se a dependência e seu manejo. E apesar das pesadas dificuldades que
compartilhamos, eu diria que, tanto ela quanto eu, pudemos não só aprender, mas também
enriquecer com os vários passos percorridos.
E, para concluir, caberia usar algumas palavras escritas por Winnicott ao dizer:
Se o desenvolvimento transcorre favoravelmente, o indivíduo torna-se capaz de enganar,
mentir, negociar, aceitar o conflito como um fato, e abandonar as idéias extremas da perfeição e
do seu oposto, que tornam a existência intolerável. O compromisso não é uma característica dos
insanos. O homem maduro nem é tão bonzinho nem tão desprezível quanto o imaturo. A água
no copo é barrenta, mas não é barro. (Winnicott, 1990, p. 160)

Motta, I. F. (2007). Some reflections about the pure feminine element. Revista de
Psicologia da UNESP, 6(1), 1-12.
Abstract: The target of this article is to make some considerations on the so called pure
feminine element in the works of D. W. Winnicott, pediatrician and psychoanalyst. The
importance of the dual mother-baby relationship in the beginning of life, as individual
structuring and a fundamental in the establishment of good basis for the psychological
development, is illustrated and analyzed through a clinical case. Some relevant questions
concerning the psychotherapeutic clinical pratice are also approached through some
considerations on the clinical work with regression.
Keywords: Winnicott; pure feminine element; work with regression; dual mother-baby
relationship

Referências
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Winnicott, D. W. (1989). Tudo começa em Casa. São Paulo: Martins Fontes.
Winnicott, D. W. (1990). Natureza Humana. Rio de Janeiro: Imago.

 

 

Abrir a possibilidade para novas narrativas: um desafio. por Angela Hiluey.

http://pepsic.bvsalud.org/pdf/vinculo/v15n1/v15n1a02.pdf

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Abrir a possibilidade para novas narrativas: um desafio. Hiluey, A.

ABRIR A POSSIBILIDADE PARA NOVAS NARRATIVAS: UM DESAFIO

Angela Hiluey

RESUMO

Uma diversidade de narrativas pode enriquecer a vida humana, dada a possibilidade de atribuir significado à experiência relacional desde a vida intrauterina até a morte, postula Linares (2003; 2014). Por outro lado, conta-se com a resistência do ser humano a rever suas visões. Dada tal resistência, neste trabalho tem-se como objetivo mostrar uma ferramenta para auxiliar na construção de novas narrativas: a atividade artística-lúdica no atendimento a casais e famílias sob a ótica da abordagem sistêmico-integrativa. Tal ferramenta tanto permite que o ser humano, sem se dar conta, expresse sua angústia, quanto permite ser uma intervenção terapêutica propriamente dita. Através de um caso clínico, será ilustrado o planejamento da atividade lúdica; o uso da atividade proposta; e seus resultados. Constatou-se que novas percepções puderam ser referidas, e as mesmas permitiram a construção de novas narrativas familiares.

Palavras-chave: narrativas familiares; atividade lúdica; atendimento a casais e famílias; abordagem sistêmico-integrativa.

OPEN THE POSSIBILITY FOR NEW NARRATIVES: A CHALLENGE ABSTRACTS

A variety of narratives can enrich human life, given the possibility of assigning meaning to the relational experience from intrauterine life until the death, postulates Linares (2003, 2014). On the other hand, there is the resistance of the human being to revise its visions. Given this resistance, this work aims to present a tool to assist in the construction of new narratives: the artistic-ludic activity to care for couples and families from the perspective of the systemic-integrative approach. Such a tool allows the human being, without realizing it, to expresses his anguish, as it allows to be a therapeutic intervention properly said. Through a clinical case, will be illustrated the planning of the ludic activity; the use of the proposed activity; and their results. It was observed that new perceptions could be referred to, and they allowed the construction of new family narratives.

Keywords: family narratives; ludic activity; care for couples and families; systemic- integrative approach.

ABRIR LA POSIBILIDAD PARA NUEVAS NARRATIVAS: UN DESAFIO RESÚMEN

Una diversidad de narrativas puede enriquecer la vida humana, dada la posibilidad de atribuir significado a la experiencia relacional desde la vida intrauterina hasta la muerte, postula Linares (2003; 2015). Por otro lado, se cuenta con la resistencia del ser humano a revisar sus visiones. Dada tal resistencia, en este trabajo se tiene como objetivo mostrar una herramienta para auxiliar en la construcción de nuevas narrativas: la actividad artística-lúdica en la atención a parejas y familias bajo la óptica del abordaje sistémico-integrativa. Tal herramienta permite tanto que el ser humano, sin darse cuenta, expresa su angustia, como permite ser una intervencion terapeutica propiamente dicha. A través de un caso clínico, se ilustra la planificación de la actividad lúdica; el uso de la actividad propuesta; y sus resultados. Se constató que nuevas percepciones pudieron ser referidas, y las mismas permitieron la construcción de nuevas narrativas familiares.

Palabras clave: narrativas familiares; actividad lúdica; atención a parejas y familias; enfoque sistémico-integrativo.

“O mundo não é o que penso, mas o que vivo, estou aberto ao mundo, comunico-me indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é inesgotável.”

(Merleau-Ponty, 1971, p.14)

Esta epígrafe nos oferece a oportunidade de nos apercebermos que enquanto tivermos vida teremos a possibilidade de aprender e assim poderemos tecer diferentes narrativas individuais e familiares.

Tais possibilidades podem nos estimular a enfrentar os desafios com os quais nos defrontamos na prática clínica. Temos uma vasta bibliografia na terapia familiar e em outros campos do conhecimento que são o nosso alicerce para seguirmos em frente. Tais pressupostos poderão auxiliar a autora a apresentar o objetivo desse trabalho.

