Morte em Veneza

A difícil arte da intimidade

E, no entanto, constroem-se pontes.

Antoine de Saint-Exupéry

( atenção: este relato contém spoilers– O filme DAY AFTER I`M GONE pode ser visto em https://mubi.com/pt/films/the-day-after-i-m-gone)

O filme israelense Day After I’m Gone ( O dia seguinte à minha partida) apresenta de forma dramática e intensa a tensão que pode estar presente entre um pai e uma filha que apresentam muitas dificuldades de comunicação.  Habitando o mesmo espaço físico, existe um abismo entre eles e uma impossibilidade de se construir uma ponte que possa criar um caminho de encontro.

O abismo entre eles nos é apresentado logo no início do filme. Yoram, que é veterinário, diz à sua colega de trabalho que se descobre que o filho entrou na adolescência quando se passa a odiá-lo. Após formular essa frase chocante e de impacto, conta do desaparecimento de sua filha adolescente há dois dias.  A amiga lhe interroga onde ela poderia estar e se a polícia ainda não foi acionada, provavelmente pensando que a garota poderia estar em apuros ou sofrido violência. Ele, apesar de preocupado e aflito, nega tal fato dizendo que ela já vai voltar, que é “coisa de adolescente”. Percebemos então que o pai também não está podendo acessar os próprios sentimentos de preocupação com a filha. Voltando para casa, porém, já sensibilizado pela conversa com a amiga, decide ir à delegacia. É repreendido pela delegada pela demora em comunicar o desaparecimento. A delegada lhe diz que a filha é criança, e ele não concorda, pois considera a filha responsável pelos próprios atos. A policial retruca que, por lei, por ter apenas 16 anos, ela ainda é uma criança. Para obter dados sobre a filha e poder iniciar uma busca começa a lhe fazer perguntas:  se tem a senha do celular da filha, se ela tem facebook ou instagram, etc. Ele não tem nenhuma dessas informações- o que já vai revelando a distância e o desconhecimento da vida e do cotidiano da filha.

 A questão da intimidade e de quem é o outro sempre foi um ponto que muito me intrigou e afligiu. Esse tema é intensamente tratado no livro de Josephine Hart “ Perdas e Danos”, que foi transformado em filme por Louis Malle ( 1992), baseado num caso verídico que aconteceu na Inglaterra :  um ministro da Alta Corte se envolve com a namorada do filho, que quando os flagra num encontro se joga pela janela. Enquanto o pai vai vive esse tórrido e proibido romance se pergunta como isso é possível:  como pode ele estar ali,  deitado ao lado de sua mulher, com quem é casado há tantos anos, como se nada estivesse acontecendo. E como é possível que a esposa sequer desconfie de qualquer coisa  enquanto ele vive essa paixão avassaladora e louca. Essa é uma situação que o angustia muito- essa situação de divisão e ambiguidade convivendo dentro de si, sem que o outro ao seu lado tenha sequer ideia.

Sempre me perguntei quem de fato é o outro–  o que sabemos das pessoas que convivem ao nosso lado. Essa é uma situação muito comum nos nossos dias, principalmente com filhos adolescentes:  por mais que os controlemos, o que sabemos de sua intimidade, de quem são eles?

Este pai, voltando para casa depois do desconcertante diálogo com a policial, permanece sentado, imóvel no sofá, olhando para o nada. Preocupado? Com raiva? Totalmente imóvel e com o olhar perdido. De repente a adolescente Roni abre a porta, entra, cumprimenta-o friamente e vai para seu quarto como se nada tivesse acontecido. Ele pergunta onde estava e ela responde um lacônico “por aí”.

Na noite seguinte o mesmo ritual frio e distante se repete : Roni chega, dá um “oi” e se dirige ao seu quarto. Na madrugada, enquanto dorme, Yoram  é acordado com batidas à sua porta – investigadores da polícia chegam dizendo que foi  identificado nas redes sociais uma comunicação dela de que iria se suicidar. Ele reage violentamente achando isso um absurdo, uma invasão, mas a polícia força a entrada e de fato a filha já estava desacordada após ter ingerido remédios para se matar. A moça é levada para o hospital.

