Abrir a possibilidade para novas narrativas: um desafio. por Angela Hiluey.

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Abrir a possibilidade para novas narrativas: um desafio. Hiluey, A.

ABRIR A POSSIBILIDADE PARA NOVAS NARRATIVAS: UM DESAFIO

Angela Hiluey

RESUMO

Uma diversidade de narrativas pode enriquecer a vida humana, dada a possibilidade de atribuir significado à experiência relacional desde a vida intrauterina até a morte, postula Linares (2003; 2014). Por outro lado, conta-se com a resistência do ser humano a rever suas visões. Dada tal resistência, neste trabalho tem-se como objetivo mostrar uma ferramenta para auxiliar na construção de novas narrativas: a atividade artística-lúdica no atendimento a casais e famílias sob a ótica da abordagem sistêmico-integrativa. Tal ferramenta tanto permite que o ser humano, sem se dar conta, expresse sua angústia, quanto permite ser uma intervenção terapêutica propriamente dita. Através de um caso clínico, será ilustrado o planejamento da atividade lúdica; o uso da atividade proposta; e seus resultados. Constatou-se que novas percepções puderam ser referidas, e as mesmas permitiram a construção de novas narrativas familiares.

Palavras-chave: narrativas familiares; atividade lúdica; atendimento a casais e famílias; abordagem sistêmico-integrativa.

OPEN THE POSSIBILITY FOR NEW NARRATIVES: A CHALLENGE ABSTRACTS

A variety of narratives can enrich human life, given the possibility of assigning meaning to the relational experience from intrauterine life until the death, postulates Linares (2003, 2014). On the other hand, there is the resistance of the human being to revise its visions. Given this resistance, this work aims to present a tool to assist in the construction of new narratives: the artistic-ludic activity to care for couples and families from the perspective of the systemic-integrative approach. Such a tool allows the human being, without realizing it, to expresses his anguish, as it allows to be a therapeutic intervention properly said. Through a clinical case, will be illustrated the planning of the ludic activity; the use of the proposed activity; and their results. It was observed that new perceptions could be referred to, and they allowed the construction of new family narratives.

Keywords: family narratives; ludic activity; care for couples and families; systemic- integrative approach.

ABRIR LA POSIBILIDAD PARA NUEVAS NARRATIVAS: UN DESAFIO RESÚMEN

Una diversidad de narrativas puede enriquecer la vida humana, dada la posibilidad de atribuir significado a la experiencia relacional desde la vida intrauterina hasta la muerte, postula Linares (2003; 2015). Por otro lado, se cuenta con la resistencia del ser humano a revisar sus visiones. Dada tal resistencia, en este trabajo se tiene como objetivo mostrar una herramienta para auxiliar en la construcción de nuevas narrativas: la actividad artística-lúdica en la atención a parejas y familias bajo la óptica del abordaje sistémico-integrativa. Tal herramienta permite tanto que el ser humano, sin darse cuenta, expresa su angustia, como permite ser una intervencion terapeutica propiamente dicha. A través de un caso clínico, se ilustra la planificación de la actividad lúdica; el uso de la actividad propuesta; y sus resultados. Se constató que nuevas percepciones pudieron ser referidas, y las mismas permitieron la construcción de nuevas narrativas familiares.

Palabras clave: narrativas familiares; actividad lúdica; atención a parejas y familias; enfoque sistémico-integrativo.

“O mundo não é o que penso, mas o que vivo, estou aberto ao mundo, comunico-me indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é inesgotável.”

(Merleau-Ponty, 1971, p.14)

Esta epígrafe nos oferece a oportunidade de nos apercebermos que enquanto tivermos vida teremos a possibilidade de aprender e assim poderemos tecer diferentes narrativas individuais e familiares.

Tais possibilidades podem nos estimular a enfrentar os desafios com os quais nos defrontamos na prática clínica. Temos uma vasta bibliografia na terapia familiar e em outros campos do conhecimento que são o nosso alicerce para seguirmos em frente. Tais pressupostos poderão auxiliar a autora a apresentar o objetivo desse trabalho.

Linares (2014) nos abre uma primeira porta para enfrentarmos tal desafio quando se refere ao sentido de sua expressão: Terapia Familiar Ultramoderna. O autor explicita que tem com essa terminologia o objetivo de estimular a abertura das janelas do território sistêmico para ares novos para que se alimente com aquilo que há de muito bom já presente na tradição psicoterapêutica.

