Corpo e Alma

Quando te falo, dói-me que respondas/ Ao que te digo e não ao meu amor.

Quando há amor a gente não conversa:

Ama-se, e fala-se para se sentir.

Fernando Pessoa

O filme húngaro Corpo e Alma, vencedor do prêmio Urso de Ouro em 2018, do diretor Ildiko Enyedi , possui grande riqueza em sua fotografia e reflexões a serem amplamente discutidas. Um dos contextos marcantes no filme é a dificuldade apresentada por um casal, Endre e Maria, para se relacionar na vida real.

Endre (Geza Morcsanyi) é um gerente de um frigorífico que mal fala com seus funcionários, evitando o contato, muitas vezes preferindo apenas observá-los pela janela de seu escritório. Marcado por desilusões amorosas passadas, passou a ter uma vida reclusa, limitando-se a ir do trabalho para casa e vice-versa. Em uma das cenas, Endre chega em casa ao fim do dia e faz sua refeição quase no escuro, de forma metódica e sem vida. Com dificuldades para comer devido uma paralisia no braço, desiste de comer quando seu prato cai no chão.

Maria (Alexandra Borbely), por sua vez, é funcionária da mesma empresa, inspetora de qualidade, levando as regras de seu trabalho muito a sério. Ela também não consegue interagir com ninguém, preferindo sempre almoçar sozinha no refeitório da empresa. Apresenta pouca ou quase nenhuma de consciência sobre seus sentimentos e o próprio corpo.

 Algumas cenas tenderiam a apresentar um tom irônico, não fosse a triste realidade da quase total incomunicabilidade de Endre e Maria. Logo no início do filme, Maria não consegue olhar nos olhos dos funcionários. Sua fala é marcada pela ausência de espontaneidade, como se estivesse lendo um script sem ser o sujeito da sua própria ação.

Outra cena que revela o medo de viver os fatos reais da vida é o jogo que a atriz faz com bonecos orientada pelo seu terapeuta, como se estivessem ensaiando uma forma de conversar com as pessoas.

O filme mostra não só a inabilidade de comunicação, mas a aridez nas relações entre os personagens centrais do filme. O encontro só e possível durante os sonhos que ambos têm em comum. Assim, é abordada a dualidade entre o dormir e o acordar, o sonho e a realidade, para mostrar as dificuldades afetivas, os medos e as angústias de não ser encontrado no jogo do amor da vida real.

Em algumas passagens do filme é revelada a vida solitária dos personagens, nas atividades cotidianas : como estender as roupas no varal, jantar após o trabalho, escovar os dentes, ir ao supermercado… Tudo é feito de forma mecânica, quase como se fossem robôs, sem a presença do gesto espontâneo, do estar presente , do estar integrado no tempo e no próprio corpo. Percebemos a dificuldade de integração sensorial em Maria, sua sensibilidade extrema ao ambiente, que a encerra num fechamento aos estímulos externos e nas condutas ritualizadas. Em Endre, no braço amortecido, a imagem da desistência em estender os galhos da sua árvore da vida para abraçar o outro. Nos sonhos de ambos, tudo está congelado.

 Os personagens não se sentem confiantes para viver um relacionamento e é exatamente a falta da confiabilidade no ambiente, ou seja, a falha da previsibilidade das experiências passadas iniciais que proporcionam ao casal o medo e o sentimento de não serem capazes de se relacionar com o mundo . Assim, tudo precisa ser meticulosamente controlado e evitado.

De acordo com a perspectiva winnicottiana, todos nascemos com um potencial para a integração, mas esta conquista só será alcançada a partir da interação com o ambiente suficientemente bom que possibilitará ao indivíduo o reconhecimento do outro, o convívio social e a vivência da espontaneidade nas relações. Assim, para Winnicott, o ambiente tem papel fundamental para a construção do EU-Sou e as relações interpessoais futuras .

Se o ambiente falha em proporcionar a integração do Eu em estágios iniciais da vida e prover a confiança no mundo, o individuo não alcança a capacidade de acreditar nas relações. O mundo se torna irreal e uma ameaça, fazendo com que o indivíduo evite as relações ou tente controlá-las perdendo sua espontaneidade.

Endre e Maria acabam por se aproximar de uma maneira inusitada. Descobrem que estão tendo o mesmo sonho conjunto: são dois cervos, um macho e uma fêmea, vivendo na floresta… então começam a se conhecer e se reconhecer com as mesmas feridas emocionais.