Atordoado com tudo isso, no hospital , é abordado por um judeu ortodoxo que reza pela filha e lhe entrega um livro de rezas,  lhe dizendo que reze também por sua recuperação.

Depois do ocorrido retornam à casa e o mesmo clima de distância permanece sem que ele consiga se aproximar da moça, sem que possam conversar sobre o que aconteceu. O silêncio entre eles permanece inalterado, tenso. No decorrer do filme somos informados de sua esposa morreu recentemente, e de que antes deste fato , os três eram muito próximos e unidos.

Ele, sem saber de fato o que fazer, como se aproximar, conversar e acolher a filha, decide ir visitar a família da esposa que mora ao sul de Israel. Comunica-lhe sua decisão, a qual ela acha muito estranha porque parece que não tinha um bom relacionamento com a mesma. Partem em viagem no mesmo silêncio por todo longo trajeto, fluxo represado, denso e tenso.

Ao chegarem, encontram a família da mãe com todas as suas esquisitices. Vamos nos dando conta porém que esse foi um gesto desesperado , um pedido de socorro de um pai paralisado e impotente diante da impossibilidade de um gesto espontâneo em relação à dor e ao sofrimento da filha. Roni havia lhe pedido que não lhes contasse nada de sua tentativa de suicídio, mas ele o faz numa conversa particular com sua cunhada. Esta lhe pergunta se a moça queria de fato se matar e ele responde que não, que queria apenas lhe mandar uma mensagem, chamar sua atenção. E ele diz  que não faz ideia do que ela realmente  queria lhe comunicar. 

Diz Winnicott que quando a criança descobre que pode se esconder, que tem essa possibilidade, isso lhe dá a descoberta de um poder… mas se ao mesmo tempo  é uma glória poder se esconder, é uma tragédia não ser encontrado!  De certa forma a moça, neste filme,  não era encontrada pelo pai, que a via mas não a percebia, não a sentia:  ela lhe era uma estranha. Em seu trabalho sobre a tendência antissocial Winnicott diz que quando a criança ou adolescente apresentam comportamentos de agressividade, mentiras, roubos, rebeldia, estes comportamentos antissociais estão expressando um sentimento de que algo bom foi perdido por uma falha que é atribuída ao ambiente. Sabendo que a falha é do ambiente, estão vivendo uma deprivação afetiva e desejam resgatar o que tinham de bom e perderam. Endereçam então ao próprio ambiente esse protesto que ao mesmo tempo é um pedido de ajuda.  O momento do comportamento antissocial é justamente um momento de esperança: identificaram  em seu entorno algum sinal que lhes deu a esperança, ou a ilusão,  de que a falha pode ser  reconhecida de modo a se restabelecer a situação anterior.

A tia, ao se inteirar do fato, imediatamente diz que tem sim que contar à família, que seria absurdo não contar, que isso é muito sério – e a partir daí assume a administração da situação. Reúnem a família inteira em uma “roda de conversa”, chamam a menina para lhe dizer, cada um à seu modo, que reconhecem a dor da sua perda, da terrível vivência da doença e morte da mãe. Falam inclusive da própria dor relativa a esta morte, reiterando que Roni é membro da família e muito querida por todos ali. Cada um fala de seus sentimentos por ela, da importância que tem, reconstruindo sua história desde o nascimento, rememorando momentos significativos de sua vida.

Ao partirem, ela está, obviamente, furiosa com o pai por ter violado o seu segredo. Pede à ele para voltar dirigindo o carro, pedido que já havia feito na ida mas ele não permitiu – e eis que dessa vez ela vem dirigindo no caminho de volta. O mesmo silêncio se mantém entre eles, apenas um pouco mais leve. No caminho, passam pelo túmulo da mãe e a filha chora: a situação do luto extremamente dolorosa já não é negada. Chegam em casa e num primeiro momento não parece haver qualquer mudança no relacionamento entre eles… Roni vai para seu quarto enquanto Yoram fica na varanda.

Porém, quando a moça vai à cozinha pegar um copo de água , logo em seguida, encontra o livro de rezas que o pai trouxera do hospital.  Olha, acha estranho e pergunta a ele o que é aquilo, ao que ele lhe responde: Rezei por você enquanto você estava no hospital… Ela sorri …e vem sentar no sofá da sala, ligando a televisão.

