Birras!!!!

Alerta de spoiler: este não é mais um post que vai lhe dar dicas sobre como lidar com as birras dos seus filhos.

Terrible two

Dizem que esta é a fase dos terríveis dois anos. Se tudo correu bem, chegamos até aqui! Mas o que é tão terrível nestas birras e teimosias? Que grande desafio é esse? Como estes seres tão pequenininhos passam a ter tanto poder sobre nós? Na fase da birra, os pais são desafiados mais uma vez. Quando o bebê nasceu, o desafio foi aprender a cuidar de alguém tão dependente. Foi difícil. Foi maravilhoso. Mas agora… agora os sentimentos são outros.

Impotência, irritação, raiva. Tudo vira disputa e confusão. Os pais é que entram numa fase terrível. Serão testados em sua consistência, paciência, firmeza e convicção. E será necessário aos pais ter jogo de cintura e maleabilidade. Será necessário que repensem sobre o que é importante, em relação às regras e aos limites. Que pensem no que desejam transmitir para seu filho em sua trajetória dentro da sociedade humana. Divergências que eram antes desconhecidas entre o casal podem vir à tona no momento em que o filho chega à fase do “terrible two“. Como fazer? Como lidar? Vale ser severo, rígido? O que fazer quando o menino ou a menina se jogam no chão, aos berros? Vale ser paciencioso, condescendente? Dá para negociar com a criança? Ou é melhor ignorar a birra? Os pais se acusam mutuamente. A família vem para julgar. Cenas e “shows” acontecem diante da plateia familiar.

Primeiro os pais se sentiam julgados se o filho não mamava, não dormia ou não falava bem. Agora, são julgados pela impertinência e pelas “malcriações” do filho. Chovem palpites, recriminações. A criança que está se desenvolvendo bem aprende rapidamente quais são os pontos fracos dos seus pais. Por que ela faz isso? Só para chatear, para irritar, para testar?

"Mãe com crianças e laranjas”, Picasso, 1951
Mãe com crianças e laranjas”, Picasso, 1951

Na verdade, a criança que faz birras está construindo suas capacidades emocionais e para tal está recrutando seus pais. Ela os quer firmes e amorosos ao mesmo tempo, presentes , maleáveis e resistentes. A criança vai atacar os pais para que eles possam sobreviver aos seus ataques. Assim, poderá construir a ideia de ser separada deles, com uma mente própria. A raiva, o ciúme, a inveja, a disputa: todos estes afetos difíceis começam a aparecer no palco do drama familiar. A criança tenta adquirir um controle sobre sua vida e sobre as emoções dos seus pais. Se a criança ganhar este jogo, ficará desesperada! Pois os limites é que darão segurança à criança.

Como ajudar nosso filho a lidar com o NÃO?

Para isso, precisamos rever aspectos profundos de nós mesmos . Como você lida com os limites? Você se resigna, se revolta, ou você sabe negociar com as dificuldades da vida? Como você faz para viver em sociedade, seguir as regras da boa convivência, do respeito ao outro, sem que por isso se sinta submetido, ressentido e amargo? Como abrir mão da onipotência infantil e achar gosto na vida real, onde sempre falta algo ou alguém para nossa felicidade ser completa?
Adultos também fazem birras. Alguns se mantém vivos por meio dos embates que travam com a vida. Esses embates podem estar encobrindo uma real dificuldade de se adaptar, pensar, abdicar da condição de estar no controle, ter poder sobre o outro.

Entendamos então, a importância da fase das birras, que vai dos 2 aos 3 anos de idade mais ou menos. Para Winnicott ” é no entremeio que talvez resida a coisa mais difícil no desenvolvimento humano, ou talvez a mais penosa de reparar, de todas as falhas iniciais que ocorrem. O que existe no meio…é o fato de o sujeito colocar o objeto fora da sua área de controle onipotente; isto é, o sujeito perceber que o objeto é um fenômeno externo, não uma entidade projetiva, na verdade, o reconhecimento de que o objeto é uma entidade autônoma.” É a fase importante da birra que traz para a criança, por meio dos embates com o adulto, a noção firme de aonde ela começa e termina, de aonde o pai começa e termina, de onde a mãe começa e termina. Há um triângulo, e em seus vértices estão o bebê, a mamãe e o papai. Ao perceber que os pais tem uma vida própria, e se amam, e vivem sua vidas independentemente do desejo da criança, ela perde e ganha. Perde a ilusão da onipotência, sofre o ciúme, a inveja e o limite! Mas ganha a possibilidade de estar só, ganha a possibilidade de perceber que também ela pode se ligar a outras pessoas: os primos, a vovó, os amiguinhos da escola. O NÃO é uma estrada com duas direções: ajuda a criança a se definir, se reconhecer, se direcionar . O pai que diz não à criança está também dizendo a ela que é bom crescer, e que ela também poderá dizer não ao outros, aprendendo a reconhecer seus desejos verdadeiros.

É verdade que Winnicott também fala do amor primitivo, referindo-se aos estados excitados do bebê, carregados de tensão instintual, mas este “amor” é feito de necessidade, e nada sabe sobre a existência externa de um outro. O amor do objeto que sobrevive à destruição é toda uma outra coisa; trata-se agora do sentimento de um eu – que, embora incipiente é inteiro e separadodirigido para um outro, como pessoa inteira e separada. O pré-requisito para este amor é o mesmo que para o exercício da genitalidade que se quer madura, e que não é apenas um exercício solitário; também nesta é preciso que o objeto seja percebido como externo e separado do indivíduo. Ou seja, o amor é constituído no interior do processo de amadurecimento.” *

É a face mais dura do amor. Onde eu termino, você começa.

Amor é o que se aprende no limite, como dizia Drummond : amor começa tarde. O amor está ligado à maturidade. Sem passar pelo “terrible two” a criança estará paralisada no seu desenvolvimento. Terrível , mesmo, é descobrir que mais que dois existem mais. Mas sem esta constatação estaremos presos num mundo de onipotência, desespero e solidão.

  • Elsa Oliveira Dias- A teoria do amadurecimento de D.W.Winnicott, 4 ed, 2017, pag 224.

Ciranda, do Palavra Cantada!!!

Gestos Alongados

Eu queria levar banana-maçã pro meu pai. Não que ele tivesse me pedido. Estava na lista dele, mas no mercado não tinha. Sei disso porque faço as compras para ele desde março. Ele tem mais de noventa anos e neste 2021 está recluso há catorze meses. Hoje levo.

Conduzo o carro através do seis quilômetros que nos separam. Não é longe, mas nessa pandemia, as coisas se encompridam. Os gestos se alongam em etapas. Antes de sair, coloco máscara de proteção (duas), troco os sapatos, pego o elevador, torço para não encontrar com muita gente.

Uma vontade grande de estar na rua, com ganas de sair dela logo.

No caminho, claro de sol, abro as janelas quando pego velocidade. Sensação de liberdade provisória. É sábado à tarde e vejo poucas pessoas nos pontos de ônibus. Estão com máscaras no rosto, no queixo, nas mãos. Conversam e riem.

Os fins de semana são tempos de ônibus alegres, pessoas em grupo, o tempo mais largo, folgado. Como suas roupas, soltas, sem cintos, fivelas, compromissos. Perto do parque do Ipiranga, ciclistas e pessoas correndo. Um cachorro escapa da guia e vai ao encontro de dois labradores. Uma pequena confusão de latidos e correrias. Na Vila Mariana, passo em frente a restaurantes com mesas ao ar livre, nas calçadas. Famílias em fim de almoço, crianças gritando. Gente querendo viver, difícil pensar na morte.

Chego na rua onde ele mora, estaciono logo. Volto ao ritual. Máscaras, elevador, tirar sapatos. Meu pai abre a porta e se afasta. Agora já se acostumou a não vir me abraçar. Estar com ele também requer gestos alongados. Lavar as mãos, sentar longe, vontade de estar próxima, medo de ficar muito perto. Apartar-se do pleno viver, preservar a vida.

Sinto o piso frio da cozinha sob meus pés. Vejo a quietude da sala, os móveis escuros, um violino mudo em cima de uma poltrona, o teclado encapado em plástico. O sol filtrado pelas cortinas atenua os contornos.

Coloco as bananas na fruteira. Ele sorri. Obrigado, filha. Ele sabe que não precisa delas. Eu também sei. Mas ele gosta e não tinha vindo nas compras.

Venha se sentar.

O apartamento, com seus sofás, quadros, porta-retratos, respira todo à minha mãe. Meu pai vive sozinho em meio às suas lembranças há vinte e cinco meses.

Estar com ele também requer estirar sentimentos. Para que caibam a ausência e a presença dela, dele, dos dois.

Estar com ele requer visitar a falta dela. Na sala, no quarto, nos olhos dele. Por isso tudo é tão comprido. Alongam-se os silêncios, as pausas. Meu pensamento, dilatado, comprime o passado e o futuro.  Revejo a mesa, almoços, risadas e antevejo a sala vazia. Sentimentos condensados.

No quarto, dentro do armário, as roupas soltas de seus hábitos, aguardam um destino.

As caixas de remédio empilhadas perto dos copos me alertam para verificar se estão acabando. Conto os comprimidos de cada uma. Três, seis, nove, treze.