No entanto estar aberto ao mundo, conforme a epígrafe permite vislumbrar, não é necessariamente uma possibilidade tão natural, e as palavras de Bion (1992, p.9-10) nos confirmam tal vislumbre:

(…) Mas todos nós odiamos a tempestade que implica o ato de rever nossas visões; é muito perturbador pensar que poderíamos chegar a mudar de parceiro, ou profissão, ou país, ou sociedade; assim, a pressão para dizer “daqui não passo” estabelece uma resistência ao aprendizado (…). (BION, 1992, p 9-10).

A presença da abordagem sistêmico integrativa por outro lado materializa o incentivo de Linares (2014) propiciando a integração das múltiplas escolas sistêmicas às contribuições de outras abordagens, dentre elas a psicanalítica, bem como de abordagens advindas de outros campos do conhecimento. Tal integração é fruto de uma postura aberta que favorece o nosso enriquecimento para nos ocuparmos das situações as quais a prática clínica nos apresenta, onde se constata que a mudança não é algo tão simples de ser conseguido.

Selvini, Sorrentino, Cirillo (2016) utilizam o termo pensamento sistêmico, complexo e integrado e, assim, revelam estarem intervindo, segundo uma postura integrativa.

Linares (2003; 2015) por sua vez ao escrever que narrativa é a atribuição de significado à experiência relacional, que ocorrerá desde a vida intrauterina até a morte, nos

mostra quão rica pode ser nossa vida com uma diversidade de narrativas. Essa narrativa, segundo Linares, é o ato de descrever a si mesmo e ao que lhe acontece, dando a isso uma coerência, o que por sua vez é cultural e pessoal.

Laso (2017) pode auxiliar a especificar o que favorece as mudanças. Laso (2017) discorre sobre como vem levando em conta e intervindo sobre o aspecto emocional na terapia familiar e de casal. Esse autor destaca dois princípios fundamentais para viabilizar a mudança emocional: (1) compreender o lugar onde se está e (2) ver ou ao menos vislumbrar o lugar para onde se dirigir. Compreensão e visualização são conquistas advindas da experiência emocional desses grupos, segundo o autor.

As considerações dos autores citados permitem evidenciar que o objetivo desse trabalho é mostrar uma ferramenta para auxiliar a construir novas narrativas dadas as dificuldades implicadas nesse processo. Tal ferramenta é constituída pelas expressões artísticas e o brincar, atividades descritas em outros campos do conhecimento e/ou modelos teóricos que podem ser integradas ao atendimento de casais e famílias.

Tornam-se importantes ferramentas uma vez que a possibilidade de escrever novas histórias é inesgotável. Por outro lado, já que sabemos que reavaliar nossas posições é assustador, que precisamos nos dar conta de nosso lugar na relação (o que ainda implica outras gerações) bem como visualizar novos caminhos antes de seguir adiante podemos perceber a complexidade do processo. Sendo assim, ter novas ferramentas que possam abrir possibilidades para novas narrativas pode nos ser útil na prática clínica.

Pereira (2010) ao discorrer sobre o tipo de intervenção para promover a Resiliência Familiar mostra que a mesma deve permitir que se reconheça na narrativa familiar o sofrimento, que dê sentido ao ocorrido e um significado que possa ser aceito por todos os membros da família. Ou seja, nesse contexto continente como recomenda Pereira (2010) uma tempestade emocional como postula Bion está vigente precisando ser nomeada. Esta afirmação permite o reforço da tese sobre a relevância de mecanismos para abrir possibilidades para construção de novas narrativas.

Nesse trabalho o objetivo é apresentar a atividade artística- lúdica como útil ferramenta para a terapia de casal e família ao mesmo tempo em que evidenciar tanto a relevância como o que está implicado no planejamento da mesma pelo terapeuta para se favorecer a possibilidade de conversar sobre as dificuldades vividas.

Fazem-se, então, necessárias algumas considerações sobre as possibilidades desse instrumental.

Kenzler (1995) escreveu que o ser humano se defende das emoções e para tanto utiliza mecanismos de defesa. Sendo assim, segundo Kenzler (1995) o uso de técnicas em que o ser humano expressa sua angústia, sem perceber o que está fazendo pode ser significativo. Aqui temos as artes e o brincar.

Fernandes (2003) por sua vez especifica diferentes linguagens que transmitem a informação tais como: as atitudes, a mímica, a palavra, a escrita, o desenho. A arte, segundo Fernandes (2003) em suas cores e sons, melodias, ritmos, compõe e expressa.

Dentre essas diferentes maneiras de comunicação está o brincar como escreve Winnicott (1971).