Através desse simples gesto a filha consegue se dar conta do amor do pai, da sua importância para ele, sua angústia e sofrimento com o que poderia ter lhe acontecido. Sendo o pai não religioso, ter rezado por ela e ter trazido o livro para casa era muito significativo, e assim finalmente ela conseguiu ser encontrada.

As vezes é muito difícil lidar com os adolescentes e saber exatamente qual seria a conduta mais acertada, e a medida adequada do limite. Apesar do seu pedido de não contar nada à família da mãe e da fúria pelo pai não ter atendido a este pedido, foi de extrema importância a família ter se encarregado do seu desespero e do sofrimento de Roni. A ação da família foi reconhecer e nomear sua angústia e sua perda, acolhendo esses dois seres atolados em si mesmos, sem conseguir compartilhar o sofrimento, por não poder elaborar o luto da mãe/esposa que funcionava como a ponte e o elo de comunicação da família.

Também foi um processo muito importante a possibilidade do pai  ter a humildade de reconhecer sua total impotência para lidar com a situação, se aproximar da filha e compreender o que se passava com ela.

O momento atual da humanidade é um momento de luto coletivo, onde estamos tendo que lidar com muitas perdas ao mesmo tempo, desde a morte física de pessoas próximas e queridas, como a nossa vida roubada- um momento em que como um todo estamos sofrendo uma deprivação. As crianças perderam os amigos, a escola. Os professores, suas atividades regulares, sua rotina, assim como adultos e adolescentes. A ideia da morte paira no ar como uma possibilidade real e concreta. Roubaram-nos a possibilidade de fazer planos e com isso os sonhos, os projetos…Estamos à deriva…. cada um de nós tendo que encontrar em sua história e circunstância a esperança de um porto onde atracar com segurança permanecer em espera. As relações de amor que cultivamos, agora, são o nosso porto seguro.


Aponte
Ê, a nuvem vai fazer chover
Lavar a terra maltratada
Sem teu amor, não sobra nada
A gota d’água pra viver
Tão seco assim não brota nada
És minha santa, és minha amada
Fui te encontrar pra me perder
Aponte que eu não enxergo quase nada
Nem assovio, nem um pio
Pode vir raio ou trovoada
Eu não arredo desse rio
Aponte onde dá o norte
Aponte onde leva o rio



Composição: Lan Lan / Nanda Costa / Sambê

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O filme DAY AFTER I`M GONE pode ser visto em https://mubi.com/pt/films/the-day-after-i-m-gone

Desejo de filho

O que leva um sujeito a desejar ser pai ou mãe? Nos filmes Juno ( Jason Reitman, 2007) e Mais uma chance (Tamara Jenkins , 2018) ; o tema se coloca.

São filmes diferentes mas seus enredos se tocam em alguns pontos. Em “Juno”, fala-se da gravidez na adolescência, seus dilemas. Quando a mocinha decide abortar, falta coragem. Ela decide doar o bebê. Encontra então um casal bacana que está à procura de um filho . Em “Mais uma chance”, há também um casal infértil que oscila entre a ideia de adoção e a busca de tratamentos para conceber. Este casal irá recorrer à ovodoação por conta da idade da mãe, e a doadora será uma sobrinha por quem sentem afinidade.

No primeiro filme, Juno vai escolher o casal que receberá seu bebê por meio de um anúncio. Ao conhecê-los se encanta : são a família que ela idealiza, ela que vive com pai e madrasta e se sente negligenciada pela mãe.

Já a ovodoadora do filme ” Mais uma chance ” é uma pessoa da família. Apesar dos contextos diferentes, ambos os filmes iluminam as triangulações que acontecem nestas situações peculiares. Quando o bebê que vai chegar promete vir por meios diferentes do convencional, a cegonha faz um pit stop que custa caro (literal e psiquicamente) para as pessoas envolvidas.

Escolho aqui falar dos personagens femininos dos filmes para iluminar aspectos das suas dificuldades e alegrias na relação com a maternidade.