Precisamos pedir pra farmácia, pai. Ele faz que sim com a cabeça e, como se lembrasse de alguma coisa, se levanta, pega a chave e de forma ritmada dá corda no relógio antigo de parede. Os sabiás cantam lá fora, meio da primavera. Os ponteiros seguem se movendo. Vamos comer as bananas. 

“Winnicott  afirma que a criatividade é a base do viver saudável, e que é esta condição que faz com que a vida valha a pena. A possibilidade de viver criativamente é relacionada à qualidade da provisão ambiental recebida no início da vida. Com base na teoria de Winnicott sobre a criatividade, é possível pensar o trabalho do luto como estando vinculado à possibilidade de realizar um ato criativo, com o objetivo de reinstalar a idéia de que a vida vale a pena.” Barone,K.C. O trabalho de luto à luz dos fenômenos transicionais. Caderno Ser e Fazer, 8 outubro 2004

Imagem: Pilar Rodriguez

Acalantos

“meu coração me acordou chorando ontem à noite

o que posso fazer eu supliquei

meu coração disse

escreva o livro

Rupi Kaur ( Outras jeitos de usar a boca, 2014 )

Esta história começa com a perda de um vovô querido que me comoveu muito, colhido pela Covid. E este sobressalto no peito. Meu coração disse: escreva. E então a idéia de um acalanto me veio : a composição de Aldir Blanc e Cristóvão Bastos que fala disso, de avós e netos. Fiz a postagem ( https://www.gestoespontaneo.com.br/avos/) mas meu coração não sossegou.

Porque no meio do caminho da minha busca musical, navegando na internet, dei em outras terras . Topei com um outro avô e um terceiro acalanto, que não conhecia. Navegando na internet também cheguei à Bahia

e ouvi:

Ou seja: encontrei Caetano, vovô moderno, observando seu neto Benjamim aprendendo a dormir! Cantava assim:

O autoacalanto de Benjamin
Que é, por enquanto, caçula de mim
É um deslumbramento
Ele emula o canto de um querubim, curumim

O que é mesmo que isso me ensina?
Um ser que a si mesmo se nina
É um quase lamento
Já é nota de tom
E tem cor de jasmim

Eu nunca tinha visto nada assim

O alumbramento do avô reparando no neto que começa a compor alguma coisa de si, quase um lamento, acalentando a si próprio… eu também não tinha visto nada assim. O avô não só observa o neto, como traduz o que vê, na letra da canção – e o imita. O autoacalanto que ajuda Benjamim a dormir é por seu avô reproduzido, brincado, na própria canção, nas vocalizações que ouvimos após os versos finais.

Coisa de vô e neto.

Quem tem bebê pequeno sabe que aprender a dormir sozinho não é fácil. A possibilidade de um bebê se autoacalentar, principalmente em algumas fases em que se angustia mais de estar separado da mãe : não é pouca coisa não! A nossa colega Gilca nos fala disso em seu post ( https://www.gestoespontaneo.com.br/o-sono-dos-bebes/).

Assim, o que o avô percebe, e faz com que ele se en-cante, é o uso que Benjamin faz das vocalizações para ninar-se a si mesmo.

Este acontecimento psíquico não escapou dos olhos de Winnicott.

Em “O brincar e a Realidade” o autor nos conta desta descoberta e inaugura um campo muito rico de pensamento para a psicanálise . Ele nomeia de objetos transicionais aquelas primeiras posses dos bebês que podem ser o ursinho, o “naná”, ou até a ponta de um cobertor e que os ajuda a se consolar e ficar bem sem a presença da mãe. Ele nos ensina que mesmo palavras que o bebê canta ou repete podem ter para ele um valor transicional, no sentido de permitirem um intercâmbio entre ele e o mundo, confortarem, reassegurarem, na medida em que encarnam ,para ele, a mãe. Estes objetos estão numa área intermediária que “mistura” seu mundo interno e a realidade, uma área de verdadeiro brincar, que ainda não é para o bebê pura imaginação ( pois o objeto tem de estar lá na sua concretude) mas já denota uma capacidade de ir além da concretude das coisas, uma qualidade do que em nós é o psiquico e que nos bebês pequenos está em estado nascente.

Um avô que observa esta coisa acontecendo em seu neto e a torna música nos lembra o quão deslumbrante pode ser a percepção, para o adulto, deste acontecimento. O poeta, o artista, é aquele que olha uma coisa corriqueira, comum, e se deslumbra. Winnicott vai entender a cultura como uma derivação dos objetos transicionais do bebê: na medida em que os espaços de troca culturais são lugares privilegiados onde ou Eu e o mundo se misturam sem que se precise abrir mão da fantasia e da sensação de ter criado, inventado, o mundo. A cultura é o sonho compartilhado com o mundo real.

Vovô Caetano faz a mesma coisa que Benjamin quando compõe sua canção.

Coisa de vô e neto.

Agora vamos rodar o filme para uns cem anos atrás. Há cem anos , também assolado por uma epidemia, um outro avô escreveu sobre seu neto, a partir da observação dos acontecimentos psiquicos que podia inferir das suas brincadeiras. A história é mais ou menos assim.

Este avô foi passear na casa da filha ( dizem que era a sua filha predileta) e observou o neto brincando com um carretel. Ele sacou, como Caetano, que as vocalizações da brincadeira estariam representando a imagem mental da continuidade-descontinuidade da presença materna! A esta altura você já deve estar imaginando que o vovô aqui era o Freud.

Freud e seus netos, filhos de Sophie

Sobre o relato da brincadeira do neto, transcrevo abaixo suas próprias palavras:

“As diferentes teorias sobre a brincadeira das crianças … esforçam-se por descobrir os motivos que levam as crianças a brincar, mas deixam de trazer para o primeiro plano o motivo econômico, a consideração da produção de prazer envolvida. Sem querer incluir todo o campo abrangido por esses fenômenos, pude, através de uma oportunidade fortuita que se me apresentou, lançar certa luz sobre a primeira brincadeira efetuada por um menininho de ano e meio de idade e inventada por ele próprio. Foi mais do que uma simples observação passageira, porque vivi sob o mesmo teto que a criança e seus pais durante algumas semanas, e foi algum tempo antes que descobri o significado da enigmática atividade que ele constantemente repetia.

A criança de modo algum era precoce em seu desenvolvimento intelectual. À idade de ano e meio podia dizer apenas algumas palavras compreensíveis e utilizava também uma série de sons que expressavam um significado inteligível para aqueles que a rodeavam. Achava-se, contudo, em bons termos com os pais e sua única empregada, e tributos eram-lhe prestados por ser um “bom menino‟. Não incomodava os pais à noite, obedecia conscientemente às ordens de não tocar em certas coisas, ou de não entrar em determinados cômodos e, acima de tudo, nunca chorava quando sua mãe o deixava por algumas horas. Ao mesmo tempo, era bastante ligado à mãe, que tinha não apenas de alimentá-lo, como também cuidava dele sem qualquer ajuda externa. Esse bom menininho, contudo, tinha o hábito ocasional e perturbador de apanhar quaisquer objetos que pudesse agarrar e atirá-los longe para um canto, sob a cama, de maneira que procurar seus brinquedos e apanhá-los, quase sempre dava bom trabalho. Enquanto procedia assim, emitia um longo e arrastado “o-o-o-ó”, acompanhado por expressão de interesse e satisfação. Sua mãe e o autor do presente relato concordaram em achar que isso não constituía uma simples interjeição, mas representava a palavra alemã “fort.” Acabei por compreender que se tratava de um jogo e que o único uso que o menino fazia de seus brinquedos, era brincar de “ir embora” com eles. Certo dia, fiz uma observação que confirmou meu ponto de vista. O menino tinha um carretel de madeira com um pedaço de cordão amarrado em volta dele. Nunca lhe ocorrera puxá-lo pelo chão atrás de si, por exemplo, e brincar com o carretel como se fosse um carro. O que ele fazia era segurar o carretel pelo cordão e com muita perícia arremessá-lo por sobre a borda de sua caminha encortinada, de maneira que aquele desaparecia por entre as cortinas, ao mesmo tempo que o menino proferia seu expressivo “o-o-ó”. Puxava então o carretel para fora da cama novamente, por meio do cordão, e saudava o seu reaparecimento com um alegre “da” (ali). Essa, então, era a brincadeira completa: desaparecimento e retorno. Via de regra, assistia-se apenas a seu primeiro ato, que era incansavelmente repetido como um jogo em si mesmo, embora não haja dúvida de que o prazer maior se ligava ao segundo ato.

A interpretação do jogo tornou-se então óbvia. Ele se relacionava à grande realização
cultural da criança, a renúncia instintual (isto é, a renúncia à satisfação instintual) que efetuara ao deixar a mãe ir embora sem protestar. Compensava-se por isso, por assim dizer, encenando ele próprio o desaparecimento e a volta dos objetos que se encontravam a seu alcance.” ( Freud- Além do princípio do prazer -1920).

Quando publicou este texto, em 1920, contando a história da brincadeira do neto, Freud havia acabado de perder sua filha Sophie, a mãe deste garotinho, para a gripe espanhola!

Entre Freud, Winnicott, e hoje, muita coisa mudou e muita coisa permanece a mesma.