Linares (2014) nos abre uma primeira porta para enfrentarmos tal desafio quando se refere ao sentido de sua expressão: Terapia Familiar Ultramoderna. O autor explicita que tem com essa terminologia o objetivo de estimular a abertura das janelas do território sistêmico para ares novos para que se alimente com aquilo que há de muito bom já presente na tradição psicoterapêutica.

No entanto estar aberto ao mundo, conforme a epígrafe permite vislumbrar, não é necessariamente uma possibilidade tão natural, e as palavras de Bion (1992, p.9-10) nos confirmam tal vislumbre:

(…) Mas todos nós odiamos a tempestade que implica o ato de rever nossas visões; é muito perturbador pensar que poderíamos chegar a mudar de parceiro, ou profissão, ou país, ou sociedade; assim, a pressão para dizer “daqui não passo” estabelece uma resistência ao aprendizado (…). (BION, 1992, p 9-10).

A presença da abordagem sistêmico integrativa por outro lado materializa o incentivo de Linares (2014) propiciando a integração das múltiplas escolas sistêmicas às contribuições de outras abordagens, dentre elas a psicanalítica, bem como de abordagens advindas de outros campos do conhecimento. Tal integração é fruto de uma postura aberta que favorece o nosso enriquecimento para nos ocuparmos das situações as quais a prática clínica nos apresenta, onde se constata que a mudança não é algo tão simples de ser conseguido.

Selvini, Sorrentino, Cirillo (2016) utilizam o termo pensamento sistêmico, complexo e integrado e, assim, revelam estarem intervindo, segundo uma postura integrativa.

Linares (2003; 2015) por sua vez ao escrever que narrativa é a atribuição de significado à experiência relacional, que ocorrerá desde a vida intrauterina até a morte, nos

mostra quão rica pode ser nossa vida com uma diversidade de narrativas. Essa narrativa, segundo Linares, é o ato de descrever a si mesmo e ao que lhe acontece, dando a isso uma coerência, o que por sua vez é cultural e pessoal.

Laso (2017) pode auxiliar a especificar o que favorece as mudanças. Laso (2017) discorre sobre como vem levando em conta e intervindo sobre o aspecto emocional na terapia familiar e de casal. Esse autor destaca dois princípios fundamentais para viabilizar a mudança emocional: (1) compreender o lugar onde se está e (2) ver ou ao menos vislumbrar o lugar para onde se dirigir. Compreensão e visualização são conquistas advindas da experiência emocional desses grupos, segundo o autor.

As considerações dos autores citados permitem evidenciar que o objetivo desse trabalho é mostrar uma ferramenta para auxiliar a construir novas narrativas dadas as dificuldades implicadas nesse processo. Tal ferramenta é constituída pelas expressões artísticas e o brincar, atividades descritas em outros campos do conhecimento e/ou modelos teóricos que podem ser integradas ao atendimento de casais e famílias.

Tornam-se importantes ferramentas uma vez que a possibilidade de escrever novas histórias é inesgotável. Por outro lado, já que sabemos que reavaliar nossas posições é assustador, que precisamos nos dar conta de nosso lugar na relação (o que ainda implica outras gerações) bem como visualizar novos caminhos antes de seguir adiante podemos perceber a complexidade do processo. Sendo assim, ter novas ferramentas que possam abrir possibilidades para novas narrativas pode nos ser útil na prática clínica.

Pereira (2010) ao discorrer sobre o tipo de intervenção para promover a Resiliência Familiar mostra que a mesma deve permitir que se reconheça na narrativa familiar o sofrimento, que dê sentido ao ocorrido e um significado que possa ser aceito por todos os membros da família. Ou seja, nesse contexto continente como recomenda Pereira (2010) uma tempestade emocional como postula Bion está vigente precisando ser nomeada. Esta afirmação permite o reforço da tese sobre a relevância de mecanismos para abrir possibilidades para construção de novas narrativas.

Nesse trabalho o objetivo é apresentar a atividade artística- lúdica como útil ferramenta para a terapia de casal e família ao mesmo tempo em que evidenciar tanto a relevância como o que está implicado no planejamento da mesma pelo terapeuta para se favorecer a possibilidade de conversar sobre as dificuldades vividas.

Fazem-se, então, necessárias algumas considerações sobre as possibilidades desse instrumental.

Kenzler (1995) escreveu que o ser humano se defende das emoções e para tanto utiliza mecanismos de defesa. Sendo assim, segundo Kenzler (1995) o uso de técnicas em que o ser humano expressa sua angústia, sem perceber o que está fazendo pode ser significativo. Aqui temos as artes e o brincar.

Fernandes (2003) por sua vez especifica diferentes linguagens que transmitem a informação tais como: as atitudes, a mímica, a palavra, a escrita, o desenho. A arte, segundo Fernandes (2003) em suas cores e sons, melodias, ritmos, compõe e expressa.

Dentre essas diferentes maneiras de comunicação está o brincar como escreve Winnicott (1971).

Green (2013) completa escrevendo que na realidade externa existe horror demais: guerra, delinquência, catástrofes naturais, epidemias, desemprego e terrorismo nesse nosso mundo.

Grenn (2013) pergunta-se como suportaríamos todos os traumas causados pela realidade sem o brincar onde no caso das crianças todos esses temas se encontram.

Andrade (1995) escreveu que nas diversas expressões artísticas o homem se coloca diante da realidade, ao expressar por meio de uma simbolização (a obra de arte) como estrutura seu mundo interior. A arte, pode, também, segundo ele, ser terapêutica, pois permite acessar a emoção tanto do criador como no público participante. O criador e o produto da criação são o porta-voz de como o homem aliou as sensações e percepções frutos de sua experiência pessoal e relacional. Através da arte forças oponentes podem ser integradas graças a sua qualidade integrativa.