Juno é a personagem principal do filme que leva seu nome. Tem 16 anos e engravida do namorado, num deslize. Descobre a gravidez num teste que faz no banheiro de um mercadinho. Nos seu livro “Adolescência em cartaz” Diana e Mario Corso falam sobre ela e especulam sobre a razão inconsciente que pode ter ocasionado este delize… uma tentativa de reparar em ato uma ferida aberta lá atrás, quando Juno foi abandonada pela mãe : ” em nosso entendimento, Juno repete sua história de rejeição e adoção por parte de outra mãe. Sua decisão foi a de manter a gravidez e encontrar alguém que deseje e receba este bebê. Pensa em doá-lo a uma mulher estéril ou a um casal de lésbicas. O desejo por um filho, tão importante para a descartada Juno, encontra, tanto na mulher que adota o recém-nascido quanto na atitude irrepreensivelmente materna da madrasta, uma acolhida que compensa a falta de sua própria mãe.”

E por sinal Bren, a madrasta de Juno, é uma mãe melhor que a encomenda! Amorosa e firme, consegue, ao lado do pai da adolescente, apoiá-la na decisão de entregar sua criança para adoção. Sem recriminações, sem exclusão, sem paternalismo- o que comumente encontramos nas famílias que se deparam com a gravidez indesejada nesta fase da vida. Bren, como madrasta, presentifica o aspecto simbólico da filiação que não precisa passar pela carne para se concretizar. Ela se responsabiliza pela adolescente e assume o cuidado dela junto ao pai, não sem sofrer junto com Juno o peso da difícil decisão.

Aqui Bren acompanha Juno no ultrassom gestacional

A outra personagem feminina do filme “Juno” é Vanessa, a mãe que ela escolhe para dar o seu bebê. É casada , organizada, bem sucedida- mas não consegue engravidar . Faz um casal bonito com Mark: casal que sucumbe ante à dificuldade encontrada no projeto de adoção . Apesar do perfeccionismo e da intensa projeção narcísica sobre a cobiçada criança, Vanessa sofre com o descompasso entre seu desejo de filho e a postura do marido. Ele parece ter fixações na adolescência e não se sente à altura do projeto “pai”. Quando vai receber o bebê de Juno, Vanessa já está sozinha. Recebe emocionada a criança em seus braços e pergunta à Bren, que a observa ternamente: ” Como pareço?”, ao que Bren responde: ” Como uma nova mãe apavorada!” Nesta cena o círculo se fecha: as duas mães adotivas se encontram por meio do ato de Juno de doar o bebê . Bebê gerado pelo desejo inconsciente de restaurar a união perdida com uma mãe que não há… Juno não tinha o desejo de cuidar de um filho , ela queria ser cuidada. Ao perceber isso pôde ter o apoio de sua família para lidar com a situação , aprender com a experiência.

Além da gestação como passagem ao ato, que foi o que aconteceu com Juno, uma gravidez pode ter muitos outros sentidos que não o desejo de cuidar de um filho. ” Para a psicanálise, uma passagem ao ato é algo que tem uma motivação inconsciente para acontecer”, dizem Mario e Diana Corso. Os autores falam também da consolidação da imagem feminina e do desejo de dar um bebê aos pais como motivações inconscientes para a gravidez. Todo desejo de filho é um amálgama de muitos outros desejos nem sempre compreendidos pelo sujeito.

Agora vamos falar de outras três mulheres, personagens do filme “Mais uma chance ” ( Private life ) . Rachel, escritora engajada, é a personagem que aqui sofre com a dificuldade de engravidar. Num diálogo que tem com o companheiro percebemos a culpa por ter adiado o projeto de ser mãe por conta da profissão – agora sente que é tarde demais. Ela vai se submeter ao processo desubjetivante dos tratamentos de fertilidade, nos quais percebemos o sofrimento psíquico que os procedimentos carregados de impessoalidade lhe trazem. Seu cabelo desalinhado, as cenas de nudez, as alterações de humor e o desconforto que parece sentir retratam o custo que o desejo de filho lhe traz. O seu corpo erótico reduzido a um corpo- coisa, máquina que teima em não funcionar. Ela oscila mas não desiste mesmo quando, no final de todo o processo, passa pelo luto do fracasso da inseminação artificial. A alegria de estar com a sobrinha e algumas falas do filme fazem pensar que Rachel e o esposo desejam uma criança como uma mudança em suas vidas e para renovar a própria vida. Aqui parece haver o desejo de cuidar de alguém. Porém, apesar do humor presente em muitas cenas, o patético da situação de reprodução assistida e da busca de um filho desnuda a fragilidade de Rachel e sua tristeza. Sua feminilidade e potência é posta à prova; ela que é uma pessoa criativa se sente desvitalizada e acuada diante da situação. Rachel também se encaixa na descrição que o casal Corso faz quando fala do problema de Vanessa :