Green (2013) completa escrevendo que na realidade externa existe horror demais: guerra, delinquência, catástrofes naturais, epidemias, desemprego e terrorismo nesse nosso mundo.

Grenn (2013) pergunta-se como suportaríamos todos os traumas causados pela realidade sem o brincar onde no caso das crianças todos esses temas se encontram.

Andrade (1995) escreveu que nas diversas expressões artísticas o homem se coloca diante da realidade, ao expressar por meio de uma simbolização (a obra de arte) como estrutura seu mundo interior. A arte, pode, também, segundo ele, ser terapêutica, pois permite acessar a emoção tanto do criador como no público participante. O criador e o produto da criação são o porta-voz de como o homem aliou as sensações e percepções frutos de sua experiência pessoal e relacional. Através da arte forças oponentes podem ser integradas graças a sua qualidade integrativa.

Hiluey (2004; 2007; 2008) no contexto da investigação com alunos-médicos e famílias pode constatar a relevância de tal ferramenta para favorecer tanto o despontar do que angustia como para integrar percepções e informações. Novos caminhos podiam ser vislumbrados.

Para tanto uma ilustração prática parece ser oportuna e aqui se segue.

Pode-se constatar que “enganar” era o termo que melhor exprimia aquilo que vivia a Família Silva com seu filho de 11 anos. Essa vivência de ser enganado, respaldada por situações concretas gerava um sentimento de falta de confiança dos pais para com seu filho. A terapeuta tinha dados que lhe permitiam pensar que para os pais se aperceberem de seu filho não era algo simples. Eles possuíam alguns princípios e formas de educar filhos alinhados com as gerações anteriores e sua própria vivência enquanto filhos para os guiarem. Isso interferia significativamente impedindo que pudesse circular reconhecimento, valorização e carinho entre eles, o que favoreceria a possibilidade de seu filho ter uma vivência de ser amado, como descreveu Linares (2014).

A terapeuta optou por algumas técnicas expressivas as quais permitiram que um espaço fosse aberto para gerar novas narrativas que propiciaram a Família Silva experimentar um clima de confiança. Algumas das técnicas foram:

1) genograma lúdico que favoreceu que conversassem sobre as características das figuras de animais escolhidas para representar alguns membros da família o que gerou novas ideias sobre o relacionamento entre eles. Por exemplo o leopardo como um animal solitário; o hipopótamo como um animal altamente violento apesar de seus olhos doces. O diálogo possibilitou o reconhecimento da dinâmica estabelecida entre eles.

2) cada um escolher miniaturas em madeira de personagens, pessoas, animais, aves, objetos. A seguir se propunha conseguir as miniaturas que quisesse solicitando ao outro. Alguns dos temas conversados nesse jogo foram: que percebiam que através de truques até mímicos se engana para conseguir o que se quer; se aperceberam que tem coisas que não se quer dar; quem é enganado fica triste e com raiva.

3) leitura de conto infantil. Por exemplo: A toupeira que queria ver o cometa, de Rubem Alves. Onde se pode conversar sobre a prisão decorrente das próprias convicções que impedem de ver o que está diante dos olhos.

4) Ouvir a música: “Apenas tenha certeza que nunca está sozinho” (93 Million Miles). Solicitou-se que com recursos não verbais mostrassem como lhes chegou essa música. Pode-se conversar tanto sobre o que cada um esperava dos outros membros da familia como foram constatando o que lhes era possivel.

Pode-se sinalizar que a confiança parecia estar vindo a ser uma experiência possível entre eles.

Em sessões com o casal parental, o casal pode rever suas convicções sobre como

deveriam se portar como pais, versus sobre o que lhes era possível ser. Também puderam se aperceber de novas características do filho, até então não percebidas. Diziam eles: como a toupeira (referindo-se à personagem do livro infantil).

E assim uma nova narrativa despontou. Nessa nova história pais e filho lutavam focando três instâncias: a do querer, poder e dever enquanto iam se transformando, em família. Não estavam sozinhos, percebiam que tinham com quem contar, podiam confiar.

Comentários: a atividade artística lúdica
1) permite que se trate de temas penosos com seriedade, firmeza e humor, sem

necessariamente deixar de chorar e/ou mesmo ficar bravo;
2) o terapeuta deve propor atividades que no seu entender propiciarão que surjam os

temas que segundo sua percepção estão circulando no grupo familiar;
3) deve-se levar em conta as características das pessoas da família para escolher a atividade lúdica que possa lhes ser possível. Nem todas as pessoas se dispõe a

brincar, mas dependendo da brincadeira até podem se dispor;
4) aqueles terapeutas que tenham uma experiência no trabalho com crianças e adolescentes, em especial em ludoterapia, terão um conhecimento relevante para

utilizarem essa ferramenta no atendimento de casais e famílias.
5) o terapeuta deve ser significativamente participativo e utilizar seus conhecimentos teórico-técnicos em terapia familiar para fazer alinhamentos ao longo da sessão a

partir das novas informações e percepções circulantes.