Hiluey (2004; 2007; 2008) no contexto da investigação com alunos-médicos e famílias pode constatar a relevância de tal ferramenta para favorecer tanto o despontar do que angustia como para integrar percepções e informações. Novos caminhos podiam ser vislumbrados.

Para tanto uma ilustração prática parece ser oportuna e aqui se segue.

Pode-se constatar que “enganar” era o termo que melhor exprimia aquilo que vivia a Família Silva com seu filho de 11 anos. Essa vivência de ser enganado, respaldada por situações concretas gerava um sentimento de falta de confiança dos pais para com seu filho. A terapeuta tinha dados que lhe permitiam pensar que para os pais se aperceberem de seu filho não era algo simples. Eles possuíam alguns princípios e formas de educar filhos alinhados com as gerações anteriores e sua própria vivência enquanto filhos para os guiarem. Isso interferia significativamente impedindo que pudesse circular reconhecimento, valorização e carinho entre eles, o que favoreceria a possibilidade de seu filho ter uma vivência de ser amado, como descreveu Linares (2014).

A terapeuta optou por algumas técnicas expressivas as quais permitiram que um espaço fosse aberto para gerar novas narrativas que propiciaram a Família Silva experimentar um clima de confiança. Algumas das técnicas foram:

1) genograma lúdico que favoreceu que conversassem sobre as características das figuras de animais escolhidas para representar alguns membros da família o que gerou novas ideias sobre o relacionamento entre eles. Por exemplo o leopardo como um animal solitário; o hipopótamo como um animal altamente violento apesar de seus olhos doces. O diálogo possibilitou o reconhecimento da dinâmica estabelecida entre eles.

2) cada um escolher miniaturas em madeira de personagens, pessoas, animais, aves, objetos. A seguir se propunha conseguir as miniaturas que quisesse solicitando ao outro. Alguns dos temas conversados nesse jogo foram: que percebiam que através de truques até mímicos se engana para conseguir o que se quer; se aperceberam que tem coisas que não se quer dar; quem é enganado fica triste e com raiva.

3) leitura de conto infantil. Por exemplo: A toupeira que queria ver o cometa, de Rubem Alves. Onde se pode conversar sobre a prisão decorrente das próprias convicções que impedem de ver o que está diante dos olhos.

4) Ouvir a música: “Apenas tenha certeza que nunca está sozinho” (93 Million Miles). Solicitou-se que com recursos não verbais mostrassem como lhes chegou essa música. Pode-se conversar tanto sobre o que cada um esperava dos outros membros da familia como foram constatando o que lhes era possivel.

Pode-se sinalizar que a confiança parecia estar vindo a ser uma experiência possível entre eles.

Em sessões com o casal parental, o casal pode rever suas convicções sobre como

deveriam se portar como pais, versus sobre o que lhes era possível ser. Também puderam se aperceber de novas características do filho, até então não percebidas. Diziam eles: como a toupeira (referindo-se à personagem do livro infantil).

E assim uma nova narrativa despontou. Nessa nova história pais e filho lutavam focando três instâncias: a do querer, poder e dever enquanto iam se transformando, em família. Não estavam sozinhos, percebiam que tinham com quem contar, podiam confiar.

Comentários: a atividade artística lúdica
1) permite que se trate de temas penosos com seriedade, firmeza e humor, sem

necessariamente deixar de chorar e/ou mesmo ficar bravo;
2) o terapeuta deve propor atividades que no seu entender propiciarão que surjam os

temas que segundo sua percepção estão circulando no grupo familiar;
3) deve-se levar em conta as características das pessoas da família para escolher a atividade lúdica que possa lhes ser possível. Nem todas as pessoas se dispõe a

brincar, mas dependendo da brincadeira até podem se dispor;
4) aqueles terapeutas que tenham uma experiência no trabalho com crianças e adolescentes, em especial em ludoterapia, terão um conhecimento relevante para

utilizarem essa ferramenta no atendimento de casais e famílias.
5) o terapeuta deve ser significativamente participativo e utilizar seus conhecimentos teórico-técnicos em terapia familiar para fazer alinhamentos ao longo da sessão a

partir das novas informações e percepções circulantes.

No entanto mesmo estimulados por novas ideias vale lembrarmo-nos da mensagem de Antonio Machado: Caminhante, não há caminho. O caminho se faz ao caminhar.

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Abrir a possibilidade para novas narrativas: um desafio. Hiluey, A.

Angela Hiluey – Psicóloga; Doutora em Educação pela FE/USP; Pós-Doutora em Terapia Familiar pela Universidade Autônoma de Barcelona/Espanha; Diretora e Docente do CEF-Centro de Estudos da Família Itupeva – escola associada a RELATES-Rede Européia e Latino-americana de Escolas Sistêmicas; Member of the EFTA – European Family Therapy Association; membro titular da ABRATEF e da APTF. angelahiluey@yahoo.com.br

As Aventuras do Avião Vermelho: Um Sonho de Potência e Reparação

Foto da copa do livro  de Erico Verissimo editada pela Companhia das letrinhas- Ilustrações de Eva Furnari

Artigo publicado e apresentado no II Colóquio de Psicanálise com Crianças  realizado no instituto Sedes Sapientiae em  10 e 11 outubro de 2014
Onde está o pai? Desafios da atualidade na clínica com Crianças
As Aventuras do Avião Vermelho: Um Sonho de Potência e Reparação 
Por Arianne Monteiro Melo Angelelli