Cem anos depois, cá estamos nós, assolados por uma nova pandemia, que nos levou muitos avôs ( inclusive o vovô Aldir Blanc), assim como no passado a gripe espanhola levou Sophie. Por que o texto de Freud permanece atual?

Aqui está um avô que observa. Diferente de Caetano, que compôs uma musica , este avô também tentou entender, traduzir, as vocalizações de seu neto e o nascimento de algo psiquico que aquilo representava. Este mesmo homem, assolado pela dor da perda da mãe deste garotinho, publicou no mesmo ano desta morte um trabalho profundo e audacioso ( Além do principio do prazer) onde tentou entender a natureza da repetição no acontecer psíquico. É neste trabalho que ele fala desta brincadeira do carretel. O que ele não fala, e hoje podemos pensar, é que na medida em que escreve também brinca, como seu neto, sentindo falta de sua amada Sophie.

Ele , no decorrer do seu texto, termina por desenvolver idéias sobre a destrutividade que nos ataca por dentro- a qual chamou de instinto de morte. Ainda hoje, recorremos a este texto, lemos , relemos, na busca de entender essa onda de morte que nos assola. Este presidente que, sem máscara, nos assusta. Este vírus que parece mais ligeiro do que a gente, do que a nossa inteligência, nossa capacidade de fazer ligações.

E vamos tentando fazer ligações.

Ligar, desligar, brincar, simbolizar, escrever, compor. A história que começa com um avô perdido, chega na Bahia, encontra outro avô, coloca o Winnicott na caravela, volta cem anos do tempo, mais um avô, mais um neto, mais uma perda, outra pandemia. Conseguem me acompanhar nesta viagem?

(o que posso fazer eu supliquei

meu coração disse

escreva o livro )

No ano em que perdeu sua filha o avô Freud não fez uma canção – ele mesmo dizia não ser um cara muito musical- e sim escreveu um trabalho que nos encanta até hoje. Este trabalho com certeza fez parte do processo de Winnicott na formação da idéia do objeto transicional. Pensemos o bebê representando o processo de continuidade-descontinuidade da presença materna por meio do jogo do carretel. Pensemos Benjamin, ninando a si mesmo, cem anos depois. E entre Caetano e Freud, Winnicott- que não foi avô mas mesmo assim foi grande em descrever muitos alumbramentos no desenvolvimento das inúmeras crianças que observou ao longo dos anos da sua clínica.

Sim, coisa de avô e neto: um acalanto leva ao outro, e Freud aprende com seu neto! Sua escrita de “Além do principio do prazer” , iniciada antes, mas publicada no ano da morte da filha, também é uma elaboração da perda que sofre.

O que é esta combinação de amor tão poderosa ? Um dos terrenos mais férteis para estes acalantos e composições todas que nos ajudam, enfim, a compreender o humano . Para mim a psicanálise é isso.

E aqui estou euzinha- brincando de escrever no blog e reunir dentro de mim estes mestres que admiro.

Talvez o mesmo motivo que fez vovô Freud escrever, vovô Caetano cantarolar, e seus netinhos brincarem seja o que me move agora a postar, neste blog, uma certa costura de todos estes retalhos que me ajudam a pensar , resistir, lidar com este momento difícil da pandemia e as perdas que ela vem nos trazendo.

É também um autoacalanto…

retirado de : http://ocantinhodadiversao.blogspot.com/2011/09/brincadeiras-folcloricas.html

( dedico este post à Elisa Cintra, que vem trabalhando conosco , em seu curso, o brincar. )

avós

Em maio do ano passado perdemos para o Covid também Aldir Blanc, 73 anos, lá em Vila Isabel, onde quem é bacharel não tem medo de bamba. Psiquiatra como nós, formado em medicina, um dos maiores compositores, letristas, escritores, poetas brasileiros. Entre tantas composições que fazem já parte do nosso cancioneiro, da memória cultural do nosso país, algumas são menos conhecidas.

É o caso de “Acalanto pros Netos” , composta em parceria com Cristóvão Bastos.

Aldir contou numa entrevista (http://www.abi.org.br/entrevista-aldir-blanc/) que os netos para ele foram como flores brotando num deserto! Em suas palavras:

” Em outubro de 91, sofri um acidente de carro. Fraturei o fêmur de maneira incomum, fui submetido a uma séria cirurgia e, não por culpa dos excelentes médicos, fiquei com a perna dura. Após oito meses de cama, isso me arrasou e eu comecei lentamente a desistir. Não só de melhorar, mas talvez de viver. No ano seguinte, fui surpreendido com a chegada de três dos quatro netos, e a minha vida mudou inteiramente. Sei que a metáfora é batida, mas foi como se flores brotassem no deserto. “

Trago hoje aqui o Aldir para que suas palavras nos confortem em meio a este deserto que nos cerca, neste momento em que tantos vovôs e vovós estão partindo fora do combinado. O Aldir vovô escreveu este acalanto em que a sensação de continuar-se nos netos, flores no deserto , é poeticamente representada. A letra é tão linda, que transcrevo aqui:

Na primeira febre, a minha febre
E quem é quem pedindo proteção?
Ponho a mão na testa do meu neto
E é meu avô que está estendendo a mão

Nessa comunhão dos três
Eu sou avô do meu avô
Ele é o menino ali
E ri das confusões
Que o grande amor pode fazer
É um milagre essa multiplicação
De mãos e febres por buscar ternura
E então com medo de morrer
A fragilíssima trindade jura
Ficaremos sempre assim por perto
E quando meu neto tiver neto
Uma febre unindo o que passou
Dirá pro tempo: oi, meu avô.

É por aí: um piano em debussy
O morcego e o sapoti na praia dos coqueiros
O avô sou eu numa bicicleta
De canelas finas, mexe com as meninas

Explode a trovoada, a chuva canta
E a enxurrada leva todos nós
Fracionados sim, mas fusionados
Rumo ao delta, à queda, ao fim, à foz

E uma vez que voltaremos
Numa febre que menino-avô terei
Até o filósofo sorri
“é o mesmo rio. eu me enganei”

Escutem só:

na voz de Clarice Grova

É o mesmo rio…

Avô e neto fusionados, fracionados, pelo tempo que é eterno e não existe.

Mas o acalanto não termina! Uns anos depois, eis que Cristóvão Bastos recebe de Roberto Didio a letra de Acalanto pros Avós. Musicou na hora!

Uma linda continuação da própria idéia da continuação que a primeira letra trazia:

Quem me chamava pra brincar no chão
E viajava pela imensidão
Num cavalo alado de madeira
Me rodeava querendo atenção
Pousava o rosto no meu coração
Era noite azul com giz de cera

Quem escalava o time de botão
Também ganhava o céu no seu balão
Eu nem levantava da cadeira
Então corria em minha direção
Pegando a velha alma pela mão
Pra subir na jabuticabeira

Do meu pijama não largava, não
Adormecia noutra contação
Fábulas, no fundo, verdadeiras
O sol passava o braço no portão
Sanhaço vindo pela contramão
Minha rua amanheceu na feira

A luz sumindo, eu me sentindo mal
Sabendo que não estaremos sós
O grande amor partiu igual cristal
Consigo ouvir a voz dos meus avós
Cruzando o mesmo rio, sem avisar.

Querem ouvir? Aqui está.

Depois disso…fico já sem palavras.

Este post é dedicado ao meu amigo Ricardo

Benzinho- a Nossa Pietá brasileira


Benzinho-  A nossa pietá brasileira

Sobre a relação do homem com sua mãe, a nossa blogueira  do Gesto Espontaneo , Cecilia Hirchzon escreve *:

“O homem, para ser “si mesmo” e para constituir a sua identidade masculina, terá de se separar desta Mulher,  de quem dependeu totalmente. Já a mulher, para se constituir como tal, não precisa estabelecer necessariamente a separação – pode manter-se identificada com essa Mulher. Observamos, portanto, duas direções distintas: enquanto a mulher lida com a Mulher dentro de si através da identificação, o homem tem que se separar, tornar-se único, o que se constitui em uma urgência no desenvolvimento da sua identidade. A especificidade da identidade feminina caracteriza-se por ser geracional e infinita, isto é, podendo manter dentro de si três mulheres: o bebê menina, a mãe e a mãe da mãe. Essa condição possibilita à mulher o desempenho de diferentes funções sem violar a sua natureza. Pode ocupar posições diversas nas brincadeiras, onde ora é mãe, ora é filha, alternando papéis. Ou, ainda, na idade adulta, exercendo a sua feminilidade, ocupando o lugar de mãe e/ou mulher sedutora. Enquanto isso, o homem não se funde nessa linhagem – sua condição básica é a de ser um”.

No belíssimo Benzinho, de Gustavo Pizzi,  o primogênito de Irene, mulher brasileira , mãe de quatro filhos, vai embora para a Alemanha. Foi  convidado por uma universidade  interessada no seu talento esportivo. O adolescente vibra enquanto a mãe se quebra, assustada com a partida súbita, fora de hora, do filho. A história de Benzinho é o processo que se desencadeia com a chegada deste convite que tanto abala a Irene  . O principal foco do filme é o  ponto de vista da mãe que tenta aceitar a situação. De sua alegria e de sua tristeza por ver o filho partir .  Irene é “Pietá” : numa das cenas mais lindas que já vi no cinema, a mãe embala seu filho numa bóia , aproveitando este momento de grande intimidade entre eles, já elaborando sua partida…

O amor materno , no filme Benzinho, se desdobra em suas mais variadas possibilidades  ( como diz a Adelia Prado, mulher é desdobrável) . A mãe suficiente boa, por sua saúde e sua capacidade de lidar com a perda e a separação, aparece na interpretação de Irene. Mãe suficientemente boa que se atrapalha, fica brava, dá chilique, chora, pira, respira, mas, enfim, ama. A gente fica apaixonada pela Irene. Embora abatida, apoia o seu filho e o desejo dele, reconhecendo sua alteridade, lidando de forma muito humana e amorosa com a separação.