Durante o sonho ambos sonham com cervos andando lado a lado em uma natureza silenciosa coberta por neve por todos os lados. Neste momento, os cervos se olham como se houvesse uma comunicação no tempo e no espaço – o que para eles na vida real parece ser muito difícil. A comunicação dos alces revela uma conexão com os olhares, o compasso do tempo, o caminhar junto lado a lado.

 Maria o convida para falar no celular, mas ele tem medo de se envolver. Endre, a princípio, leva-a para jantar em seu restaurante preferido. Em todas as cenas é possível notar um descompasso com o tempo. O restaurante está vazio, embora há tempos atrás fosse lotado, nos fazendo pensar que a vida presente não faz relação com o seu passado. E, desta forma, o filme vai se desenvolvendo : na vida real inexiste a comunicação presente no sonho.

 Corpo e Alma é um filme marcado por cenas fortes do abatedouro de animais, de uma tentativa de suicídio, da natureza no inverno – mas acima de tudo fala sobre a solidão, a incomunicabilidade. O amor nasce entre Endre e Maria a partir da comunicação profunda entre os dois inconscientes.

A possibilidade deste tipo de comunicação é tão mais comovente quanto maior for o fechamento que possamos encontrar em nossos pacientes. Aqueles com traços autísticos ou esquizóides, como Maria e Endre, estão congelados : na espera de um olhar, de uma escuta, da possibilidade de uma tradução. De alguém que possa sonhar por eles, com eles.

Controle

O encontro está marcado, data e horário agendado

Escolho minha melhor roupa:

 aquele vestido florido de seda

Tomo banho vagarosamente,

acariciando meu corpo com óleos de rosas

sinto o toque aveludado de minha pele

Começo a me vestir

Olho para o relógio

Confiro o endereço e me certifico do caminho

Ouço uma música enquanto me apronto

Sento em frente ao espelho e me dou conta de minhas rugas

Tento disfarça-las com um pouco de pó

Estou ansiosa com o encontro

Tento cantarolar

Mas me pego a olhar no relógio

O amante não é desconhecido

Tao pouco se sabe da sua origem

Um pedaço de mim esta em alerta

Outro deseja deixar-se confiar

Mas é preciso ir ao encontro

Romper o pensamento

Afrouxar o sentimento

Despir-se de algo entranhado na alma

Ao chegar percebo minha respiração ofegante

Meu corpo todo começa a formigar

Sinto meu coração acelerado

Me gelo dos pés a cabeça

Diante do meu amante

Tenho medo

Medo de perder o controle

Enlouqueço

E nessa loucura te prendo no meu abraço

Sobre nossos corpos rolam beijos até perder a calma

Nossas almas se entregam

Já não há mais pressa.

( por Viviane Panegassi Dorta Salomone)

A Transitoriedade

Estamos vivendo um momento de muitas perdas. De repente, parece que o mundo parou devido à pandemia. Recebemos recomendações para o isolamento social e afastamento físico para evitar a propagação do coronavírus, causador da Covid-19. O medo do contágio e a nossa vulnerabilidade frente ao adoecer e morrer nos faz entrar em contato com a nossa finitude. Estamos desamparados em um momento que não temos respostas, vacinas ou remédios que possam suavizar o nosso sofrimento.

Decidi reler o texto do Freud sobre a Transitoriedade (1916). O texto me pareceu convidativo porque Freud dialoga com dois amigos pessimistas.

Então vamos lá:

A Transitoriedade foi escrito em 1915, mas, foi publicado em 1916 , isto é, foi escrito um ano depois do início da Primeira Guerra Mundial (1914), que retirou do mundo o que ele tinha de mais belo : na natureza e na cultura.

Nesse momento, um verão maravilhoso estava acontecendo na Europa. Freud nos conta em seu texto sobre o passeio que faz com dois amigos e relata o diálogo que ocorre entre eles.

Ele inicia seu texto assim:

O amigo poeta, ao admirar a paisagem, lamenta o fato da brevidade da existência daquela beleza. Freud diverge do amigo poeta porque ele não acredita que a beleza da natureza e da arte podem se desfazer. Ele crê que estas coisas, de alguma forma, têm que subsistir à destrutividade e afirma: “o valor de transitoriedade é o valor de raridade no tempo”.