Resumo – Por meio de uma análise do texto de Erico Veríssimo, mergulhamos nas fantasias inconscientes de uma criança cujo comportamento é agitado e desafiador. O pai deste menino o presenteia com um livro na tentativa de auxilia-lo em suas dificuldades, e através da vivência de um sonho com os elementos da história, a persecutoriedade e voracidade desta criança encontram um canal para a simbolização. A hiperatividade nas crianças é um sintoma pouco específico e somente a observação aprofundada pode auxiliar na compreensão das raízes do comportamento; sendo possível que a agitação configure defesa contra ansiedades depressivas decorrentes de dificuldades iniciais da vida. O pai, mais do que aquele que introduz a “lei” e insere a criança na triangulação edípica, também pode ser aquele que fornece o holding necessário para o desenvolvimento. Palavras-chave: hiperatividade, voracidade, holding, pai

Como dizia Freud, “é muito difícil formar uma opinião sobre se, e em que grau, os homens de épocas anteriores se sentiram mais felizes»(1), e isso é verdadeiro quando pensamos sobre as crianças de hoje. Fala-se muito sobre o declínio do poder paterno (2), e o afrouxamento nos laços humanos, nestes nossos tempos líquidos (3) : a família em crise. Mas quando recebemos um certo tipo de crianças, aquelas agitadas, hiperativas, sem limites, as dicotomias que separam o paterno e materno, a mente e o cérebro, não parecem trazer ajuda. O que está mesmo acontecendo com as crianças da pós-modernidade? Estão sem Pai, são porta vozes de doença social e familiar, da falta de limites generalizada, do furo do pacto edípico (4)? Ou estão sem Mãe, na medida em que seu comportamento disfuncional expressa deprivações, perdas precoces? Seriam estas crianças: neurologicamente deficitárias, incapazes da atenção sem ajuda de medicamentos ou ansiosas e deprimidas, encontrando na agitação equivalentes maníacos de defesa? Na aparente desorganização familiar atual, em que antigos papéis se intercambiam, há muita instabilidade, mas a chance de trazer o pai para mais perto, com suas valências femininas e masculinas, pode ser um dos ganhos dos novos tempos. A proposta deste trabalho é uma leitura reflexiva sobre um conto de Érico Veríssimo, “ As Aventuras do Avião Vermelho”(5). Uma criança com problemas de comportamento ganha do pai um livro e um brinquedo que a ajudam a elaborar uma rica fantasia onde ansiedades são elaboradas. O conto pode ser dividido em três partes. Na primeira, o pai interage com o filho e apresenta a ele os objetos de que fará uso na sua fantasia, ou sonho; um livro de histórias, um avião de brinquedo e uma lupa de diminuir, usada para que o menino possa encolher, entrar dentro do avião e partir em viagem. Na segunda parte, ocorre a aventura: o menino e dois companheiros, voando no avião de brinquedo, pousam na lua feita de gelo, e a seguir iniciam uma série de viagens, perseguições e fugas: permeadas pela ameaça constante de serem devorados: pela cobra, pelo porco e pelos canibais que encontram pelo caminho. Na terceira parte, dois acidentes: o avião cai no mar e logo depois cai de novo por causa de uma ventania, sofrendo um tombo “horrível” (o nascimento?) quando passa pela chaminé e desperta no escritório do pai, onde precisa crescer novamente. Vejamos o que nos diz a história: “ Chamava-se Fernando. Era um menino muito gordo. Gordo e travesso. Travesso e brigão. Um dia papai viu Fernando sentado num canto da varanda e perguntou: “ Meu filho, por que é que tu és tão travesso, brigão, malcriado? “ – Porque sou valente!” – rosnou como um leão que está começando a ficar zangado.” Compreendendo quanto de tormenta e medo existe na valentia de Fernando, o pai escolhe o livro certo, a história do “Capitão Tormenta” , e presenteia o menino, expressando seu desejo de que haja uma mudança no filho. O herói, com quem Fernando se identifica imediatamente, é aviador e viaja pelo mundo enfrentando todo o tipo de perigos. Então o menino pede ao pai também um avião, e ganha o aviãozinho de brinquedo. Ao trazer para o filho a escuta, a compreensão, livro e brinquedo, o pai exerce uma função dupla. Ele é aquele que traz a palavra, o limite. Mas também fornece holding e apresenta ao menino o objeto que será de uso transicional, senão vejamos: Fernando, com o avião, “ foi para o quarto e começou a brincar. brincou muito tempo”. O pai também nomeia a “Tormenta” que é o filho: tormenta em casa, a fazer estripulias, tormenta que agita o ambiente, como uma tempestade, e mais além, criança atormentada, amedrontada, que se diz valente (6). E a interação entre pai e filho continua. Fernando conta ao pai que quer viajar como o capitão Tormenta. “– Papai – disse Fernandinho com voz tremida eu também tenho vontade de viajar de avião. – Pois sim, meu querido, quando ficares grande poderás entrar num avião. – Não, papai, eu acho que só posso entrar num avião quando ficar pequeno.” Enquanto o pai entende que o desejo do filho é ser grande, para poder penetrar no avião (sexualidade adulta ?), Fernando pensa em como ficar pequeno para pode entrar no avião de brinquedo , e ficar pequeno de novo é regredir, para retomar o desenvolvimento. Senão vejamos: “O pai … era engenheiro. tinha um escritório cheio de máquinas, réguas, compassos… – Como é o nome daquilo, pai? – Aquilo se chama lente. – Para que serve? – Para aumentar as coisas. – E aquela? – Aquela, ao invés de aumentar as coisas, diminui. “quando a gente bota esse vidro em cima duma coisa, essa coisa fica pequena, não fica? pois então vou botar esse vidro em cima de mim e vou ficando pequeno, pequeno, até poder entrar no avião.” Como a Alice de Lewis Carroll, Fernando ora é grande, ora pequeno, menino medroso que aterroriza os demais, mas a descoberta da lente do pai permite a formulação de uma ideia de relatividade, além da possibilidade, da oportunidade de regredir (colocar-se sob a lente de diminuir). Ele observa as coisas ficarem grandes ou pequenas sob as lentes, entende que não é adulto ainda. Mas para o menino, importa menos ser grande e ter um pênis como o do pai, já que o que ele precisa é voltar a ser o bebê que entra, ou é contido, pelo pai avião, para elaborar uma fantasia de cura. (7). Na segunda parte da história, já Capitão Tormenta, depois de ser reduzido ao tamanho do seu avião, Fernando viaja à Lua, e “lá tudo era de gelo”. O aspecto inóspito da lua é negado. O herói usa uma “casacão de pelo” e não sente o frio. (Uma referência à obesidade?). Descobre que na lua tudo acontece “ao contrário” mas não sente perplexidade, aproveita para tomar sorvete de graça, comendo estrelas ainda vivas: “O empregado tirou sorvetes de