Dos rivais que a libertação feminina tem enfrentado, os mais indomáveis parecem ser os ritmos biológicos. Ficamos prontas para engravidar, com a fertilidade a ponto de bala, o corpo viçoso e flexível, quando a cabeça ainda tem muitíssimas outras coisas com o que se ocupar. Depois, quando certas escolhas já foram feitas, e algumas garantias nos tranquilizam, aí já estamos fisicamente mais frágeis para conceber e parir. Se então quisermos ser mães, necessitaremos repouso e assistência médica.”*

Rachel, Sadie e Richard diante do médico especialista em reprodução humana

Sadie é a moça que tem o tal “corpo viçoso e flexível” e a “fertilidade a ponto de bala”, com a cabeça ainda cheia de projetos e coisas para resolver antes de ser mãe. Sobrinha do casal, deseja ser escritora como a tia e aceita doar-lhe seus óvulos . Embarca no projeto vivenciando-o como uma oportunidade de fazer algo de bom : e se perde no caminho pelo peso psíquico que toda a situação representa para ela . Há uma cena em que diz para Rachel que irão ter um bebê juntas- pois será seu óvulo a ser inseminado no ventre da outra. Esta cena é carregada de sensualidade e mostra a intimidade das duas mulheres como um casal e também como mãe e filha, numa perigosa realização imaginária dos desejos incestuosos de Sadie com esta figura materna e dupla de si que a tia parece representar. Para Freud, a descoberta da fase pré-edípica na menina equivale ao encontro de toda uma civilização soterrada sob a escolha heterossexual da mulher: pois o primeiro amor da menina, como no caso do menino, é a mãe. Dar um bebê à sua mãe é uma fantasia que Sadie parece estar próxima de realizar- e é neste momento que a moça se apaga diante do desejo da outra.

E se a tia Rachel permanece como figura idealizada e imitada pela Sadie, a mãe da moça, Cynthia, é por ela desqualificada. Cynthia é a terceira personagem do filme de que quero falar.

Ela está chegando à menopausa e se depara com a decisão da filha de doar seus óvulos. Ambas tem uma relação difícil, estão muito afastadas e com dificuldade de comunicação. Cynthia não valida a escolha profissional da filha que também a critica, que a confronta. Cynthia não compreende a obstinação de Rachel em seu desejo de engravidar, e tem muita dificuldade de aceitar o procedimento da ovodoação. Ficamos sabendo que ela teve a filha muito nova e isto acarretou-lhe muitos sacrifícios . Ela faz alguns movimentos para se aproximar mas o processo adolescente de Sadie dificulta o encontro das duas: a moça está buscando se diferenciar da sua mãe e a mãe também passa por um momento difícil, encarando o ninho vazio sem ter tido chance de outras realizações pessoais.

Outro círculo se fecha aqui: Sadie liga as duas mulheres e cada uma fez uma escolha na vida… ambas começam a envelhecer sentindo falta daquilo que não realizaram. Cynthia é o negativo de Rachel, Rachel é o negativo de Cynthia.

O que todas essa mulheres: Juno, Vanessa e Bren, Rachel, Sadie e Cynthia tem a nos ensinar? São mulheres do nosso tempo às voltas com o dilema da maternidade, e o que é ser mulher. Juno e Sadie passam pela adolescência, Rachel e Cynthia envelhecem, e tem de fazer lutos. Rachel está com dificuldade neste luto- está num impasse, congelada. É o que a cena final do filme deixa transparecer. Vanessa também passa pela crise no casamento que a injunção de se tornar pais representa. Vemos mulheres passando por processos de transformação . Juno recua diante da maternidade, Vanessa avança: ambas crescem no processo. Rachel ainda precisará de mais tempo para resolver o impasse em que se encontra. Sadie sai um pouco estropiada da experiência da ovodoação mas (com ajuda dos tios) prossegue em seu caminho criativo. A generosa Bren, avó por um segundo, transmite à outra mulher apoio e segurança.