No entanto mesmo estimulados por novas ideias vale lembrarmo-nos da mensagem de Antonio Machado: Caminhante, não há caminho. O caminho se faz ao caminhar.

REFERENCIAS

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Abrir a possibilidade para novas narrativas: um desafio. Hiluey, A.

Angela Hiluey – Psicóloga; Doutora em Educação pela FE/USP; Pós-Doutora em Terapia Familiar pela Universidade Autônoma de Barcelona/Espanha; Diretora e Docente do CEF-Centro de Estudos da Família Itupeva – escola associada a RELATES-Rede Européia e Latino-americana de Escolas Sistêmicas; Member of the EFTA – European Family Therapy Association; membro titular da ABRATEF e da APTF. angelahiluey@yahoo.com.br

As Aventuras do Avião Vermelho: Um Sonho de Potência e Reparação

Foto da copa do livro  de Erico Verissimo editada pela Companhia das letrinhas- Ilustrações de Eva Furnari

Artigo publicado e apresentado no II Colóquio de Psicanálise com Crianças  realizado no instituto Sedes Sapientiae em  10 e 11 outubro de 2014
Onde está o pai? Desafios da atualidade na clínica com Crianças
As Aventuras do Avião Vermelho: Um Sonho de Potência e Reparação 
Por Arianne Monteiro Melo Angelelli

Resumo – Por meio de uma análise do texto de Erico Veríssimo, mergulhamos nas fantasias inconscientes de uma criança cujo comportamento é agitado e desafiador. O pai deste menino o presenteia com um livro na tentativa de auxilia-lo em suas dificuldades, e através da vivência de um sonho com os elementos da história, a persecutoriedade e voracidade desta criança encontram um canal para a simbolização. A hiperatividade nas crianças é um sintoma pouco específico e somente a observação aprofundada pode auxiliar na compreensão das raízes do comportamento; sendo possível que a agitação configure defesa contra ansiedades depressivas decorrentes de dificuldades iniciais da vida. O pai, mais do que aquele que introduz a “lei” e insere a criança na triangulação edípica, também pode ser aquele que fornece o holding necessário para o desenvolvimento. Palavras-chave: hiperatividade, voracidade, holding, pai