O longa foi escolhido como o filme brasileiro que vai disputar uma vaga entre os quatro finalistas ao Prêmio Goya de Melhor Filme Ibero-americano, considerado o Oscar espanhol.

E, para refletir…uma música e um poema.

O gato andaluz*

(Rosa Alice Branco)

O meu filho caminha por aí. Já não sei

se é o Douro ou o Darro que lhe embala o sono.

Nem onde guardei as datas e o nome das ruas

ou se vou te encontrar logo à tardinha.

Deixei-me de saber e de pensar que sei.

Um gato arranha à minha porta a miar em andaluz.

Eu arranho a porta a dois dias daqui, duas horas

De avião. É proibido miar nos voos europeus.

Engulo a saliva do dia e assim se faz noite.

E não há gaivotas a gritar por mim. Por mim

estou eu à janela do avião. As malas

com que hei de dizer-te: cheguei. O teu abraço

como um rio qualquer onde corra água.

Esquecer o que ficou para trás e a língua que me fala.

Levar o copo à boca onde nasce a boca,

A fonte do quintal, a nascente do mar. O meu filho

Voa como se caminhasse descalço. Cruzamo-nos

no horizonte sobre a linha do rio onde deságua a luz.

E as palavras aquietam-se no seu nada.

( do livro Soletrar o dia, Ed escrituras, 2004)

o filme pode ser visto pelo Now ou Youtube nos links: https://www.nowonline.com.br/filme/benzinho/385245

Cuidar dos pais

Em minha casa de quatro filhas, três de nós estamos longe dos nossos pais. Embora tentemos visitá-lo frequentemente, somente Aline está, de fato, sempre perto. Ela está próxima no dia a dia para as grandes e pequenas coisas. Por causa dela podemos estar tranquilas mesmo na distância. Essa gratidão eu dificilmente conseguiria colocar em palavras.

Sobre o envelhecimento:

A integração psicossomática é conquistada no início da vida e sempre posta à prova, principalmente em fases como a adolescência, a gravidez ou a velhice. Quando o corpo muda ou falha o idoso faz um trabalho psíquico a mais para acomodar-se a este limite que agora vem de dentro. Sempre ouço me contarem que na cabeça somos mais jovens do que o nosso corpo nos diz. Como numa adolescência ao contrário. Na adolescência nos sentimos crianças tendo de nos haver com um corpo adulto. Na envelhescência estamos cheios de vontade e vigor mas o corpo já não nos responde da mesma maneira.

A autonomia, que demoramos tanto a conquistar na vida, não é facilmente abandonada. Vejo idosos aguerridamente brigarem com a família que os dimininui ou infantiliza com o intuito de proteção, deixando de perceber o quanto depender dos outros fere o seu senso de autonomia. Muitos idosos me dizem não temer a morte, e sim a dependência absoluta do outro. A lentificação das habilidades motoras e cognitivas é percebida pelo idoso não sem uma certa relutância! Reconhecer alguns limites da idade é um processo que cada pessoa faz de uma maneira muito própria.

Por isso, o filho que cuida de seus pais está numa posição difícil. Muitas vezes tem que descobrir como oferecer ajuda sem que seus pais se ressintam com isso. É preciso muita delicadeza, doçura , paciência e uma verdadeira capacidade de empatia.

Este belo texto de Valter Hugo Mãe fala de um modo poético sobre cuidar dos pais. 

“A minha mãe é a minha filha. Preciso de lhe dizer que chega de bolo de chocolate, chega de café ou de andar à pressa. Vai engordar, vai ficar eléctrica, vai começar a doer-lhe a perna esquerda.

Cuido dos seus mimos. Gosto de lhe oferecer uma carteira nova e presto muita atenção aos lenços bonitos que ela deita ao pescoço e lhe dão um ar floral, vivo, uma espécie de elemento líquido que lhe refresca a idade. Escolho apenas cores claras, vivas. Zango-me com as moças das lojas que discursam acerca do adequado para a idade. Recuso essas convenções que enlutam os mais velhos. A minha mãe, que é a minha filha, fica bem de branco, vermelho, gosto de a ver de amarelo-torrado, um azul de céu ou verde. Algumas lojas conhecem-me. Mostram-me as novidades. Encontro pessoas que sentem uma alegria bonita em me ajudar. Aniversários ou Natal, a Primavera ou só um fim-de-semana fora, servem para que me lembre de trazer um presente. Pais e filhos são perfeitos para presentes. Eu daria todos os melhores presentes à minha mãe.

Rabujo igual aos que amam. Quando amamos, temos urgência em proteger, por isso somos mais do que sinaleiros, apontando, assobiando, mais do que árbitros, fiscalizando para que tudo seja certo, seguro. E rabujamos porque as pessoas amadas erram, têm caprichos, gostam de si com desconfiança, como creio que é normal gostarmos todos de nós mesmos. Aos pais e aos filhos tendemos a amar incondicionalmente mas com medo. Um amigo dizia que entendeu o pânico depois de nascer o seu primeiro filho. Temia pelo azedo do leite, pelas correntes de ar, pelo carreiro das formigas, temia muito que houvesse um órgão interno, discreto, que disfuncionasse e fizesse o seu filho apagar. Quem ama pensa em todos os perigos e desconta o tempo com martelo pesado. Os que amam sem esta factura não amam ainda. Passeiam nos afectos. É outra coisa.

Ficar para tio parece obrigar-nos a uma inversão destes papéis a dada altura. Quase ouço as minhas irmãs dizerem: não casaste, agora tomas conta da mãe e mais destas coisas. Se a luz está paga, a água, refilar porque está tudo caro, há uma porta que fecha mal, estiveram uns homens esquisitos à porta, a senhora da mercearia não deu o troco certo, o cão ladra mais do que devia, era preciso irmos à aldeia ver assuntos e as pessoas. Quem não casa deixa de ter irmãos. Só tem patrões. Viramos uma central de atendimento ao público. Porque nos ligam para saber se está tudo bem, que é o mesmo que perguntar acerca da nossa competência e responsabilizar-nos mais ainda. Como se o amor tivesse agentes. Cupidos que, ao invés de flechas, usam telefones. E, depois, espantam-se: ah, eu pensei que isso já tinha passado, pensei que estava arranjado, naquele dia achei que a doutora já anunciara a cura, eu até fiz uma sopa, no mês passado até fomos de carro ao Porto, jantámos em modo fino e tudo.

Quando passamos a ser pais das nossas mães, tornamo-nos exigentes e cansamo-nos por tudo. Ao contrário de quem é pai de filhas, nós corremos absolutamente contra o tempo, o corpo, os preconceitos, as cores adequadas para a idade. Somos centrais telefónicas aflitas.

Queremos sempre que chegue a Primavera, o Verão, que haja sol e aqueçam os dias, para descermos à marginal a ver as pessoas que também se arrastam por cães pequenos. Só gostamos de quem tem cães pequenos. Odiamos bicharocos grotescos tratados como seres delicados. O nosso Crisóstomo, que é lingrinhas, corre sempre perigo com cães musculados que as pessoas insistem em garantir que não fazem mal a uma mosca. Deitam-nos as patas ao peito e atiram-nos ao chão, as filhas que são mães podem cair e partir os ossos da bacia. Porque temos bacias dentro do corpo. Somos todos estranhos. Passeamos estranhos com os cães na marginal e o que nos aproveita mesmo é o sol. A minha mãe adora sol. Melhora de tudo. Com os seus lenços como coisas líquidas e cristalinas ao pescoço, ela fica lindíssima. E isso compensa. Recompensa.

Comemos o sol. Somos, sem grande segredo, seres que comem o sol. Por isso, entre as angústias, sorrimos.”

(Via Público– retirado de Cuidar dos pais | Casa de papel | PÚBLICO (publico.pt)

https://www.publico.pt/2015/03/29/sociedade/opiniao/cuidar-dos-pais-1690432

Na primeira febre, a minha febre
E quem é quem pedindo proteção?
Ponho a mão na testa do meu neto
E é meu avô que está estendendo a mão

Nessa comunhão dos três
Eu sou avô do meu avô
Ele é o menino ali
E ri das confusões
Que o grande amor pode fazer
É um milagre essa multiplicação
De mãos e febres por buscar ternura
E então com medo de morrer
A fragilíssima trindade jura
Ficaremos sempre assim por perto
E quando meu neto tiver neto
Uma febre unindo o que passou
Dirá pro tempo: oi, meu avô

É por aí: um piano em debussy
O morcego e o sapoti na praia dos coqueiros
O avô sou eu numa bicicleta
De canelas finas, mexe com as meninas

Explode a trovoada, a chuva canta
E a enxurrada leva todos nós
Fracionados sim, mas fusionados
Rumo ao delta, à queda, ao fim, à foz

E uma vez que voltaremos
Numa febre que menino-avô terei
Até o filósofo sorri

“é o mesmo rio. eu me enganei”

( Adir Blanc- Cristóvão Bastos : Acalanto para netos).