Cada uma se vira como pode.

Eu já tinha comprado o livro de Contardo Caligaris e Maria Homem “Coisa de menina” mas não havia lido. Com a morte dele, corri para abrir o livro, ainda dentro do plástico- pequenas alegrias de sábado à noite na pandemia. É bom poder escutar a voz de Contardo e Maria falando que não nascemos mulher, nos tornamos mulheres. E por não sermos somente bichos fêmeas reprodutoras, por termos de significar para nós o que significa ser -ou não ser- mulher e mãe, sempre haverá muitas viscissitudes neste processo. A origem da vida e a diferença entre os sexos permanecem sendo grandes mistérios para nós.

Diante do mistério, toda ciência será sempre pouca- e sempre um pouco louca.

* Juno | Mario & Diana – Psicanálise na vida cotidiana (marioedianacorso.com)

Uma das musicas mais lindas sobre adoção… desejo de filho!!!

Ser e Ter


Como toda a criança, o meu imaginário era povoado por personagens e histórias imaginadas que muito me atraiam e, ao mesmo tempo, provocavam fascínio e medo.

A minha casa era muito grande e tinha dois quintais, um de cimento e outro de terra. O quintal que mais me fascinava era o de terra. Lá havia muitas árvores, pássaros, insetos e junto com os meus irmãos e primas mais velhas imaginávamos histórias que por vezes eram carregadas de mistérios e que me davam muito medo mas, ao mesmo tempo, me encantavam.

Fazíamos tudo juntos e misturados. Esse convívio era muito divertido e prazeroso.

Ao ver o filme Ser e Ter (2002) do diretor, Nicolas Philibert revivi aqueles momentos da minha infância onde aprendemos juntos o que é cooperar, competir e respeitar o outro.

É um filme que fala sobre o amadurecimento humano e o processo de crescimento e aprendizagem.

O professor é um personagem muito interessante e me atrevo-me a dizer que ele é um professor “suficientemente bom”. Não é extremamente acolhedor, mas, corresponde com interesse ao que as crianças necessitam para aprender.

Segundo Winnicott, pediatra e psicanalista inglês, o ser humano traz em si as potencialidades do viver e do amadurecer. O professor respeita o espaço e o ritmo de cada criança, facilitando a compreensão do que está sendo ensinado.

Por outro lado a aprendizagem é partilhada, não importa a idade das crianças, elas aprendem juntas habilidades emocionais como empatia e flexibilidade- tão necessárias para se viver cooperativamente em uma sociedade.

As habilidades emocionais são tão relevantes quanto as cognitivas.

No cotidiano das aulas aparece o aluno Jojo que demonstra certa indisciplina e isso provoca nas crianças reações mais diversas como rigidez, cooperação ou indiferença.

Uma das belezas do filme, é a determinação do professor em ser assertivo com as crianças, ele é tolerante e não fornece as respostas das perguntas que ele faz sobre as disciplinas que está ensinando. Mas orienta o caminho que a criança pode percorrer para chegar na resposta certa.

Este filme é um bom disparador para repensarmos a educação, que, ao longo dos anos, tem dado primazia para o controle dos espaços de convivência nas escolas deixando de aproveitar esses mesmos espaços para desenvolver habilidades sócio educativas.

Em tempos de pandemia, neste momento, os pais podem considerar estas mesmas habilidades no dia a dia em casa solicitando a cooperação das crianças nas tarefas mais simples e estimulando sua curiosidade. Infelizmente para os muito pequenos e mesmo para alguns maiorzinhos o ensino online parece não estar funcionando bem, pois, como bem mostra o filme Ser e Ter, a presença do mestre e o fazer junto é essencial. Por outro lado, talvez não tenhamos outra oportunidade para estar tão perto deles, compartilhando, ensinando e aprendendo juntos o que é mais importante: Ser!

No link abaixo você pode ver o filme todo, disponível no youtube.