uma lata; depois espichou o braço, furou o teto da casa e apanhou lá no alto três estrelinhas, que soltaram gritos de susto.” Temos aí a infeliz combinação da mãe deprimida (Lua fria) com a criança voraz, que encontramos na clínica com frequência . Ainda incapaz de concernimento, o menino e o avião quase atropelam uma estrela ao partirem “A estrela, muito delicada, pediu desculpas…o avião voltou a cabeça para ela e botou a língua para fora. Que mal-educado!” Começa agora a segunda parte da viagem, passando por uma cidade esquisita, pela China e pela África, pelo encontro com um zepelim e o mergulho no mar. Nessa jornada, repetidas vezes a fantasia de devorar e ser devorado se corporifica: “De repente viram um monstro. Era uma cobra enorme. Preta e amarela. A cobra abriu a boca…e segurou com os dentes o rabo do aparelho, que soltou um grito: – Ai! vou morrer envenenado!” Ou ainda: “de repente apareceu um porco gordo, abriu a boca e os engoliu.” E na África: “Desceram na África, mas foram muito sem sorte. Caíram bem no meio de uma aldeia de selvagens. Ficaram prisioneiros dentro de um porongo. O porongo era muito escuro. Os exploradores compreenderam que iam ser queimados.” Sempre salvos pelo avião vermelho, o menino e seus amigos são quase devorados por três vezes. Por fim passam a ser os devoradores: encontram um zepelim, feito de marmelada, chocolate… e começam a comê-lo. Então: “o comandante do dirigível estava naquele momento examinando a barriga do seu navio aéreo, que se queixava de dores muito fortes. Viu os aventureiros: – Piratas” Comeram um pedaço do meu zepelim!” Outra perseguição acontece, ocasionando a queda do avião no mar , quando se transforma num submarino. O surgimento de um clima depressivo introduz a passagem para a terceira parte do conto. “a água estava fria. ficaram muito assustados.” “e agora, o que vamos comer?” Mesmo depois da tempestade, de novo no céu, não demora muito para o avião cair outra vez: “e o avião vermelho foi arrastado para a terra.” “o tombo foi horrível”. E a catastrofe continua: caem dentro de uma chaminé, e dentro dela, se machucam: “o avião ficou com um olho preto. O ursinho perdeu muitos pelos…Fernandinho ficou com um galo na cabeça” Os machucados dos amigos na passagem pela chaminé podem ser interpretadas como reminiscências do trauma do nascimento, mas também como a falência das defesas maníacas, simbolizada pela queda, o frio, os machucados, o medo. Seria um momento depressivo que ocorre após o ataque sádico ao corpo da mãe, quando comem o zepelim? O medo do colapso já vivido? Pois aqui elementos semelhantes em sua forma e função, quais sejam: zepelim e porco, em cujas “barrigas” Fernando se aloja, primeiro engolido, e depois ativo devorador, além de representarem fantasias primitivas relativas ao engravidamento e ao nascer, correlacionam-se com a figura da Lua inicial, todas representativas do feminino e carregadas de ambivalência. Enfim, a figura do pai reaparece quando despertam contentes em seu escritório (mesmo que machucados pelo tombo): “– Agora precisamos crescer de novo!” O desfecho da aventura é a retomada da realidade, incluindo o sermão do pai que encontra o avião “espatifado” na lareira. Mas a criança, agora apaziguada, já de posse de novos recursos, não mais atua a angústia no comportamento; “ Fernandinho compreendeu tudo. Papai não sabia da aventura… quando a gente é pequeno, do tamanho de um dedo mindinho, cada dia dos homens vale cinco dos nossos. Foi uma aventura muito engraçada…Fernadinho até hoje fala nela” Neste conto, a profusão de elementos : lua fria, agua fria, perseguidores devoradores e a dinâmica maníaca da criança podem nos fazer supor alguma falha inicial dificultando a integração das ansiedades primitivas, de modo que apesar de ter havido desenvolvimento, permaneceu uma tendência à agitação, à dissociação , à voracidade e ao comportamento disruptivo, desafiador, expressão última da angústia e temor sentidos. A natureza maníaca da defesa esconde ansiedades depressivas: “arrastado para a terra. o tombo foi horrível”. Aqui vale o comentário de Winnicott “ as fantasias onipotentes não são tanto a realidade interna propriamente dita quanto uma defesa…nos tão frequentes livros de aventuras .. o autor…não tem consciência das ansiedades depressivas das quais fugiu. Sua vida foi cheia de incidentes e aventuras… baseado… na negação da sua realidade interna pessoal ” …(10) Podemos pensar o Capitão Tormenta como um menino a- atormentado pelo próprio sadismo oral projetado nos objetos (8). Gordo, travesso, e brigão, defende-se como pode das ansiedades depressivas e da mãe- morta, Lua “gelada”, que não acolhe(u). Quando o pai oferece livro (com as palavras certas), brinquedo e instrumentos, estes funcionam como um objeto criado-encontrado (9), seio que nutre e falo gerador de potência, elementos que o menino utiliza na construção de uma fantasia de cura (7), que é o re-nascimento. O pai da história apresenta vivacidade, ao lidar com o menino diretamente em suas questões edípicas, sob a lógica fálica, e tem boa capacidade feminina, ao se permitir penetrar por este filho (“papai, eu acho que só posso entrar num avião quando ficar pequeno”). É o holding paterno que propicia a Fernando a possibilidade de relaxar e brincar.
referências bibliográficas
1- Freud, Sigmund. O mal-estar na civilização [1929/1930]. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 2006, v. XXI
2- 2-Neder Bacha, Marcia. Déspotas mirins: o poder nas novas famílias. São Paulo: Zagodoni Editora, 2012
3- 3-Bauman, Zigmunt. Amor liquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
4- 4-Pellegrino, Hélio. Pacto Edípico e Pacto Social (Da Gramática do Desejo à semvergonhice Brasílica). In: Folhetim da Folha de São .Paulo, setembro, 1983.
5- Veríssimo, Erico. As aventuras do Aviao Vermelho. Sao Paulo: Companhia das letrinhas, 2003.
6- Di Loreto , O . Argumentando a favor de posições tardias. In Posições tardias. Contribuições ao estudo do segundo ano de vida. São Paulo. Casa do psicólogo,2007.
7- 7-Aberastury, A. Psicanálise da criança. Teoria e técnica. 8. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992
8- 8-Klein, M (1996) Estágios iniciais do conflito edipiano. In: Amor, culpa e reparacão e outros trabalhos- 1921-1925. Trad. A. Cardoso Rio de janeiro: Imago
9- 9-Winnicott, D. W. (1975) Objetos transicionais e fenômenos transicionais (1951) In Da Pediatria à Psicanalise :obras escolhidas. Trad. Davi Bogomeletz. Rio de Janeiro: Imago, 2000.
10- 10- Winnicott, D.W ( 1975) A defesa maníaca ( 1935) in Da pediatria á psicanalise: obras escolhidas. Trad. Davi Bogomeletz. Rio de Janeiro: Imago, 2000.