Freud também afirma que a imortalidade é um produto dos nossos desejos e não da realidade. A extinção do que é belo tem mais valor por ser uma raridade no tempo. Por isso, a transitoriedade não pode retirar a alegria que a beleza nos proporciona.

A beleza da natureza está no fato de que ela sempre volta quando é destruída pelo inverno e esse retorno pode ser considerado eterno em relação ao nosso tempo de vida. A beleza de uma obra de arte, se ela tiver significado para a nossa vida emocional, não precisa sobreviver a nós.

Freud afirma que o luto os impede de saborear o prazer que um momento carregado de beleza proporciona.

Seus amigos, diante da transitoriedade das coisas, vivem um luto antecipado- a mente recua instintivamente em face a sentimentos dolorosos.

O diálogo entre Freud e seus amigos pode ser observado por nós neste momento tão difícil que atravessamos.

Muitas pessoas vivem sem ter conhecimento sobre elas mesmas. Desconhecem seus desejos, frustrações ou satisfações e, quando o externo é retirado, sentem-se completamente desamparadas.

Nesses momentos, nos resta contar com o nosso mundo interno para nos fazer companhia e ampliar o conhecimento sobre nós mesmos . Assim podemos aumentar nossa chance de lidar melhor com os nossos acertos e fracassos na realidade em que vivemos.

Ultimamente, estamos enfrentando uma pandemia mundial, que nos obriga a ficar confinados onde os que podem, ficam em suas casas e lá permanecem como refugiados. Por isso, estamos vivendo um luto coletivo em relação às perdas que tivemos de convivência, proximidade e até a perda concreta de parentes e amigos.

Remetendo ao texto do Freud sobre A Transitoriedade, salvo devidas proporções, estamos vivendo o mesmo desamparo sentido pelos seus amigos ao entrar em contato com a brevidade da vida. Muitas pessoas, por incapacidade de vivenciar o luto, deixam de aproveitar este momento que pode favorecer muito uma viagem para o nosso mundo interno.

Freud, no texto, nos transmite a visão de que nesse momento necessitamos de um olhar para o futuro que só poderá ser feito através da natureza e da cultura.

Freud sustenta a idéia de que o fato da finitude da vida não pode retirar o encanto do que é belo.

E assim com essa mensagem ele termina:

CONFIAR : A INTERNET, O SEGREDO, E A VULNERABILIDADE ADOLESCENTE

Por Cleyton Angelelli e Arianne Angelelli

“onde houver um desafio do rapaz e da moça em crescimento, que haja um adulto para aceitar o desafio “

Winnicott.

Nos dias de hoje ,com a internet, encontramos jovens plugados durante o dia todo, conectados em um espaço virtual, que não permite o acesso dos pais. Ao mesmo tempo as famílias estão reduzidas e cada vez mais isoladas em seus espaços de comunicação. Hoje vemos crianças muito pequenas com tablets e adolescentes 24h ligados em seus computadores e I phones. Os pais , que vieram de outra geração , não sabem colocar limites e carecem de parâmetros diante da realidade cada vez mais virtual desta geração. Muitas vezes não estão familiarizados com a tecnologia da mesma forma que os filhos e se sentem desorientados ao perceber que o mundo virtual adolescente é um campo desconhecido. Alguns pais tentam exercer controle sobre os acessos e o tempo nas telas , outros são excessivamente permissivos com os filhos . Todavia, não há uma fórmula mágica para fornecer parâmetros 100% seguros quando se trata do processo de ganho de autonomia que a adolescência representa. Os adolescentes vão se expor a perigos mas estarão esperando que os pais possam estar atentos a eles. O processo de crescer envolve muitos lutos e reviravoltas – e os pais precisam estar dispostos a “topar a parada”.

A proposta deste trabalho é a análise do filme ” Confiar ( Trust) ” do diretor David Scwhimmer ( 2010). No enredo, uma garota de 14 anos que vive com os pais e o irmão, numa família estável, aparentemente saudável, envolve-se na internet com um pedófilo. Ele se faz passar por um rapaz mais novo e abusa sexualmente dela.