Como dizia Freud, “é muito difícil formar uma opinião sobre se, e em que grau, os homens de épocas anteriores se sentiram mais felizes»(1), e isso é verdadeiro quando pensamos sobre as crianças de hoje. Fala-se muito sobre o declínio do poder paterno (2), e o afrouxamento nos laços humanos, nestes nossos tempos líquidos (3) : a família em crise. Mas quando recebemos um certo tipo de crianças, aquelas agitadas, hiperativas, sem limites, as dicotomias que separam o paterno e materno, a mente e o cérebro, não parecem trazer ajuda. O que está mesmo acontecendo com as crianças da pós-modernidade? Estão sem Pai, são porta vozes de doença social e familiar, da falta de limites generalizada, do furo do pacto edípico (4)? Ou estão sem Mãe, na medida em que seu comportamento disfuncional expressa deprivações, perdas precoces? Seriam estas crianças: neurologicamente deficitárias, incapazes da atenção sem ajuda de medicamentos ou ansiosas e deprimidas, encontrando na agitação equivalentes maníacos de defesa? Na aparente desorganização familiar atual, em que antigos papéis se intercambiam, há muita instabilidade, mas a chance de trazer o pai para mais perto, com suas valências femininas e masculinas, pode ser um dos ganhos dos novos tempos. A proposta deste trabalho é uma leitura reflexiva sobre um conto de Érico Veríssimo, “ As Aventuras do Avião Vermelho”(5). Uma criança com problemas de comportamento ganha do pai um livro e um brinquedo que a ajudam a elaborar uma rica fantasia onde ansiedades são elaboradas. O conto pode ser dividido em três partes. Na primeira, o pai interage com o filho e apresenta a ele os objetos de que fará uso na sua fantasia, ou sonho; um livro de histórias, um avião de brinquedo e uma lupa de diminuir, usada para que o menino possa encolher, entrar dentro do avião e partir em viagem. Na segunda parte, ocorre a aventura: o menino e dois companheiros, voando no avião de brinquedo, pousam na lua feita de gelo, e a seguir iniciam uma série de viagens, perseguições e fugas: permeadas pela ameaça constante de serem devorados: pela cobra, pelo porco e pelos canibais que encontram pelo caminho. Na terceira parte, dois acidentes: o avião cai no mar e logo depois cai de novo por causa de uma ventania, sofrendo um tombo “horrível” (o nascimento?) quando passa pela chaminé e desperta no escritório do pai, onde precisa crescer novamente. Vejamos o que nos diz a história: “ Chamava-se Fernando. Era um menino muito gordo. Gordo e travesso. Travesso e brigão. Um dia papai viu Fernando sentado num canto da varanda e perguntou: “ Meu filho, por que é que tu és tão travesso, brigão, malcriado? “ – Porque sou valente!” – rosnou como um leão que está começando a ficar zangado.” Compreendendo quanto de tormenta e medo existe na valentia de Fernando, o pai escolhe o livro certo, a história do “Capitão Tormenta” , e presenteia o menino, expressando seu desejo de que haja uma mudança no filho. O herói, com quem Fernando se identifica imediatamente, é aviador e viaja pelo mundo enfrentando todo o tipo de perigos. Então o menino pede ao pai também um avião, e ganha o aviãozinho de brinquedo. Ao trazer para o filho a escuta, a compreensão, livro e brinquedo, o pai exerce uma função dupla. Ele é aquele que traz a palavra, o limite. Mas também fornece holding e apresenta ao menino o objeto que será de uso transicional, senão vejamos: Fernando, com o avião, “ foi para o quarto e começou a brincar. brincou muito tempo”. O pai também nomeia a “Tormenta” que é o filho: tormenta em casa, a fazer estripulias, tormenta que agita o ambiente, como uma tempestade, e mais além, criança atormentada, amedrontada, que se diz valente (6). E a interação entre pai e filho continua. Fernando conta ao pai que quer viajar como o capitão Tormenta. “– Papai – disse Fernandinho com voz tremida eu também tenho vontade de viajar de avião. – Pois sim, meu querido, quando ficares grande poderás entrar num avião. – Não, papai, eu acho que só posso entrar num avião quando ficar pequeno.” Enquanto o pai entende que o desejo do filho é ser grande, para poder penetrar no avião (sexualidade adulta ?), Fernando pensa em como ficar pequeno para pode entrar no avião de brinquedo , e ficar pequeno de novo é regredir, para retomar o desenvolvimento. Senão vejamos: “O pai … era engenheiro. tinha um escritório cheio de máquinas, réguas, compassos… – Como é o nome daquilo, pai? – Aquilo se chama lente. – Para que serve? – Para aumentar as coisas. – E aquela? – Aquela, ao invés de aumentar as coisas, diminui. “quando a gente bota esse vidro em cima duma coisa, essa coisa fica pequena, não fica? pois então vou botar esse vidro em cima de mim e vou ficando pequeno, pequeno, até poder entrar no avião.” Como a Alice de Lewis Carroll, Fernando ora é grande, ora pequeno, menino medroso que aterroriza os demais, mas a descoberta da lente do pai permite a formulação de uma ideia de relatividade, além da possibilidade, da oportunidade de regredir (colocar-se sob a lente de diminuir). Ele observa as coisas ficarem grandes ou pequenas sob as lentes, entende que não é adulto ainda. Mas para o menino, importa menos ser grande e ter um pênis como o do pai, já que o que ele precisa é voltar a ser o bebê que entra, ou é contido, pelo pai avião, para elaborar uma fantasia de cura. (7). Na segunda parte da história, já Capitão Tormenta, depois de ser reduzido ao tamanho do seu avião, Fernando viaja à Lua, e “lá tudo era de gelo”. O aspecto inóspito da lua é negado. O herói usa uma “casacão de pelo” e não sente o frio. (Uma referência à obesidade?). Descobre que na lua tudo acontece “ao contrário” mas não sente perplexidade, aproveita para tomar sorvete de graça, comendo estrelas ainda vivas: “O empregado tirou sorvetes de uma lata; depois espichou o braço, furou