A obra de Erico Verissimo foi transformada em animação em 2104 Frederico Pinto e José Maia

http://www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise_crianca/coloquio2014/images/Anais_IIIColoquio_2014.pdf

O gesto espontâneo de Francis Há

O filme Francis Há, do diretor Noah Baumbach (2013) está no netflix.

Para quem não assistiu no cinema, é uma boa opção. O filme narra as aventuras (e desventuras) de Francis, tentando achar o seu lugar ao sol em Nova York, e também no mundo adulto, em que parece não se encaixar. Grandona, desengonçada, espontânea, Francis e seus amigos são adolescentes tardios. Geração mimimi, geração nutela, geração nem-nem (nem trabalha, nem estuda)… Quem não escutou um destes termos e a explicação jocosa de que estes jovens estão se jogando da caixa d’água ou morrendo de propósito,  “feito passarinhos, avoando de edifícios” porque não querem crescer, ou não aguentam as frustrações? Não querem trabalhar, não querem dificuldades: “dá seis da tarde, largam a caneta”… ou: “foram criados na internet, tudo na mão, tudo fácil, não querem nada com a dureza”.

Hummmm… Ponho-me a pensar.

 

Na clínica dos tempos atuais constatamos um prolongamento da adolescência, toda uma geração de adultos jovens que não está conseguindo amadurecer. No entanto, amar e trabalhar, sair de casa, fazer parcerias e escolher uma maneira de ser autônomo é um desafio que enfrentam com dificuldade, nem sempre com essa placidez que aqueles termos pejorativos evocam. A geração mimimi está sofrendo de verdade.  Para Freud o trabalho pode “tornar possível o uso de inclinações pré-eexistentes, de impulsos pulsionais” a serviço da realização pessoal e da vida em comunidade. Winnicott diz: “se o que se pretende é que a vida instintual tenha liberdade de expressão...” haveria um equilíbrio que tem que ser obtido sempre de novo, em cada fase: “considerem um médico e suas necessidades. Privem-no de seu trabalho, e o que será dele? Ele necessita de seus pacientes e da oportunidade de usar suas aptidões, como qualquer outro profissional.”.

Privem o jovem adulto de usar suas aptidões… o que será dele?

Para estes jovens, estamos falhando em ser o ambiente que permite a realização: há os trabalhos criativos, e há os ofícios insanamente alienantes, e aqui eu não estou falando da alienação de Marx; eu estou falando da alienação do verdadeiro self. A morte psíquica é um desfecho possível, e quem viu o filme Arábia (Afonso Uchoa e João Dumas-2017) se entristeceu com a história do Cristiano, que escreve um diário, se apaixona, mas no final sucumbe, vira “coisa”, deixa de sonhar.

Francis sonha. E podemos sonhar este filme, como nos propõe Nino Ferro: Francis e seus amigos representando, cada um, uma parte do seu self (como no enredo de um sonho ou de uma sessão). O filme é uma fábula moderna sobre as vicissitudes da bailarina meio gauche, desengonçada, Francis, que com 27 anos enfrenta dificuldades para manter-se economicamente. Não  selecionada para o espetáculo de natal, ainda é uma adolescente: tem sonhos grandiosos de realizar-se como artista,  mas  não encontra reconhecimento no trabalho.Também não se acerta com o namorado :  “sou alta demais para casar” , e fala de si mesma  ” eu ainda não sou uma pessoa real, de verdade” . Da dificuldade de passar pela fase da adolescência diz ” sou uma pessoa que tem dificuldade em deixar os lugares” quando se demora no camarim, tentando organizar suas coisas após um ensaio, quando todos já foram embora.