O pai, publicitário, ele mesmo veiculando na mídia imagens sensuais de meninas muito jovens , ao ver a filha conversando com o desconhecido , não imagina o risco que ela corre . Confiante na sua capacidade de discernimento e na sua “inocência”, se surpreende quando comunicado, por terceiros, de que a moça sofreu abuso num primeiro encontro com o pedófilo. As fraturas na comunicação intrafamiliar se evidenciam. Os pais , envolvidos com a saída do filho mais velho de casa, deixaram de notar o perigo que a filha estava correndo. Percebe-se que nesta família a chegada dos filhos à adolescência encontra os pais de certa forma despreparados para lidar com o luto e a transformação . Eis o que acontece: desponta a sexualidade da filha , que vive o apaixonamento em segredo- mas os pais não estão atentos aos sinais de que ela precisa de orientação.

A retomada da comunicação familiar se faz por meio de muita dor .Todos terão de elaborar o luto pela infância perdida e pela família idealizada que parece desmoronar neste momento. Após vários desdobramentos do ocorrido, a adolescente, sem condições de elaborar o trauma, faz uma tentativa de suicídio. Os pais, avisados por uma amiga, conseguem encontrá-la a tempo.

Existe um paradoxo na comunicação adolescente. Parafraseando Winnicott, neste momento da vida há
“um sofisticado jogo de esconder, em que é uma alegria estar escondido, mas um desastre não ser achado”.

Winnicott conta o caso de uma mocinha que tinha um diário secreto, que era deixado de modo a ser encontrado pela mãe, que deveria ficar ciente dele, mas sem comentar com a filha. O paradoxo está no fato de que o adolescente quer privacidade e quer se arriscar, mas deseja que os pais estejam sempre atentos e dispostos a protegê-los , percebendo os sinais de que algo anda errado e colocando limites em sua onipotência. É um jogo de esconder muito sofisticado, pois a criança que cresceu precisa agora de um espaço para si, mas não quer ser abandonada à própria sorte.

No filme, o namoro virtual é o “diário secreto” que não foi encontrado pelos pais, quando a comunicação falhou. Ao tentar suicídio, enviando uma foto de si pela rede, a mocinha tenta de novo enviar um recado os pais …

( Trabalho apresentado no décimo terceiro congresso brasileiro de adolescência )

Na cena acima, a adolescente conversa com Charlie, que usa de uma falsa identidade para se aproximar dela por um chat online.

O sono dos bebês

por Gilca Zlochevsky

  Os bebês acordam muitas vezes ao longo da noite, sobretudo, no primeiro ano de vida. Os conceitos de Donald Winnicott de integração e não-integração me pareceram interessantes para nos aproximar desse fenômeno. A integração surge gradualmente a partir de um estado primário não integrado. O repouso representa um retorno ao estado não integrado. Esta volta não é necessariamente assustadora para o bebê se a mãe lhe assegura um sentimento de segurança principalmente na maneira que o bebê é acolhido. A integração parece relacionada às experiências emocionais ou afetivas mais definidas tais como a raiva ou excitação ligada à amamentação. Muitos bebês acordam, precisam do colo e também do seio para se sentirem novamente integrados, voltarem a dormir e retornar ao estado não-integrado. Os pais ficam aflitos uma vez que são crianças espertas, estão se desenvolvendo muito bem mas  evidenciam nestes movimentos que são bebês e necessitam serem vistos como tal. Estas oscilações variam muito de um bebê para outro. A posssibilidade da mãe poder reconhecer esses estados, tolerá-los e atender ao bebê, apesar do cansaço que isso representa, ajuda a criança aos poucos ir se reassegurando que ela não vai cair num abismo, nem mesmo se desintegrar. 

Quando estamos na área da necessidade, não se tem tempo de esperar a hora

Jornada da Saúde Mental da Mulher

https://www.ceip.org.br/cursos-e-eventos/jornada-de-saude-mental-da-mulher/

uma jornada sobre a saúde mental da mulher

O mínimo para viver

O mínimo para viver To the bone, filme de Marti Noxon (2017)

“Você parece um fantasma” diz a mãe de Ellen, assustada, quando a vê durante a internação.

Ellen, uma jovem com anorexia grave, inicia um tratamento em uma clínica alternativa. Lá, conhece outros pacientes que enfrentam distúrbios alimentares e, através dessa convivência em grupo e com o terapeuta, entra em contato consigo mesma, com seu transtorno e história.