o teto da casa e apanhou lá no alto três estrelinhas, que soltaram gritos de susto.” Temos aí a infeliz combinação da mãe deprimida (Lua fria) com a criança voraz, que encontramos na clínica com frequência . Ainda incapaz de concernimento, o menino e o avião quase atropelam uma estrela ao partirem “A estrela, muito delicada, pediu desculpas…o avião voltou a cabeça para ela e botou a língua para fora. Que mal-educado!” Começa agora a segunda parte da viagem, passando por uma cidade esquisita, pela China e pela África, pelo encontro com um zepelim e o mergulho no mar. Nessa jornada, repetidas vezes a fantasia de devorar e ser devorado se corporifica: “De repente viram um monstro. Era uma cobra enorme. Preta e amarela. A cobra abriu a boca…e segurou com os dentes o rabo do aparelho, que soltou um grito: – Ai! vou morrer envenenado!” Ou ainda: “de repente apareceu um porco gordo, abriu a boca e os engoliu.” E na África: “Desceram na África, mas foram muito sem sorte. Caíram bem no meio de uma aldeia de selvagens. Ficaram prisioneiros dentro de um porongo. O porongo era muito escuro. Os exploradores compreenderam que iam ser queimados.” Sempre salvos pelo avião vermelho, o menino e seus amigos são quase devorados por três vezes. Por fim passam a ser os devoradores: encontram um zepelim, feito de marmelada, chocolate… e começam a comê-lo. Então: “o comandante do dirigível estava naquele momento examinando a barriga do seu navio aéreo, que se queixava de dores muito fortes. Viu os aventureiros: – Piratas” Comeram um pedaço do meu zepelim!” Outra perseguição acontece, ocasionando a queda do avião no mar , quando se transforma num submarino. O surgimento de um clima depressivo introduz a passagem para a terceira parte do conto. “a água estava fria. ficaram muito assustados.” “e agora, o que vamos comer?” Mesmo depois da tempestade, de novo no céu, não demora muito para o avião cair outra vez: “e o avião vermelho foi arrastado para a terra.” “o tombo foi horrível”. E a catastrofe continua: caem dentro de uma chaminé, e dentro dela, se machucam: “o avião ficou com um olho preto. O ursinho perdeu muitos pelos…Fernandinho ficou com um galo na cabeça” Os machucados dos amigos na passagem pela chaminé podem ser interpretadas como reminiscências do trauma do nascimento, mas também como a falência das defesas maníacas, simbolizada pela queda, o frio, os machucados, o medo. Seria um momento depressivo que ocorre após o ataque sádico ao corpo da mãe, quando comem o zepelim? O medo do colapso já vivido? Pois aqui elementos semelhantes em sua forma e função, quais sejam: zepelim e porco, em cujas “barrigas” Fernando se aloja, primeiro engolido, e depois ativo devorador, além de representarem fantasias primitivas relativas ao engravidamento e ao nascer, correlacionam-se com a figura da Lua inicial, todas representativas do feminino e carregadas de ambivalência. Enfim, a figura do pai reaparece quando despertam contentes em seu escritório (mesmo que machucados pelo tombo): “– Agora precisamos crescer de novo!” O desfecho da aventura é a retomada da realidade, incluindo o sermão do pai que encontra o avião “espatifado” na lareira. Mas a criança, agora apaziguada, já de posse de novos recursos, não mais atua a angústia no comportamento; “ Fernandinho compreendeu tudo. Papai não sabia da aventura… quando a gente é pequeno, do tamanho de um dedo mindinho, cada dia dos homens vale cinco dos nossos. Foi uma aventura muito engraçada…Fernadinho até hoje fala nela” Neste conto, a profusão de elementos : lua fria, agua fria, perseguidores devoradores e a dinâmica maníaca da criança podem nos fazer supor alguma falha inicial dificultando a integração das ansiedades primitivas, de modo que apesar de ter havido desenvolvimento, permaneceu uma tendência à agitação, à dissociação , à voracidade e ao comportamento disruptivo, desafiador, expressão última da angústia e temor sentidos. A natureza maníaca da defesa esconde ansiedades depressivas: “arrastado para a terra. o tombo foi horrível”. Aqui vale o comentário de Winnicott “ as fantasias onipotentes não são tanto a realidade interna propriamente dita quanto uma defesa…nos tão frequentes livros de aventuras .. o autor…não tem consciência das ansiedades depressivas das quais fugiu. Sua vida foi cheia de incidentes e aventuras… baseado… na negação da sua realidade interna pessoal ” …(10) Podemos pensar o Capitão Tormenta como um menino a- atormentado pelo próprio sadismo oral projetado nos objetos (8). Gordo, travesso, e brigão, defende-se como pode das ansiedades depressivas e da mãe- morta, Lua “gelada”, que não acolhe(u). Quando o pai oferece livro (com as palavras certas), brinquedo e instrumentos, estes funcionam como um objeto criado-encontrado (9), seio que nutre e falo gerador de potência, elementos que o menino utiliza na construção de uma fantasia de cura (7), que é o re-nascimento. O pai da história apresenta vivacidade, ao lidar com o menino diretamente em suas questões edípicas, sob a lógica fálica, e tem boa capacidade feminina, ao se permitir penetrar por este filho (“papai, eu acho que só posso entrar num avião quando ficar pequeno”). É o holding paterno que propicia a Fernando a possibilidade de relaxar e brincar.
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8- 8-Klein, M (1996) Estágios iniciais do conflito edipiano. In: Amor, culpa e reparacão e outros trabalhos- 1921-1925. Trad. A. Cardoso Rio de janeiro: Imago
9- 9-Winnicott, D. W. (1975) Objetos transicionais e fenômenos transicionais (1951) In Da Pediatria à Psicanalise :obras escolhidas. Trad. Davi Bogomeletz. Rio de Janeiro: Imago, 2000.
10- 10- Winnicott, D.W ( 1975) A defesa maníaca ( 1935) in Da pediatria á psicanalise: obras escolhidas. Trad. Davi Bogomeletz. Rio de Janeiro: Imago, 2000.