 

Em várias de suas falas e no enquadramento do filme, quando dança, por exemplo, partes de seu corpo são deixadas fora da cena, e diz de si ” Nunca consigo saber como fiz meus machucados”. Esse corpo grandão e que escapa do esquema é tão próprio da adolescência, período de crescimento rápido, em que o corpo passa na frente e a mente corre atrás, atabalhoadamente, tentando dar conta do recado! Francis dança, mas é mesmo meio desastrada, como uma adolescente que cresceu rápido demais. Quando Sophie,  melhor amiga,  que pode ser sonhada como o seu duplo, de quem   diz “somos a mesma pessoa, com cabelos diferentes”, vai embora, inaugura-se  em Francis um período de solidão e busca de sentido,  marcado pela instabilidade: constantes mudanças de endereço  e viagens – a fuga para Paris, o retorno à universidade, à casa dos pais.  Outros personagens que vão aparecendo, todos na casa dos 30,e parecem encarnar os falsos-selves que Francis vai rejeitando em sua busca por autonomia e realização; os jovens ricos dependentes dos pais,  artistas que  nada produzem, a colega da companhia de dança que a acolhe em sua casa,  mas não sabe brincar. Francis, perto dos 30 e temendo parecer mais velha ( pois não se sente adulta), parece ser a pessoa mais desajustada, mas na verdade  é aquela que mais traz a marca da autenticidade e da alegria. Nem sempre estar bem ajustado significa saúde mental…se isso se faz às custas do estrangulamento do gesto espontâneo.

Podemos entender o tempo do filme como o tempo da adolescência,  tempo de estar sempre um pouco à deriva, sem respostas, de inquietude. Mas também tempo de rejeitar as falsas soluções. O que nós “adultos” ( rssss) gostamos de chamar de preguiça ou rebeldia ou aborrescência. ( É que a gente gosta de esquecer que já sentiu isso um dia – e vai sentir de novo: na menopausa, na hora de ter o ninho vazio, ao se aposentar, ao fazer o implante dentário, ao envelhecer…).

A cura da adolescência é a passagem do tempo. ” nos diz  Winnicott. Nós, terapeutas, vivemos com Francis, como expectadores, este marasmo que caracteriza tantos  momentos da análise dos adolescentes.

Enfim, nossa heroína consegue fazer a sua  passagem. No final do filme, tem a oferta de um trabalho de secretária ( aceito com  relutância), e se  reconcilia com a amiga que regressa do outro lado do mundo  ( simbolizando a integração dela mesma). Por fim alcançada alguma estabilidade,  inicia o trabalho como coreógrafa, inventando uma dança. Ela assim descreve sua coreografia       “gosto das coisas que parecem erradas”.

Três cenas finais indicam a elaboração da passagem da adolescência em Francis, de maneira muito poética. Na primeira,  orienta os bailarinos que vão ao palco encenar sua coreografia, mostrando a capacidade de estar na coordenação de um projeto original, autoral: a capacidade de trabalhar criativamente. Na segunda, o belo encontro de olhares de Sophie e Francis, ao fim da peça, que pode ser visto como o olhar amoroso, e também o espelho, o reconhecimento no olhar do outro, tão buscado pelo artista. E, enfim, a adequação ao princípio de realidade quando finalmente tem uma casa que é sua, e precisa cortar um pedaço de seu nome para que ele possa caber no  espaço da caixa de correio. É a aceitação da castração, como limite-borda definidora, parte do amadurecimento. Como nos diz Winnicott; “Ser, antes de fazer”. “O ser tem de se desenvolver antes do fazer…  finalmente a criança domina até mesmo os instintos sem a perda da identidade do self”. O nome comprido que pode ser cortado agora é Francis amadurecida, ajustando-se, sem deixar sua dança, sem perder a felicidade, o senso de identidade e a capacidade criativa. De uma forma dialética, e poética, o fazer também alimenta o Ser; assim acontece com Francis, que amadurece tarde, mas no seu próprio tempo.

para meu sobrinho, Thales Augusto.

 

Natividade

Latejar intervalado de orgasmo já em ferida.

Rotura. Espanto. Irreversível dor.

Um ventre inchado golfa a expectativa de si próprio.

Porém já fui pequena

Já fui também pequena

E me nasceram seios

E me cresceram pelos

E o sexo me floriu

No afago quente

Do primeiro sangue.

Um grito rouco. Um ventre rasgado de dentro.

Viscoso, um novo corpo

Tomba

E limita a eternidade…

Não tem olhos nem dentes, não tem nome,

Digere, vaga, suga,

É calvo, é mole, é outrem,

Só fúria sem contornos de crescer.

(Helder Macedo- Viagem de Inverno- 2000)

 

Tempos obscuros onde a maternidade não se acomoda mais dentro das expectativas da mulher moderna. O choque, o espanto, o horror, diante da dependência e da fragilidade. Mulher, o tempo se inscreve no seu corpo de modo muito marcado: a menarca, a gravidez, a menopausa. É o tempo marcando a mulher, limitada da eternidade, marcada. E no entanto! Como são fofinhos os bebês da propaganda do shampoo Johnsons!!! Como são lindos os papéis de parede azuis e lilases, os móbiles coloridos…

Por que então não estamos  inundadas de felicidade ao nos tornarmos mães?

Figura 1 Woman with shopping- Ron Mueck. 2013-detalhe

  Tenho trabalhado com estas mulheres envergonhadas, usando sertralina e palavras. São engenheiras, biólogas, são professoras, donas de casa

          são muito jovens, são mais velhas, tiveram gêmeos, tiveram parto prematuro, fizeram ovodoação, fizeram inseminação artificial, tiveram um filho planejado, tiveram um filho acidentalmente.