A Partida

“Deixamos Bernardo em sua sepultura

 De tarde o deserto já estava em nós”

     Manoel de Barros

https://youtu.be/i6E76_gti2w

Observação: o texto revela o roteiro do filme [ALERTA DE SPOILER]

O filme A partida, do diretor japonês Yôjirô Takita, é um convite a uma travessia pelo universo onírico da música e da fotografia. Através da arte oferece sustentação e delicadeza para os sentimentos envolvidos no trabalho do luto.

O luto envolve a dor da perda e exige trabalho psíquico. A morte e a vida estão entrelaçadas fora e dentro de nós, e o filme favorece um mergulho estético entre os acordes da música e das imagens, e mesmo após o seu final ainda sentimos ressoar a sua envolvente e profunda melodia. O filme foi ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro de 2009 e foi inspirado na biografia de Aoki Shinmon Coffinman, que narra em seu diário de agente mortuário budista o seu trabalho com os mortos. Y. Takita cria assim um filme delicado e envolvente.                                   

Daigo Kobayashi é um violoncelista da orquestra de Tokyo que perde seu emprego após sua dissolução : neste momento inicia a primeira “Partida” que ocorre no filme. O músico parte com a esposa para a sua cidade natal e vende o seu violoncelo pela dificuldade financeira . Isso lhe traz alívio e revela assim a trama de emoções que o ligam a música e que vamos aos poucos conhecer. Vai morar no interior na casa que a mãe falecida havia lhe deixado de herança e inicia também uma partida para seu interior, sua infância  e  lembranças. Daigo deixa a sua vida em Tokyo e a música e procura um emprego na cidade natal. A oferta de emprego surge a partir de um equívoco de comunicação no anúncio do jornal que supôs ser de uma agência de viagem e no entanto, tratava do preparo dos mortos em um ritual tradicional. A função oferecida no anúncio é ser um nôkanshi– um agente mortuário- que limpa, prepara, maquia e coloca o morto no caixão na presença da família em um ritual de despedida.

O encontro com o patrão que faz o trabalho se inicia de forma difícil, sendo o primeiro trabalho com um corpo já em estado de decomposição, o que o deixa impregnado do cheiro  da morte.  Este ofício no Japão não é bem visto e Daigo esconde seu trabalho da esposa . Sente também  a repulsa dos amigos. Porém, a maneira do patrão executar o ritual  o surpreende e o comove. Percebe a elegância dos gestos solenes do nôkanshi , a delicadeza do respeito e a demonstração de cuidado e carinho. Ele oferece assim, com os seus gestos , uma sustentação sem palavras, como um maestro a expressar sentimentos que tocam os familiares do morto.  No último encontro, no momento de despedida do morto, o nôkanshi  faz uma maquiagem que traz novamente a beleza da lembrança daquela pessoa em vida,  e auxilia a despedida neste momento tão difícil. O ritual ajuda a conter  e sustentar os dramas familiares.

Daigo encontra o seu violoncelo da infância, lembrança de sua ligação com o pai que partiu quando ele tinha 6 anos de idade e do qual não conseguia , nas suas lembranças, ver o rosto. Recorda de um momento importante, quando trocaram pedras- antigamente ,antes da escrita, as pessoas davam pedras umas às outras em sinal de afeto. A sua pedra estava em seu violoncelo, e nesta noite após este primeiro trabalho e no difícil primeiro encontro com a morte, toca para dar vazão a seus sentimentos, transformando em arte o que o assombra. O filme conduz ao encontro consigo mesmo e ao reencontro com a sua história de vida. A importância que descobre neste novo trabalho dá um novo sentido à sua vida. Mesmo quando a esposa Mika descobre e vai embora por não aceitar este trabalho tão mal considerado,  Daigo recorda suas experiências com os rituais  e não desiste.

O filme A Partida abarca as muitas perdas e separações que vivemos em nosso processo constitutivo humano. A separação dos pais que no caso do personagem foi traumática e se reflete no seu sentimento de fracasso pessoal.  Nesta travessia ele vai se transformando e integrando as experiências vividas. A esposa volta e revela que ele será pai, e novamente a vida e a morte se entrelaçam. Após assistir o ritual que Daigo realiza com uma amiga da família, a dona da casa de banhos que o via chorar na infância pela dor da perda do pai, a esposa percebe a delicadeza, beleza e nobreza dos gestos do marido e passa a aceitar e compreender seu trabalho . A convivência com o patrão e a secretária do trabalho oferece a Daigo a família perdida… -É comovedora a cena em que ele agasalha o patrão que dorme e nos faz perceber seu sentimento de falta do pai perdido.

Um dia recebe a notícia da morte de seu pai. Amparado pela esposa, apesar da resistência inicial, parte para se despedir do pai, para o reencontro com o pai agora morto mas sempre presente nos acordes da sua música. Desta vez está na cena como a família que assiste, mas quando vê a inabilidade dos agentes que fariam o serviço, os tira da situação e resolve ele mesmo realizar o ritual de preparo do corpo. Quando encontra a pedra que havia dado ao pai, se restabelece uma ligação. A pedra simbolizava uma ligação com o pai que ele julgava perdida, e através daquela pedra o pai narrava em seu silêncio mortífero a presença do filho para ele. O rosto do pai pode finalmente compor a sua memória, nesta cena tocante em que prepara o filho prepara o pai para a partida sob os acordes da música. Ficamos comovidos.

Este filme ,através da delicadeza, criatividade e sensibilidade do diretor em tratar de temas tão difíceis, nos oferece em sua poética elementos fundamentais para -como diz o poeta Manoel de Barros- nos tirar do deserto e auxiliar no trabalho de elaboração do luto.

Carla Braz Metzner

A crueza e a beleza de viver o possível

Sobre o filme: Hanami – Cerejeiras em flor
Direção: Doris Dörrie; Produção Alemanha/França, 2008

Observação: o texto revela o roteiro do filme [ALERTA DE SPOILER]

Em “Hanami”, na primeira cena, a morte é logo anunciada. Trudi (Hannelore Elsner) fica sabendo que Rudi (Elmar Wepper) tem pouco tempo de vida. Os médicos contam apenas para ela e sugerem que os dois façam uma viagem, enquanto é possível. “Meu marido não gosta de aventuras” responde e resolve guardar sua angústia e o segredo. No entanto, pede ao homem para irem visitar o filho mais novo em Tóquio. Ela ama a dança japonesa do Butoh e tem o sonho de conhecer o Monte Fuji, mas ele acha muito caro, “talvez depois da aposentadoria”. Então, o casal visita os outros dois filhos em Berlim e, diante do desencontro de gerações, decidem ir passar uns dias na praia. Mas, o inesperado acontece. Trudi morre dormindo. Morre com seu segredo, com seus sonhos. A realidade toma outro curso.

A falsa sensação de permanência do estar vivo, com suas rotinas e certezas, traz uma perspectiva de que sempre se terá tempo para o futuro, como se a negação da perspectiva de um fim acabasse mortificando o viver em repetições previsíveis.

O que lembra a efemeridade assusta: a doença, o envelhecimento, a possibilidade do morrer. As moscas, lembradas no poema recitado em família, aparecem como importunos insetos que precisam ser afastados ou esmagados para que não atrapalhem a sensação de continuidade, com sua existência efêmera. Por outro lado, a perda iminente ou concretizada de um ser querido quebra esse arranjo confortável e chama, à cena, a fragilidade humana.

Ele, agora viúvo, vai à Tóquio, levando as roupas da mulher na mala, desejando que de alguma forma ela esteja presente. É primavera e depois de alguns dias, o filho o leva para o Hanami Festival.

Contemplar as flores das cerejeiras é uma tradição milenar no Japão. É uma forma de apreciar a beleza e brevidade da floração, que dura cerca de 14 dias, ao sentar embaixo das árvores, com a família e amigos, comendo e celebrando a vida, enquanto é possível. Observar as flores, a sua natureza cíclica, coloca, no tempo, a percepção da finitude, que coabita a existência.

Voltando ao jardim, Rudi conhece Yu (Aya Irizuki), uma jovem órfã, que dança o Butoh no parque. Com ela, consegue conversar sobre sua perda, entender o significado da dança com as sombras e os sentimentos.

O Butoh, por ser uma dança sem coreografia própria, mostra um corpo em transformação, que constrói e desconstrói sua identidade em ritmos particulares, transitórios. Através da fluidez da forma, busca expressar e alcançar a essência do dançarino. O marido enlutado, anteriormente preso à suas tarefas e costumes, nesta nova convivência, veste outra roupagem, inusitada.

A menina passa a ser sua intérprete, uma ponte à língua japonesa e ao mundo sensível da sua esposa. Eles fazem uma viagem para ver o Monte Fuji, mas a montanha diariamente se esconde na neblina. Quando, numa madrugada, finalmente a montanha fica visível, o homem, sentindo-se cada vez mais doente, dança o Butoh, vestido com as roupas de Trudi, e encontra a morte.