A obra de Erico Verissimo foi transformada em animação em 2104 Frederico Pinto e José Maia

http://www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise_crianca/coloquio2014/images/Anais_IIIColoquio_2014.pdf

Palestra “Toxilogia e Alcoolismo nas Relações de Trabalho”- palestra ministrada po Katia Piroli

Benzinho: a nossa pietá brasileira.

Benzinho – A nossa pietá brasileira
Sobre a relação do homem com sua mãe, a nossa blogueira do Gesto Espontaneo , Cecilia Hirchzon escreve *:
“O homem, para ser “si mesmo” e para constituir a sua identidade masculina, terá de se separar desta Mulher, de quem dependeu totalmente. Já a mulher, para se constituir como tal, não precisa estabelecer necessariamente a separação – pode manter-se identificada com essa Mulher. Observamos, portanto, duas direções distintas: enquanto a mulher lida com a Mulher dentro de si através da identificação, o homem tem que se separar, tornar-se único, o que se constitui em uma urgência no desenvolvimento da sua identidade. A especificidade da identidade feminina caracteriza-se por ser geracional e infinita, isto é, podendo manter dentro de si três mulheres: o bebê menina, a mãe e a mãe da mãe. Essa condição possibilita à mulher o desempenho de diferentes funções sem violar a sua natureza. Pode ocupar posições diversas nas brincadeiras, onde ora é mãe, ora é filha, alternando papéis. Ou, ainda, na idade adulta, exercendo a sua feminilidade, ocupando o lugar de mãe e/ou mulher sedutora. Enquanto isso, o homem não se funde nessa linhagem – sua condição básica é a de ser um”.
No belíssimo Benzinho, de Gustavo Pizzi, que está em cartaz nos cinemas, o primogenito de Irene, mulher brasileira , mãe de quatro filhos, vai embora para a Alemanha a convite de uma universidade que está interessada no seu talento esportivo. O adolescente vibra enquanto a mãe se quebra, assustada com a partida súbita, fora de hora, do filho muito jovem. A história de Benzinho é o processo que se desencadeia com a chegada da noticia, suas idas e vindas , focado aqui no ponto de vista da mãe que vai tentando aceitar o momento que é de alegria e tristeza. Porque Irene é Pietá não vou contar aqui, para não dar um “spoiler” do filme. A interpretação de karine Teles é magistral. O amor materno aqui se desdobra em suas mais variadas possibilidades ( como diz a Adelia Prado, mulher é desdobrável) . A mãe suficiente boa, por sua saúde e sua capacidade de lidar com a perda e a separação, aparece na interpretação de Irene. Mãe suficientemente boa que se atrapalha, fica brava, dá chilique, chora, pira, respira, mas, enfim, ama. A gente fica apaixonada pela Irene. O longa foi escolhido como o filme brasileiro que vai disputar uma vaga entre os quatro finalistas ao Prêmio Goya de Melhor Filme Ibero-americano, considerado o Oscar espanhol.
E , para terminar, um poema, uma musica.

