Wanderlust- a busca do objeto transformacional
Durante este período de pandemia procuramos escrever sobre diversos assuntos e não nos ater somente ao vivenciado pelo isolamento social. Refletindo sobre ele, sabemos que neste final de ano as famílias estão pesarosas por não poderem festejar, reunindo-se em grupos menores e temendo o contágio pelo coronavirus. Levaremos um tempo para compreender todo o alcance desta distopia . Trata-se de um momento de deprivação, segundo a visão winnicottiana, pois perdemos algo que tínhamos vivenciado anteriormente: a liberdade de ir e vir, abraçar nossos amigos, ficar perto sem a preocupação de estar espalhando desavisadamente um vírus que pode ser fatal.
Nosso grupo, habituado a reuniões calorosas e regadas a comes e bebes, passou a se reunir por zoom e usar um tempo do espaço de estudo para compartilhar experiências e apoiar-se mutuamente. A possibilidade de estar on-line abriu mais um braço no espaço potencial que pôde ser compartihado e usado para pensar, sonhar e brincar.
Também nos surpreendemos com as possibilidades dos atendimentos virtuais, que consideramos uma adaptação do setting para fazer frente à limitação que a pandemia nos trouxe neste ano . Assim como o enquadre analítico está dentro da mente do analista, também os modos de atender podem se flexibilizar e percebemos como nunca que o espaço potencial acontece mesmo em condições desfavoráveis, bastando para que ele ocorra o encontro e a capacidade de brincar daqueles que se envolvem e se des-envolvem por meio deste encontro.
Neste momento difícil, tivemos de exercitar a nossa capacidade criativa.
Ficou melhor na pandemia quem pôde vivenciar, no início da vida, a experiência da transicionalidade. Para Winnicott, o objeto transicional tem a função de permitir que a separação entre a mãe e o bebê ocorra de um modo positivo , saudável. É algo que o bebê usa como sua primeira posse não-eu, que pode estar no lugar da mãe ausente, e é ao mesmo tempo parte da realidade interna e externa do bebê. Dele deriva o faz-de-conta, o brincar, a possibilidade de ilusão… “O objeto transicional abre espaço para o processo de aceitação da diferença e da similaridade”- nos diz Winnicott em seu livro ” O Brincar e a Realidade”. Ser criativo na pandemia e poder lidar com a deprivação sem enlouquecer ou adoecer dependeu de podermos criar espaços de transicionalidade para lidar com a solidão, o medo e a finitude.
O autor americano Cristopher Bollas, leitor da obra de Winnicott, debruçou-se sobre o conceito de objeto transicional e formulou uma nova idéia : a idéia de objeto transformacional. Para ele, a experiência com o objeto transformacional ocorre ainda anteriormente aos fenômenos transicionais, quando o bebê ainda não se percebe separado de sua mãe. Ele é buscado pela vida toda como aquele objeto que traz ao Self a experiência de unidade, de ser UM com o objeto. O primeiro objeto transformacional é a mãe, que fornece ao bebê, de maneira instintiva, “experiências as quais estão em sintonia com o idioma dele e que, portanto podem provocar uma transformação em seu estado de Self”, diz Sarah Nettleton. Ao crescer, buscamos repetir esta experiência vivida inicialmente com a mãe, buscando objetos que nos traduzam e ao mesmo tempo nos transformem. Neste caso os objetos são prolongamentos de nossa realidade interna.
Como não falar, neste tempo de isolamento e limitação dos deslocamentos físicos, da vontade de viajar, de conhecer lugares novos, de poder encontrar objetos no mundo que nos possam maravilhar e tirar da experiência cotidiana ? Muitas vezes buscamos nas viagens e nos nossos sonhos com lugares distantes a experiência transformacional. Wanderlust, desejo ardente de viajar, pode ser lido também como o anseio pela revivescência de uma experiência transformacional e estética, a busca da novidade que nos traz para mais perto de nós mesmos.
Segundo o site “Significados” ( https://www.significados.com.br ) “wanderlust é uma palavra em alemão que pode ser traduzida como um desejo intrínseco e profundo de viajar.
Ela é formada da junção de outras duas outras palavras alemãs. Wander, que encontra origem no verbo wandern e corresponde à prática da caminhada ou trilha. E lust, que quer dizer luxúria, ou mais que um desejo, uma vontade profunda.
O sentimento representado por wanderlust é de querer viajar pelo mundo mais do que qualquer outra coisa. É de não sentir-se confortável quando se está estável em um local. É um interesse genuíno por conhecer novas culturas e explorar ambientes ainda não conhecidos.
Diz-se do wanderlust que quanto mais se alimenta esta ânsia, mais ela cresce. Mais lugares surgem no mapa para visitar, e mais inquieta por mudar de lugar torna-se a pessoa.”
Wanderlust pode ser também uma saudade de lugares imaginados , idílicos, onde nunca estivemos antes. Como dizia Renato Russo ” meu vício de insistir nessa saudade que eu sinto de tudo que eu ainda não vi”. Num nível profundo, uma busca de natureza estética, e até mística, que nos impele a buscar o objeto transformacional nos lugares, nas obras de arte, nas experiências e nas pessoas.
A possibilidade de trabalho virtual abriu para alguns a chance de deslocamentos outrora inimaginados, enquanto que outros, mais tementes do contágio, ou limitados por outras razões, viveram 2020 dentro de casa e podendo viajar apenas na sua imaginação. Acostumados a viajar e sonhar com viajens, levamos um grande susto com a pandemia que fechou fronteiras e aumentou a desconfiança entre as pessoas, sendo o medo do contágio uma nova roupagem para o medo do estrangeiro que sempre esteve presente em nossas vidas. Um vírus que veio da China para nos lembrar que não somos tão livres assim, que não somos imbatíveis.
Wanderlust, vontade de viajar, tivemos que lidar com a necessidade de ficar em casa e buscar as experiências transformacionais de outra maneira… Que vontade de sair de casa, livremente, encontrar pessoas e viajar! Mas precisamos esperar ainda mais um pouco, e ousar viajar para dentro de nós mesmos, sonhar com o presente e redescobrir no aqui e no agora a beleza de viver.