Quando Winnicott anota em suas memórias: “Oh, Deus! Possa eu estar vivo quando morrer” sublinha a valorização da experiência, o exercício constante de sentir-se real mesmo diante da terminalidade. A vivacidade de estar presente em seus gestos, na expressão de si mesmo é interagir e observar a realidade sem estar submisso a ela.

Muitas vezes para lidar com a inevitabilidade da perda, viver passa a ser uma repetição de atos rotineiros, metódicos, que afasta a espontaneidade, a criatividade. O próprio futuro surge como uma fuga para o eterno. Desvestir-se das ilusões, sentir a falta do outro que segue suas próprias leis e caminhos e reinventar-se são tarefas diárias, mas que por vezes somem no cotidiano, como nas manhãs que se repetem na cidadezinha do interior em que os personagens moram.

O entorpecimento, trazido pela negação da vulnerabilidade humana, borra os limites entre o que é subjetiva e objetivamente percebido, inibindo a ação criativa. Quando diariamente Rudi chegava para jantar, no tempo em que vivia com sua mulher, e encontrava os charutos de repolho prontos para comer, pelo costume, turvava-se a realidade de que ali existia alguém que os fizera. Após sua perda, quando chega na casa vazia, a falta, objetivamente, explicita o engano. Mais tarde, no Japão, a partir da receita da esposa, pode brincar, inventar, recriar a partir da visibilidade da separação e cozinhar os charutos para o filho.

D.W.Winnicott afirma: “É com base no brincar que se constrói a totalidade da existência experiencial do homem. Não somos mais introvertidos ou extrovertidos. Experimentamos a vida na área dos fenômenos transicionais, no excitante entrelaçamento da subjetividade e da observação objetiva, e numa área intermediária entre a realidade interna do indivíduo e a realidade compartilhada do mundo externo aos indivíduos”.

Experimentar a impermanência das coisas e das pessoas, abre portas para a angústia, mas também para um convite a desfrutar a realidade provisória em que se vive. As cerejeiras em flor carregam dentro da sua beleza o sentido da transitoriedade e a urgência do presente.

Nessa época em que a pandemia atual marca a fugacidade da vida, colocando as pessoas como moscas presas numa garrafa do tempo presente, resta a crueza e a beleza de viver o possível, que limita e liberta.


de tantos instantes
para mim lembrança
as flores de cerejeira

?
Matsuo Bashô


Cena final do filme “Hanami – Cerejeiras em flor”

A Transitoriedade

Estamos vivendo um momento de muitas perdas. De repente, parece que o mundo parou devido à pandemia. Recebemos recomendações para o isolamento social e afastamento físico para evitar a propagação do coronavírus, causador da Covid-19. O medo do contágio e a nossa vulnerabilidade frente ao adoecer e morrer nos faz entrar em contato com a nossa finitude. Estamos desamparados em um momento que não temos respostas, vacinas ou remédios que possam suavizar o nosso sofrimento.

Decidi reler o texto do Freud sobre a Transitoriedade (1916). O texto me pareceu convidativo porque Freud dialoga com dois amigos pessimistas.

Então vamos lá:

A Transitoriedade foi escrito em 1915, mas, foi publicado em 1916 , isto é, foi escrito um ano depois do início da Primeira Guerra Mundial (1914), que retirou do mundo o que ele tinha de mais belo : na natureza e na cultura.

Nesse momento, um verão maravilhoso estava acontecendo na Europa. Freud nos conta em seu texto sobre o passeio que faz com dois amigos e relata o diálogo que ocorre entre eles.

Ele inicia seu texto assim:

O amigo poeta, ao admirar a paisagem, lamenta o fato da brevidade da existência daquela beleza. Freud diverge do amigo poeta porque ele não acredita que a beleza da natureza e da arte podem se desfazer. Ele crê que estas coisas, de alguma forma, têm que subsistir à destrutividade e afirma: “o valor de transitoriedade é o valor de raridade no tempo”.

Freud também afirma que a imortalidade é um produto dos nossos desejos e não da realidade. A extinção do que é belo tem mais valor por ser uma raridade no tempo. Por isso, a transitoriedade não pode retirar a alegria que a beleza nos proporciona.

A beleza da natureza está no fato de que ela sempre volta quando é destruída pelo inverno e esse retorno pode ser considerado eterno em relação ao nosso tempo de vida. A beleza de uma obra de arte, se ela tiver significado para a nossa vida emocional, não precisa sobreviver a nós.

Freud afirma que o luto os impede de saborear o prazer que um momento carregado de beleza proporciona.

Seus amigos, diante da transitoriedade das coisas, vivem um luto antecipado- a mente recua instintivamente em face a sentimentos dolorosos.

O diálogo entre Freud e seus amigos pode ser observado por nós neste momento tão difícil que atravessamos.

Muitas pessoas vivem sem ter conhecimento sobre elas mesmas. Desconhecem seus desejos, frustrações ou satisfações e, quando o externo é retirado, sentem-se completamente desamparadas.

Nesses momentos, nos resta contar com o nosso mundo interno para nos fazer companhia e ampliar o conhecimento sobre nós mesmos . Assim podemos aumentar nossa chance de lidar melhor com os nossos acertos e fracassos na realidade em que vivemos.

Ultimamente, estamos enfrentando uma pandemia mundial, que nos obriga a ficar confinados onde os que podem, ficam em suas casas e lá permanecem como refugiados. Por isso, estamos vivendo um luto coletivo em relação às perdas que tivemos de convivência, proximidade e até a perda concreta de parentes e amigos.

Remetendo ao texto do Freud sobre A Transitoriedade, salvo devidas proporções, estamos vivendo o mesmo desamparo sentido pelos seus amigos ao entrar em contato com a brevidade da vida. Muitas pessoas, por incapacidade de vivenciar o luto, deixam de aproveitar este momento que pode favorecer muito uma viagem para o nosso mundo interno.

Freud, no texto, nos transmite a visão de que nesse momento necessitamos de um olhar para o futuro que só poderá ser feito através da natureza e da cultura.

Freud sustenta a idéia de que o fato da finitude da vida não pode retirar o encanto do que é belo.

E assim com essa mensagem ele termina:

Cartas de Winnicott ( por Cecilia Hirchzon)

Este é Winnicott: criativo, arrojado, franco, irreverente, humilde, sedento de reconhecimento, sensível, voltado para problemas sociais, libertário e sobretudo fiel a si mesmo.

 

 

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições! Ninguém me diga “vem por aqui”.
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou…
Não sei por onde vou, Não sei para onde vou
– Sei que não vou por aí!

(José Régio. Poemas de Deus e do Diabo, 2005)

 

 

Cartas de Winnicott

Por Cecília Luiza Montag Hirchzon

Em um misto de busca de informação, curiosidade e talvez até um tanto de voyeurismo, fui à procura da correspondência de Winnicott para conhecer … quem era a pessoa que se expressava e existia através de suas cartas.

O livro sobre a sua correspondência em que me baseei foi O gesto espontâneo: D. W. Winnicott (1990), escrito por Robert Rodman que  teve acesso às cartas pela primeira vez em 1958.

O meu primeiro olhar foi de surpresa, seguido de interesse e admiração por esta pessoa genuína que se revela a cada passo, em todo o seu ser.

Ao comentar os diferentes autores, Winnicott elogia os trabalhos em que os analistas contribuem com suas próprias concepções, estimulando-os a ser eles mesmos. Paralelamente preocupa-se com a “confusão na Sociedade, quando vários termos são usados como se fossem plenamente aceitos”, salientando a necessidade “de descobrir uma linguagem comum”.

Mostra-se crítico, algumas vezes, com suas próprias colocações (em carta a Willi Hoffer): “manifestei um profundo desgosto por tê-la escrito, já que se trata de uma carta inteiramente ruim” (p. 26); assume conscientemente características suas : “sou daquelas pessoas que se sentem compelidas a trabalhar à sua própria maneira e a se expressar na sua própria linguagem” (p. 47).

Essas qualidades não implicam, no entanto, falsa modéstia, sabendo reconhecer o próprio valor e reivindicando seus direitos, como em uma carta endereçada a David Henderson: “Nesse caso acho que o senhor poderia ter mencionado o meu nome no lugar do de (Leo) Kanner … não entendo por que devemos procurar nos EUA algo que existe em nosso país” (p. 56).

A situação institucional e o risco de idolatria são temas frequentes de suas preocupações, como quando alerta Melanie Klein: “Estou preocupado com essa estrutura que poderia ser chamada kleiniana. Suas ideias só viverão na medida em que forem redescobertas e reformuladas por pessoas originais, dentro e fora do movimento psicanalítico” (p. 31). O comportamento por vezes impiedoso com alguns autores não o impede que em outros momentos reconheça o talento, por exemplo, de Bion: “Quero que você saiba o quanto valorizo o trabalho que você vem fazendo e apresentando em seus ensaios sobre o pensamento. Como muitas outras pessoas, eu os considero difíceis, embora extremamente importantes” (p. 115).

Nas situações em que se sente excluído, nada o impede de pedir e até mesmo implorar por um olhar sobre sua contribuição à cena analítica, daqueles que, em grande parte do tempo, não conseguem (ou não querem) reconhecer a originalidade de sua obra. Dirigindo-se a Melanie Klein, pede um movimento dela em sua direção: “Trata-se de um gesto criativo e não posso estabelecer relacionamento algum através desse gesto se ninguém vier ao meu encontro” (p. 30).