Um fantasma é um espírito sem corpo, etéreo. Anoréxica, Ellen some até os ossos. Quase um sopro do que poderia ser. Tem repulsa aos alimentos, sente-se gorda, faz exercícios para eliminar qualquer possibilidade de caloria acumulada.

Na reunião com a família na clínica, Ellen desaparece no turbilhão das relações familiares. Um pai ausente, três mães e nenhum colo, um abraço da irmã.

No decorrer do seu tratamento, Ellen parece ganhar forma ao assumir um outro nome: “Eli” – escolhido como seu, e não mais o de sua avó. Gradativamente, começa a interagir com as outras pessoas. Quando se decepciona, Eli ganha corpo, expressa sua raiva ao psicólogo e deixa a clínica. Vai em busca da mãe.

Nesse encontro, embalado pelas lembranças e culpas maternas (“estava em depressão após o parto, creio que não te segurei e alimentei como poderia”), vai se formando uma permissão. Eli pode não comer, pode morrer, se quiser, se esse for o seu desejo. É como se a mãe dissesse: pode viver a sua angústia, estou mais forte agora.

Nesse momento, com cuidado, a mãe a aconchega ao colo e Eli aceita uma mamadeira.

“Deveríamos poder deixar essas crianças irem até o fim” diz o psicólogo depois que ela vai embora. Eli vai até o fim, até os ossos. Poderia se dizer até a medula, para descobrir, após se deixar alimentar pela mãe, que quer viver, que pode perder o controle da sua alimentação para “o outro”, que pode se deixar envolver pelo colo de outrem.

Esse filme nos faz lembrar dos conceitos de Winnicott:

“Quando uma mãe, através da identificação com seu bebê (isto é, por saber o que o bebê está sentindo), é capaz de sustentá-lo de maneira natural, o bebê não tem de saber que é constituído de uma coleção de partes separadas. O bebê é uma barriga unida a um dorso, tem membros soltos e, particularmente, uma cabeça solta: todas estas partes são reunidas pela mãe que segura a criança e, em suas mãos, elas se tornam uma só”. (Winnicott, Explorações psicanalíticas, 1969g/1994, p. 432)

 “A mãe sabe por empatia que quando se pega um bebê é preciso levar um certo tempo nesse processo. O bebê deve receber um aviso, as várias partes devem ser seguradas em conjunto; finalmente, no momento certo, a criança é levantada; além disso, o gesto da mãe começa, continua e termina, pois o bebê está sendo levantado de um lugar para outro, talvez do berço para o ombro da mãe”. (Winnicott, Natureza humana, 1988, p. 137)

A mãe de Eli, deprimida, sem o suporte do pai, sempre ausente, conta que não pode segurar direito o seu bebê.

“No início há o soma [o corpo], e então a psique, que na saúde vai gradualmente ancorando-se ao soma. Cedo ou tarde aparece um terceiro fenômeno, chamado intelecto ou mente”. (Winnicott, Natureza humana, 1988, p. 161)

“A integração também é estimulada pelo cuidado ambiental. Em psicologia, é preciso dizer que o bebê se desmancha em pedaços a não ser que alguém o mantenha inteiro. Nestes estágios o cuidado físico é um cuidado psicológico” (Natureza humana, 1988, p. 137)

Conforme as ideias de Winnicott, podemos entender que, na saúde, a mente tem sua origem num momento específico do percurso de amadurecimento. Ela surge como um ramo da psique na sua integração com o soma. Isso se inicia na fase de desilusão – quando, por qualquer aspecto da realidade, as necessidades do bebê não são atendidas – e segue como uma linha presente ao longo de toda a existência do indivíduo.

“Se tomarmos agora o caso de um bebê cujo fracasso da mãe em adaptar-se é rápido demais, podemos descobrir que ele sobrevive por meio da mente. A mãe explora o poder que o bebê tem de refletir, de comparar e de entender…. Este pensar transforma-se num substituto para o cuidado e adaptação maternas. O bebê “serve de mãe” para si mesmo através da compreensão, compreendendo demais”. (Winnicott, Explorações psicanalíticas, 1965/1994, p.122)

A desconexão entre o corpo e sua imagem e necessidades, aspecto da anorexia, pode se entender como vestígio de alguma não integração psique-soma. A sobrevivência através da atividade mental poderia explicar a recusa ao alimento como uma teoria primitiva para controlar a fome, a vida, a morte, a necessidade e a ausência do outro. No entanto, os sintomas psicossomáticos seriam ainda, de alguma forma, expressão da busca de interação psique-soma, através da tendência inata à integração.