O gato andaluz*
(Rosa Alice Branco)
O meu filho caminha por aí. Já não sei
se é o Douro ou o Darro que lhe embala o sono.
Nem onde guardei as datas e o nome das ruas
ou se vou te encontrar logo à tardinha.
Deixei-me de saber e de pensar que sei.
Um gato arranha à minha porta a miar em andaluz.
Eu arranho a porta a dois dias daqui, duas horas
De avião. É proibido miar nos voos europeus.
Engulo a saliva do dia e assim se faz noite.
E não há gaivotas a gritar por mim. Por mim
estou eu à janela do avião. As malas
com que hei de dizer-te: cheguei. O teu abraço
como um rio qualquer onde corra água.
Esquecer o que ficou para trás e a língua que me fala.
Levar o copo à boca onde nasce a boca,
A fonte do quintal, a nascente do mar. O meu filho
Voa como se caminhasse descalço. Cruzamo-nos
no horizonte sobre a linha do rio onde deságua a luz.
E as palavras aquietam-se no seu nada.

( do livro Soletrar o dia, Ed escrituras, 2004)

* este artigo está postado em nosso blog na seção artigos e notícias ( “Os elementos masculino e feminino puro na clínica”).

La Vita in Comune- e seus homens imprudentemente poéticos.

“De vez em quando Deus me tira a poesia.

Olho pedra,

Vejo pedra mesmo.”

Adelia Prado

Em um certo momento do filme “la vita in comune” comecei a me perguntar se haveria uma final feliz , possível, para aqueles homens imprudentemente poéticos. Empresto aqui o título de uma outra obra* para falar de Filippo e os fratellos  Pati e Angiolino,  de sua amizade e de  sua inocência. Não deixa de ser engraçada a caricatura que a “vita in comune” faz da democracia, das mazelas da cidade parada no tempo que se chama Desperata**, e seus personagens.

A história é assim: Filippo é prefeito da cidade. Há pouco emprego, pouco progresso, e nas reuniões na câmara as criticas ao prefeito se tornam cada vez mais sérias. Querem construir perto do mar para atrair os turistas, mas Filippo gosta mesmo é de poesia, e vai ensinar literatura aos presos. Um deles é Pati, que se encanta e se transforma depois do contato com a poesia. Seu irmão, Angiolino, a principio se enraivece mas também se transforma por meio de um contato com o papa, que lhe diz para preservar a criação de Deus. A partir daí, a moda dos santos convertidos, ele que era um ladrão de galinhas, se regenera. Os três homens passam a compartilhar, poeticamente, e cada qual a sua maneira, um outro modo de vida. Aqui começa a utopia e o gosto levemente amargo da incompreensão -vai ficando mais clara a depressão de Filippo e a loucura dos irmãos. Porém o tema é tratado com leveza , com a poesia das imagens e da trilha sonora sempre presentes.

Os três Dons Quixotes encontram um doido que, a moda de Francisco de Assis, fala com os animais, e o acolhem. A imagem da arca de Noé aparece, com a utopia da paz entre os homens junto aos animais em harmonia e a terra-mãe protegida, cuidada. Algo como estar acolhendo o feminino de cada um.

Aparte os ( femin)ismos, acirrados nos nossos dias, e sem querer carregar bandeira; a película mostra a falta mesmo de poesia naquele mundo, onde pedra é pedra mesmo, onde falta espaço para o criar, lugar para o feminino. Este mundo masculino das coisas inanimadas e das relações robóticas, líquidas e utilitárias. Sem os objetos transicionais que dão sentido ao existir. Pois nos disse a Carla, também blogueira do Gesto Espontâneo, que a palavra poesia vem de poiseis, criar- transformar. Nesse sentido a poesia é o que reconecta o homem com o sagrado, a terra, o indizível, e o belo. São homens imprudentemente poéticos os heróis de La Vita em Comune. Vale apena assistir.

 

* titulo de um livro de Valter Hugo Mae, escritor português

**Aqui há um duplo sentido no nome da cidade; que pode significar “desespero” -“disperata” ou “aquela que em Deus espera- Desperata”. A polissemia é explorada de modo muito engraçado quando turistas chegam a cidade, logo no inicio do filme.

 

(La vita in comune – filme de Edoardo Winspeare, 2017. Em cartaz nos cinemas)

 

Aconchego

Cheguei em casa
E descansei
minha exaustão
no jantar
Enquanto
Brincava de fazer
estrelas no papel,
com mamãe.
Depois, levei
papai a ver a lua
e quando
olhei para trás,
repousei…
Adormeci…
Brinquei com os meus sonhos
Que suavizaram
A finitude dessa experiência.
Adormeci…
Hoje, aconchego
dentro de mim
essa memória
que brinca,
brinca, e brinca…

(Por Gina Tamburrino)