Tendo se desenvolvido em um “grupo psicanalítico e conhecido todas as suas pressões e tensões internas”, admite conhecer “a psicanálise apenas como uma ciência em luta” (p. 168), o que revela a pulsante e frequentemente explosiva atmosfera institucional daquele período.

Embora Winnicott tivesse sido médico do Departamento Infantil do Instituto Britânico de Psicanálise durante 25 anos, presidente durante dois períodos de três anos (1956-1959 e 1965-1968), e secretário científico e de treinamento por períodos de três anos (p. XV), a oposição à sua teoria foi intensa; isso não fez, felizmente para nós, com que ele renunciasse às inovações peculiares de seu pensamento: “não me importo que demonstrem que estou errado, nem que me critiquem ou ataquem. Mas fiz um trabalho importante, com o suor do meu rosto psicanalítico (isto é, clinicamente), e recuso-me a ser eclipsado” (p. 126).

Muitas vezes, em sua franqueza beirando a irreverência, passa por cima de qualquer formalismo escrevendo a altas patentes, como o Primeiro-Ministro Chamberlain, ou a Lord Beveridge. A sua participação ativa como cidadão levantando questões humanitárias mostrava-se em cartas a parlamentares e também a jornais, como o New Society e mais frequentemente ao Times, a respeito de temas como o perigo da transformação de médicos em funcionários públicos, a relação de profissionais da saúde com trabalhadores, interferência de voluntários acobertados por apoio governamental, delinquência, crime, TV patrocinada etc. Não se limita a criticar, mas também formula sugestões importantes. Enfatiza também em palestras radiofônicas sua preocupação com a democratização do conhecimento, tornando-o acessível a um público amplo.

Preocupado com a rigidez da psicanálise ortodoxa, alerta: “no todo, parece que não se disse aos estudantes que todos os analistas falham, que todos tem casos difíceis” (p. 155).

Este é Winnicott: analista criador de uma teoria que representa um marco fundamental no desenvolvimento da psicanálise.

Este é Winnicott: criativo, arrojado, franco, irreverente, humilde, sedento de reconhecimento, sensível, voltado para problemas sociais, libertário e sobretudo fiel a si mesmo.

A respeito desse autor e desse autor e dessa obra, poderíamos dizer, com Merleau-Ponty: “A verdade é que esta obra exigia esta vida” .

Penso que o texto acima descrito representa para mim uma experiência de “jogo do rabisco”, no qual as cartas de Winnicott se apresentaram como uma expressão autêntica e espontânea do seu ser. Através dessa correspondência e do meu olhar, acredito que fomos (as cartas e eu) desenhando, garatujando, e construindo um retrato dessa figura humana intensa na vida e na criação.

 

“Trata-se de um gesto criativo e não posso estabelecer relacionamento algum através desse gesto se ninguém vier ao meu encontro”

 

Leia o artigo na integra em

http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31062010000100010

Sossegue

 SOSSEGUE…  

  

 

“ Carlos, sossegue, o amor 

 é isso mesmo que você está vendo: 

 hoje beija, amanhã não beija  

Depois de amanhã é domingo 

E segunda-feira ninguém sabe o que será” 

                                               Carlos Drummond Andrade 

 

 

TIRA RADIOGRAFIA, TIRA A PRIMEIRA RUGA, A CIATALGIA

O QUE FICA?  

O AMOR.  

 

MACERA O ALHO, MOLHA A CEBOLA, EMBALA O FILHO, EMBRULHA O ASSADO,

QUEM ESTÁ COMENDO?  

O AMOR.  

 

 

FAZ O IMPLANTE, RETIRA A SAFENA, RETIRA O DENTE, ENXERTA A MAMÁRIA,

QUEM VELA NA CAPELA?  

O AMOR.  

 

COMPRA CAMA DE FERRO, COMPRA COLCHA BONITA,  

COMPRA VIAGRA, PAGA À VISTA E NÃO PODE, PULA A CERCA E NÃO ESCONDE,

TROPICA E CAI.  

QUEM LIMPA A VERGONHA?  

O AMOR.

 

FICA PELADO SEM APAGAR A LUZ   

ESQUECE A CARTEIRA  NO BANHEIRO DO TREM

PINTA A UNHA DE VERMELHO, ELA DESCASCA

PERDE CABELO NO TRAVESSEIRO TODOS OS DIAS.  

QUEM CATA?  

O AMOR.  

 

TIRA O BERNE, SOLTA AS BICHAS, PASSA VINAGRE PRA MATAR AS LÊNDEAS,

PASSA BABOSA  NO CABELO.  

QUEM BRILHA?  

O AMOR.  

 

QUEIMA A COMIDA, FAZ O ENEMA, AMORNA O LEITE, TEMPERA O PEIXE, QUEM CHEIRA?  

O AMOR.  

 

FAZ A FOGUEIRA QUEM QUEIMA É O AMOR.  

SOSSEGA,CARLOS, QUEM SOSSEGA É O AMOR.  

 

Arianne Angelelli

Pra meus queridos tios, Marina e Reginaldo, pelos seus cinquenta anos de casados

E para tio Reginaldo, também, pelos seus oitenta anos

 

 

Aconchego

Cheguei em casa
E descansei
minha exaustão
no jantar
Enquanto
Brincava de fazer
estrelas no papel,
com mamãe.
Depois, levei
papai a ver a lua
e quando
olhei para trás,
repousei…
Adormeci…
Brinquei com os meus sonhos
Que suavizaram
A finitude dessa experiência.
Adormeci…
Hoje, aconchego
dentro de mim
essa memória
que brinca,
brinca, e brinca…

(Por Gina Tamburrino)

Doeu

Doeu
Ele me doeu a vida inteira
Congelou minha infância
Paralisou a menina
Que nunca virou mulher
Então, a menina sepultou seu filho não nascido
Com timidez sonhado
Antes, colocou seu vestido de noiva
E, diante dele, seu homem sonhado se desfez
O carrinho de bebê perdeu-se no tempo
Não subiu e nem desceu as escadas,
Vida e morte se entre-olham,
Se desafiam,
Se encaram,
Quem desafia quem?
•por Gina Tamburino

O gesto espontâneo de Francis Há

O filme Francis Há, do diretor Noah Baumbach (2013) está no netflix.

Para quem não assistiu no cinema, é uma boa opção. O filme narra as aventuras (e desventuras) de Francis, tentando achar o seu lugar ao sol em Nova York, e também no mundo adulto, em que parece não se encaixar. Grandona, desengonçada, espontânea, Francis e seus amigos são adolescentes tardios. Geração mimimi, geração nutela, geração nem-nem (nem trabalha, nem estuda)… Quem não escutou um destes termos e a explicação jocosa de que estes jovens estão se jogando da caixa d’água ou morrendo de propósito,  “feito passarinhos, avoando de edifícios” porque não querem crescer, ou não aguentam as frustrações? Não querem trabalhar, não querem dificuldades: “dá seis da tarde, largam a caneta”… ou: “foram criados na internet, tudo na mão, tudo fácil, não querem nada com a dureza”.

Hummmm… Ponho-me a pensar.

 

Na clínica dos tempos atuais constatamos um prolongamento da adolescência, toda uma geração de adultos jovens que não está conseguindo amadurecer. No entanto, amar e trabalhar, sair de casa, fazer parcerias e escolher uma maneira de ser autônomo é um desafio que enfrentam com dificuldade, nem sempre com essa placidez que aqueles termos pejorativos evocam. A geração mimimi está sofrendo de verdade.  Para Freud o trabalho pode “tornar possível o uso de inclinações pré-eexistentes, de impulsos pulsionais” a serviço da realização pessoal e da vida em comunidade. Winnicott diz: “se o que se pretende é que a vida instintual tenha liberdade de expressão...” haveria um equilíbrio que tem que ser obtido sempre de novo, em cada fase: “considerem um médico e suas necessidades. Privem-no de seu trabalho, e o que será dele? Ele necessita de seus pacientes e da oportunidade de usar suas aptidões, como qualquer outro profissional.”.

Privem o jovem adulto de usar suas aptidões… o que será dele?

Para estes jovens, estamos falhando em ser o ambiente que permite a realização: há os trabalhos criativos, e há os ofícios insanamente alienantes, e aqui eu não estou falando da alienação de Marx; eu estou falando da alienação do verdadeiro self. A morte psíquica é um desfecho possível, e quem viu o filme Arábia (Afonso Uchoa e João Dumas-2017) se entristeceu com a história do Cristiano, que escreve um diário, se apaixona, mas no final sucumbe, vira “coisa”, deixa de sonhar.

Francis sonha. E podemos sonhar este filme, como nos propõe Nino Ferro: Francis e seus amigos representando, cada um, uma parte do seu self (como no enredo de um sonho ou de uma sessão). O filme é uma fábula moderna sobre as vicissitudes da bailarina meio gauche, desengonçada, Francis, que com 27 anos enfrenta dificuldades para manter-se economicamente. Não  selecionada para o espetáculo de natal, ainda é uma adolescente: tem sonhos grandiosos de realizar-se como artista,  mas  não encontra reconhecimento no trabalho.Também não se acerta com o namorado :  “sou alta demais para casar” , e fala de si mesma  ” eu ainda não sou uma pessoa real, de verdade” . Da dificuldade de passar pela fase da adolescência diz ” sou uma pessoa que tem dificuldade em deixar os lugares” quando se demora no camarim, tentando organizar suas coisas após um ensaio, quando todos já foram embora.