Quanta vergonha, não amar meu filho!!!”

Eu penso só no que vai ser da minha vida de agora em diante!”.  “Morei na Bélgica para fazer o meu pós-doc, não me apertava com nada, hoje tenho medo de dirigir, não consigo pegar o carro para ir a lugar nenhum, não consigo sair na rua com o bebê, acho que algo vai acontecer com ele”.

“Doutora, acho que tenho TOC. Tenho medo de o meu nenê ter frio, mas se o cubro, acho que vai ter calor, acordo toda hora para checar a temperatura do quarto, não consigo dormir pensando que ele não vai conseguir se descobrir nem se cobrir sozinho!… não sei o que faço, sei que é loucura; só que eu não durmo”.

Estranho! Como pode acontecer de não haver este reconhecimento, tão natural, biológico, tão programado! …Será???

 

 

Eu penso: sou capaz de fazer algo ruim com ela. Não quero ficar sozinha com ela. Quando a babá vai, antes do meu marido chegar, é a pior hora. Ela chora e eu não sei o que fazer, fico muito nervosa”.  

“Não deixo ela chorar. Tomo banho de porta aberta. Se ela chora, eu corro, pelada, molhada; sei que devia deixar ela chorar um pouquinho, não faz mal; mas eu não aguento.”

O estranho em mim. Meu filho, parte de mim, partiu exatamente de mim, do meu corpo, cresceu em mim, mas não é meu, não sou eu. Estranho e familiar. “Acho que não devia ter tido filho. Quis dar um neto para a minha mãe. Não achei que ia ser assim, não tive irmão. Quando tive o nenê comecei com essa cefaléia, fui internada no hospital, que vergonha, internar num  hospital onde todo mundo me conhece; aí que parei de amamentar, tomei muito decadron. Me fizeram um liquor e fiquei pior. Não acharam nada. Dor de cabeça não tem explicação e não passa com nada!!! Foi meu cardiologista que me deu  a fluoxetina, mas não adiantou, e eu parei. Está tudo tão horrível doutora”.

Em todos os relatos, a impotência. A perplexidade. Culpa. Vergonha… O estranho em mim. O estranho de mim. Quem sou eu, mulher, quem sou eu, mãe? As mães não vêm prontas, se constituem mães, assim como os bebês se constituem pessoas, inaugurando a família consigo. Como suportar a inexatidão deste processo: construído exatamente a partir de seus erros, tentativas, ajustes… Como controlar o que não tem controle? O que não tem governo, nem nunca terá, como canta o Chico. O que vem das entranhas, o que será que será? O que não tem juízo.

O que não faz sentido… Entre a depressão e o baby blues, mulheres numa contemporaneidade onde  bom senso e  instinto dão lugar aos manuais, à busca dos blogs, dos grupos de mães da internet, numa busca desesperada de referências: onde há tanta informação, não há informação nenhuma! Que sou eu? Mãe!????????? Mulher? “Eu dou peito livre demanda e lá em casa é cama compartilhada”.  “Tive parto em casa, foi maravilhoso, mas depois ele teve esta alergia: não posso comer: ovo, soja, leite, tomate, estou pensando em parar de amamentar”.

O que é ser mulher? Me diga menina, o que é feminina (agora é a Joyce quem canta)2. Ô mãe, me explica, me ensina…o que é feminina… E, principalmente: o que é ser mãe.

Ninguém fala a verdade tudo o que a gente passa no parto. Se eu soubesse que era assim, não queria. Porque ninguém fala a verdade para a gente! “

Porque o mistério nos horroriza. Em verdade, temos medo. Senhor, escutai meu estrondoso medo 3. Esta frase é no poema de Adelia Prado.É a Adelia Prado rezando.Rezando pedindo ajuda. Mãe no pos parto precisa de ajuda. É necessária uma tribo para cuidar de um bebê. E não uma mulher sozinha.

O filme Tully 1, do diretor Jason Reitman, nos traz a solidão de uma mulher que encontra na psicose um remendo para seu desamparo. Belíssimo, imperdível. Um retrato da maternidade. Que tão pouco se parece com os fantasiosos comerciais do shampoo Jonhson, do creminho para assaduras. A realidade da maternidade é assustadora e não perfeita; só na fantasia os bebês são tão bonzinhos e cheiram tãaao bem !!!.

Há três anos numa visita à pinacoteca, na exposição das esculturas hiper realistas de Ron Mueck, me deparei com uma obra de arte que muito me impactou. Woman with shopping, de 2013, que mostra uma mãe muito cansada, desarrumada, carregada de compras, que não olha para o seu bebê, que olha para ela, como uma interrogação. Depressão pós parto?

Estranho…O estranho em mim.

E chamo a Joyce de novo para arrematar essa conversa:

“Então me ilumina, me diz como é que termina?
– Termina na hora de recomeçar,

dobra uma esquina no mesmo lugar.

E esse mistério estará sempre lá
Feminina menina no mesmo lugar.”

Como  ajudar  tantas mães muito parecidas com esta: como oferecer uma ajuda ? Carregando para elas um pouco destas sacolas?

Winnicott, que foi pediatra toda a sua vida, dizia que bebê e mãe são uma coisa só; não existe “o bebê”; portanto, não se pode prover para os bebês um ambiente suficientemente bom, se a mãe não tem também um bom suporte.

Referencias

Figura – Woman with shopping- Ron Mueck. 2013

         2) Feminina– de Joyce  Moreno – uma inspiração!!!

  • 3)Do poema Impropérios, de Adelia Prado, do livro “O coração disparado”. Rio de Janeiro: Editora Record, 2013.