O convívio a que Eli se permite na clínica e a possibilidade experimentada no encontro com o terapeuta e com sua mãe proporcionam a renovação da expressão de suas necessidades, no embate da sua satisfação/frustração com a realidade possível.

Nesse sentido, Eli precisa ir “até os ossos” para encontrar o seu corpo, as suas emoções, a integração perdida e para poder se deixar permear pelo alimento, pelo sol, pela vida.

Pequenas e Grandes Virtudes

Costumamos dar uma importância totalmente infudada ao rendimento escolar de nossos filhos. E isso se deve apenas ao respeito pela pequena virtude do êxito. Deveria nos bastar que eles não ficassem muito atrás dos outros, que não fossem reprovados nos exames; mas não nos contentamos com isso. Queremos deles o êxito, queremos que satisfaçam ao nosso orgulho.

Se vão mal na escola, ou simplesmente não tão bem como pretendemos, erguemos imediatamente entre eles e nós a barreira do descontentamento constante; adotamos com eles o tom de voz irritado e queixoso de quem lamenta uma ofensa. Então nossos filhos, enfastiados, se distanciam de nós.

Ou talvez os secundemos em seus protestos contra os professores que não os compreenderam, declaramos, em uníssono com eles, que são vítimas de uma injustiça. E todos os dias corrigimos os seus deveres, sentamo-nos a seu lado quando fazem os deveres, estudamos as lições com eles.

Na verdade a escola deveria ser desde o início, para um menino, a primeira batalha que ele tem de enfrentar sozinho, sem nós; desde o início deveria estar claro que esse é seu campo de batalha próprio, onde só poderíamos dar uma ajuda ocasional e irrisória.

E, se lá ele padecer injustiças e for incompreendido, será necessário deixá-lo entender que isso não tem nada de estranho, porque na vida devemos esperar ser constantemente incompreendidos e mal-entendidos: a única coisa que importa é nós mesmos não cometermos injustiças.

Compartilhamos os êxitos e fracassos de nossos filhos porque os amamos muito, mas do mesmo modo e em igual medida que eles compartilharão, à medida que forem crescendo, nossos êxitos e fracassos, nossas satisfações ou preocupações. É errado que eles tenham o dever para conosco de serem aplicados na escola e de dar nela o melhor de seu talento. Seu dever para conosco, já que lhes proporcionamos estudos, é apenas seguir adiante.

Se não querem dedicar o melhor de seu talento à escola, mas aplicá-lo em outra coisa que os apaixone, seja sua coleção de coleópteros ou o estudo da língua turca, isso é assunto deles e não temos nenhum direito de repreendê-los nem de nos mostrar ofendidos em nosso orgulho ou frustrados em nossa satisfação. Se no momento não parecem ter o desejo de dedicar o melhor de seu talento a coisa alguma e passam o dia na carteira mordendo o lápis, nem mesmo assim temos o direito de censurá-los muito: talvez o que nos esteja parecendo ócio sejam na realidade fantasias e reflexões que amanhã darão frutos. Se parecem desperdiçar o melhor de sua energia e de seu talento, afundados numa poltrona lendo romances estúpidos ou no campo jogando futebol freneticamente, também não podemos saber se de fato se trata de um desperdício de energia e de talento ou se também isso, amanhã, de algum modo que ignoramos, dará seus frutos. Porque as possibilidades do espírito são infinitas. Mas nós, pais, não nos podemos deixar tomar pelo pânico do fracasso. Nossos enfados devem ser como rajadas de vento ou temporal: violentos mas logo esquecidos; nada que possa escurecer a natureza de nossas relações com os filhos, turvando sua limpidez e sua paz. Estamos aqui para consolar nossos filhos quando um fracasso os entristece; estamos aqui para consolá-los quando um fracasso os mortifica. Também estamos aqui para baixar-lhes a fumaça quando um êxito os enche de soberba. Estamos aqui para reduzir a escola a seus limites humildes e estreitos; nada que possa hipotecar o futuro; uma simples oferta de ferramentas, entre as quais é possível escolher uma para desfrutar amanhã.

(NATALIA GINZBURG, As pequenas virtudes)

Vale a pena conferir este vídeo de Rosely Sayão