Corpo e Alma
Quando te falo, dói-me que respondas/ Ao que te digo e não ao meu amor.
Quando há amor a gente não conversa:
Ama-se, e fala-se para se sentir.
Fernando Pessoa
O filme húngaro Corpo e Alma, vencedor do prêmio Urso de Ouro em 2018, do diretor Ildiko Enyedi , possui grande riqueza em sua fotografia e reflexões a serem amplamente discutidas. Um dos contextos marcantes no filme é a dificuldade apresentada por um casal, Endre e Maria, para se relacionar na vida real.
Endre (Geza Morcsanyi) é um gerente de um frigorífico que mal fala com seus funcionários, evitando o contato, muitas vezes preferindo apenas observá-los pela janela de seu escritório. Marcado por desilusões amorosas passadas, passou a ter uma vida reclusa, limitando-se a ir do trabalho para casa e vice-versa. Em uma das cenas, Endre chega em casa ao fim do dia e faz sua refeição quase no escuro, de forma metódica e sem vida. Com dificuldades para comer devido uma paralisia no braço, desiste de comer quando seu prato cai no chão.
Maria (Alexandra Borbely), por sua vez, é funcionária da mesma empresa, inspetora de qualidade, levando as regras de seu trabalho muito a sério. Ela também não consegue interagir com ninguém, preferindo sempre almoçar sozinha no refeitório da empresa. Apresenta pouca ou quase nenhuma de consciência sobre seus sentimentos e o próprio corpo.
Algumas cenas tenderiam a apresentar um tom irônico, não fosse a triste realidade da quase total incomunicabilidade de Endre e Maria. Logo no início do filme, Maria não consegue olhar nos olhos dos funcionários. Sua fala é marcada pela ausência de espontaneidade, como se estivesse lendo um script sem ser o sujeito da sua própria ação.
Outra cena que revela o medo de viver os fatos reais da vida é o jogo que a atriz faz com bonecos orientada pelo seu terapeuta, como se estivessem ensaiando uma forma de conversar com as pessoas.
O filme mostra não só a inabilidade de comunicação, mas a aridez nas relações entre os personagens centrais do filme. O encontro só e possível durante os sonhos que ambos têm em comum. Assim, é abordada a dualidade entre o dormir e o acordar, o sonho e a realidade, para mostrar as dificuldades afetivas, os medos e as angústias de não ser encontrado no jogo do amor da vida real.
Em algumas passagens do filme é revelada a vida solitária dos personagens, nas atividades cotidianas : como estender as roupas no varal, jantar após o trabalho, escovar os dentes, ir ao supermercado… Tudo é feito de forma mecânica, quase como se fossem robôs, sem a presença do gesto espontâneo, do estar presente , do estar integrado no tempo e no próprio corpo. Percebemos a dificuldade de integração sensorial em Maria, sua sensibilidade extrema ao ambiente, que a encerra num fechamento aos estímulos externos e nas condutas ritualizadas. Em Endre, no braço amortecido, a imagem da desistência em estender os galhos da sua árvore da vida para abraçar o outro. Nos sonhos de ambos, tudo está congelado.
Os personagens não se sentem confiantes para viver um relacionamento e é exatamente a falta da confiabilidade no ambiente, ou seja, a falha da previsibilidade das experiências passadas iniciais que proporcionam ao casal o medo e o sentimento de não serem capazes de se relacionar com o mundo . Assim, tudo precisa ser meticulosamente controlado e evitado.
De acordo com a perspectiva winnicottiana, todos nascemos com um potencial para a integração, mas esta conquista só será alcançada a partir da interação com o ambiente suficientemente bom que possibilitará ao indivíduo o reconhecimento do outro, o convívio social e a vivência da espontaneidade nas relações. Assim, para Winnicott, o ambiente tem papel fundamental para a construção do EU-Sou e as relações interpessoais futuras .
Se o ambiente falha em proporcionar a integração do Eu em estágios iniciais da vida e prover a confiança no mundo, o individuo não alcança a capacidade de acreditar nas relações. O mundo se torna irreal e uma ameaça, fazendo com que o indivíduo evite as relações ou tente controlá-las perdendo sua espontaneidade.
Endre e Maria acabam por se aproximar de uma maneira inusitada. Descobrem que estão tendo o mesmo sonho conjunto: são dois cervos, um macho e uma fêmea, vivendo na floresta… então começam a se conhecer e se reconhecer com as mesmas feridas emocionais.
Durante o sonho ambos sonham com cervos andando lado a lado em uma natureza silenciosa coberta por neve por todos os lados. Neste momento, os cervos se olham como se houvesse uma comunicação no tempo e no espaço – o que para eles na vida real parece ser muito difícil. A comunicação dos alces revela uma conexão com os olhares, o compasso do tempo, o caminhar junto lado a lado.
Maria o convida para falar no celular, mas ele tem medo de se envolver. Endre, a princípio, leva-a para jantar em seu restaurante preferido. Em todas as cenas é possível notar um descompasso com o tempo. O restaurante está vazio, embora há tempos atrás fosse lotado, nos fazendo pensar que a vida presente não faz relação com o seu passado. E, desta forma, o filme vai se desenvolvendo : na vida real inexiste a comunicação presente no sonho.
Corpo e Alma é um filme marcado por cenas fortes do abatedouro de animais, de uma tentativa de suicídio, da natureza no inverno – mas acima de tudo fala sobre a solidão, a incomunicabilidade. O amor nasce entre Endre e Maria a partir da comunicação profunda entre os dois inconscientes.
A possibilidade deste tipo de comunicação é tão mais comovente quanto maior for o fechamento que possamos encontrar em nossos pacientes. Aqueles com traços autísticos ou esquizóides, como Maria e Endre, estão congelados : na espera de um olhar, de uma escuta, da possibilidade de uma tradução. De alguém que possa sonhar por eles, com eles.
Controle
O encontro está marcado, data e horário agendado
Escolho minha melhor roupa:
aquele vestido florido de seda
Tomo banho vagarosamente,
acariciando meu corpo com óleos de rosas
sinto o toque aveludado de minha pele
Começo a me vestir
Olho para o relógio
Confiro o endereço e me certifico do caminho
Ouço uma música enquanto me apronto
Sento em frente ao espelho e me dou conta de minhas rugas
Tento disfarça-las com um pouco de pó
Estou ansiosa com o encontro
Tento cantarolar
Mas me pego a olhar no relógio
O amante não é desconhecido
Tao pouco se sabe da sua origem
Um pedaço de mim esta em alerta
Outro deseja deixar-se confiar
Mas é preciso ir ao encontro
Romper o pensamento
Afrouxar o sentimento
Despir-se de algo entranhado na alma
Ao chegar percebo minha respiração ofegante
Meu corpo todo começa a formigar
Sinto meu coração acelerado
Me gelo dos pés a cabeça
Diante do meu amante
Tenho medo
Medo de perder o controle
Enlouqueço
E nessa loucura te prendo no meu abraço
Sobre nossos corpos rolam beijos até perder a calma
Nossas almas se entregam
Já não há mais pressa.
( por Viviane Panegassi Dorta Salomone)