 

Em várias de suas falas e no enquadramento do filme, quando dança, por exemplo, partes de seu corpo são deixadas fora da cena, e diz de si ” Nunca consigo saber como fiz meus machucados”. Esse corpo grandão e que escapa do esquema é tão próprio da adolescência, período de crescimento rápido, em que o corpo passa na frente e a mente corre atrás, atabalhoadamente, tentando dar conta do recado! Francis dança, mas é mesmo meio desastrada, como uma adolescente que cresceu rápido demais. Quando Sophie,  melhor amiga,  que pode ser sonhada como o seu duplo, de quem   diz “somos a mesma pessoa, com cabelos diferentes”, vai embora, inaugura-se  em Francis um período de solidão e busca de sentido,  marcado pela instabilidade: constantes mudanças de endereço  e viagens – a fuga para Paris, o retorno à universidade, à casa dos pais.  Outros personagens que vão aparecendo, todos na casa dos 30,e parecem encarnar os falsos-selves que Francis vai rejeitando em sua busca por autonomia e realização; os jovens ricos dependentes dos pais,  artistas que  nada produzem, a colega da companhia de dança que a acolhe em sua casa,  mas não sabe brincar. Francis, perto dos 30 e temendo parecer mais velha ( pois não se sente adulta), parece ser a pessoa mais desajustada, mas na verdade  é aquela que mais traz a marca da autenticidade e da alegria. Nem sempre estar bem ajustado significa saúde mental…se isso se faz às custas do estrangulamento do gesto espontâneo.

Podemos entender o tempo do filme como o tempo da adolescência,  tempo de estar sempre um pouco à deriva, sem respostas, de inquietude. Mas também tempo de rejeitar as falsas soluções. O que nós “adultos” ( rssss) gostamos de chamar de preguiça ou rebeldia ou aborrescência. ( É que a gente gosta de esquecer que já sentiu isso um dia – e vai sentir de novo: na menopausa, na hora de ter o ninho vazio, ao se aposentar, ao fazer o implante dentário, ao envelhecer…).

A cura da adolescência é a passagem do tempo. ” nos diz  Winnicott. Nós, terapeutas, vivemos com Francis, como expectadores, este marasmo que caracteriza tantos  momentos da análise dos adolescentes.

Enfim, nossa heroína consegue fazer a sua  passagem. No final do filme, tem a oferta de um trabalho de secretária ( aceito com  relutância), e se  reconcilia com a amiga que regressa do outro lado do mundo  ( simbolizando a integração dela mesma). Por fim alcançada alguma estabilidade,  inicia o trabalho como coreógrafa, inventando uma dança. Ela assim descreve sua coreografia       “gosto das coisas que parecem erradas”.

Três cenas finais indicam a elaboração da passagem da adolescência em Francis, de maneira muito poética. Na primeira,  orienta os bailarinos que vão ao palco encenar sua coreografia, mostrando a capacidade de estar na coordenação de um projeto original, autoral: a capacidade de trabalhar criativamente. Na segunda, o belo encontro de olhares de Sophie e Francis, ao fim da peça, que pode ser visto como o olhar amoroso, e também o espelho, o reconhecimento no olhar do outro, tão buscado pelo artista. E, enfim, a adequação ao princípio de realidade quando finalmente tem uma casa que é sua, e precisa cortar um pedaço de seu nome para que ele possa caber no  espaço da caixa de correio. É a aceitação da castração, como limite-borda definidora, parte do amadurecimento. Como nos diz Winnicott; “Ser, antes de fazer”. “O ser tem de se desenvolver antes do fazer…  finalmente a criança domina até mesmo os instintos sem a perda da identidade do self”. O nome comprido que pode ser cortado agora é Francis amadurecida, ajustando-se, sem deixar sua dança, sem perder a felicidade, o senso de identidade e a capacidade criativa. De uma forma dialética, e poética, o fazer também alimenta o Ser; assim acontece com Francis, que amadurece tarde, mas no seu próprio tempo.

para meu sobrinho, Thales Augusto.

 

O Objeto Subjetivo à luz do filme ¨1945¨: por Diana Goldberg

O Objeto Subjetivo à luz do filme ¨1945¨

O filme de título 1945, se passa em uma pequena cidade/ aldeia no interior da Hungria, quando a Segunda Guerra recém terminou. Dois judeus chegam de trem a essa cidade carregando 2 baús, contratam um charreteiro para que possam transportá-los e iniciam sua caminhada atravessando a cidade.

Impressionante a sensibilidade e sutileza do diretor que, de forma extremamente sucinta e contida, consegue comunicar os inúmeros dramas que são mobilizados e despertados pela chegada dos dois homens, por meio dos quais o espectador vai depreendendo e se dando conta. Nada é claramente explicitado e mostrado, o que vai se revelando a cada momento é a vivência emocional e a estrutura de personalidade de cada habitante frente à chegada desses dois judeus que nada falam, nada fazem, apenas seguem caminhando.

 

Os sentimentos que são despertados nos distintos personagens revelam seu caráter.

O primeiro a se alarmar com a chegada dos desconhecidos é o chefe da estação, que rapidamente espalha a notícia a quantos moradores seja possível. Primeiramente, a um homem rico e poderoso na cidade, proprietário da farmácia, que está envolvido com os preparativos do casamento do filho que aconteceria naquele dia. Quem teria mandado aqueles dois judeus até lá? E assim a história se desvela, através das reações emocionais de cada habitante que projeta seus fantasmas.  Se constrói dessa forma o enredo do filme através dos sentimentos de culpa, sentimentos persecutórios, de negação, que os personagens expressam. Entendemos que os judeus que ali viviam antes da guerra foram levados para os campos de concentração, alguns traídos por seus melhores amigos. Após isso, os gentios que permanecem, tomam de forma ilícita suas casas e bens.

Cria-se o caos e o pânico entre os habitantes:  O Poderoso, muito nervoso e preocupado, havia se apoderado da casa e dos bens do melhor amigo, ao qual havia traído, e passa a demonstrar um comportamento psicopático de negação de seu ato, revelado pela mulher deprimida, a qual ele trata como doente mental. Esse mesmo homem destrata e humilha o filho, que não se comporta da mesma maneira autoritária e prepotente. Outro personagem, tomado pela culpa e desespero de ter se apropriado do que não era seu, querendo devolver o que não lhe cabe de direito, e sendo impedido, não suporta a angústia e se suicida.

Assim, temos uma rica oportunidade de constatar as teorias psicanalíticas segundo a luz de pelo menos dois autores distintos: Donald Winnicott, com sua Teoria do Objeto Subjetivo[1], e Freud, com o conceito de Projeção, assimilado e muito presente na obra de Melanie Klein.

Os dois judeus que ali chegam nada dizem, nada fazem, a não ser seguir caminhando e olhando ao redor, até chegarem ao cemitério judaico. Quando interpelados pelo Sr. Poderoso, o que queriam ali, respondem: ¨Viemos a um enterro¨; de quem pergunta o Sr. Poderoso; ¨Do que restou de nossos mortos¨; e assim como chegam, se vão. Toda a história é contada por meio do que a chegada desses dois senhores desperta nos moradores da cidade, pelos sentimentos projetados de culpa, medos persecutórios de descoberta e punição, negação maníaca de que seus comportamentos de apropriação indevida foram absolutamente lícitos, ou porque necessitavam, ou porque tinham escrituras que, na verdade, foram forjadas e falsas.

Além dos sentimentos despertados pela presença dos dois senhores, a situação tensa que se cria na cidade faz com que outras situações emocionais entre os moradores apareçam, revelando de forma contundente a natureza humana com o que tem de mais violento:  ódios, raivas, traições, interesses, inveja e ciúmes. A personagem mais lúcida é justamente a mulher melancólica, deprimida, que para aliviar seu intenso sofrimento faz uso de éter. Aquele que seria o mais íntegro só encontra saída partindo daquele lugar, justamente no mesmo trem em que partem os dois judeus, que não vieram a mando de ninguém, para reivindicar nada, cobrar nada, apenas para fazerem um enterro simbólico dos que já morreram.

[1] Conceito de objeto Subjetivo:  Para Winnicott, o ser humano não nasce do ponto de vista psíquico, ele vai se constituindo no olhar da mãe. Como o ser humano nasce numa condição de dependência absoluta e, nesse início, o bebê não sabe que é separado e diferente da mãe, como diz Winnicott: ¨o bebê é o seio¨, é importante que nesse início a mãe possa sustentar essa ilusão de onipotência, sendo essa uma mãe suficientemente boa que se adapta ativamente às necessidades do bebê, e assim sustenta a ilusão de que o bebê cria o seio. Esse conceito é central porque se refere a um aspecto essencial do desenvolvimento emocional que é a experiência da realidade subjetiva. A realidade subjetiva é a condição em que vive o bebê no início da vida e é através dessa condição que se dá a única possibilidade de percepção e apreensão do mundo.