A Partida

“Deixamos Bernardo em sua sepultura

 De tarde o deserto já estava em nós”

     Manoel de Barros

https://youtu.be/i6E76_gti2w

Observação: o texto revela o roteiro do filme [ALERTA DE SPOILER]

O filme A partida, do diretor japonês Yôjirô Takita, é um convite a uma travessia pelo universo onírico da música e da fotografia. Através da arte oferece sustentação e delicadeza para os sentimentos envolvidos no trabalho do luto.

O luto envolve a dor da perda e exige trabalho psíquico. A morte e a vida estão entrelaçadas fora e dentro de nós, e o filme favorece um mergulho estético entre os acordes da música e das imagens, e mesmo após o seu final ainda sentimos ressoar a sua envolvente e profunda melodia. O filme foi ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro de 2009 e foi inspirado na biografia de Aoki Shinmon Coffinman, que narra em seu diário de agente mortuário budista o seu trabalho com os mortos. Y. Takita cria assim um filme delicado e envolvente.                                   

Daigo Kobayashi é um violoncelista da orquestra de Tokyo que perde seu emprego após sua dissolução : neste momento inicia a primeira “Partida” que ocorre no filme. O músico parte com a esposa para a sua cidade natal e vende o seu violoncelo pela dificuldade financeira . Isso lhe traz alívio e revela assim a trama de emoções que o ligam a música e que vamos aos poucos conhecer. Vai morar no interior na casa que a mãe falecida havia lhe deixado de herança e inicia também uma partida para seu interior, sua infância  e  lembranças. Daigo deixa a sua vida em Tokyo e a música e procura um emprego na cidade natal. A oferta de emprego surge a partir de um equívoco de comunicação no anúncio do jornal que supôs ser de uma agência de viagem e no entanto, tratava do preparo dos mortos em um ritual tradicional. A função oferecida no anúncio é ser um nôkanshi– um agente mortuário- que limpa, prepara, maquia e coloca o morto no caixão na presença da família em um ritual de despedida.

O encontro com o patrão que faz o trabalho se inicia de forma difícil, sendo o primeiro trabalho com um corpo já em estado de decomposição, o que o deixa impregnado do cheiro  da morte.  Este ofício no Japão não é bem visto e Daigo esconde seu trabalho da esposa . Sente também  a repulsa dos amigos. Porém, a maneira do patrão executar o ritual  o surpreende e o comove. Percebe a elegância dos gestos solenes do nôkanshi , a delicadeza do respeito e a demonstração de cuidado e carinho. Ele oferece assim, com os seus gestos , uma sustentação sem palavras, como um maestro a expressar sentimentos que tocam os familiares do morto.  No último encontro, no momento de despedida do morto, o nôkanshi  faz uma maquiagem que traz novamente a beleza da lembrança daquela pessoa em vida,  e auxilia a despedida neste momento tão difícil. O ritual ajuda a conter  e sustentar os dramas familiares.

Daigo encontra o seu violoncelo da infância, lembrança de sua ligação com o pai que partiu quando ele tinha 6 anos de idade e do qual não conseguia , nas suas lembranças, ver o rosto. Recorda de um momento importante, quando trocaram pedras- antigamente ,antes da escrita, as pessoas davam pedras umas às outras em sinal de afeto. A sua pedra estava em seu violoncelo, e nesta noite após este primeiro trabalho e no difícil primeiro encontro com a morte, toca para dar vazão a seus sentimentos, transformando em arte o que o assombra. O filme conduz ao encontro consigo mesmo e ao reencontro com a sua história de vida. A importância que descobre neste novo trabalho dá um novo sentido à sua vida. Mesmo quando a esposa Mika descobre e vai embora por não aceitar este trabalho tão mal considerado,  Daigo recorda suas experiências com os rituais  e não desiste.

O filme A Partida abarca as muitas perdas e separações que vivemos em nosso processo constitutivo humano. A separação dos pais que no caso do personagem foi traumática e se reflete no seu sentimento de fracasso pessoal.  Nesta travessia ele vai se transformando e integrando as experiências vividas. A esposa volta e revela que ele será pai, e novamente a vida e a morte se entrelaçam. Após assistir o ritual que Daigo realiza com uma amiga da família, a dona da casa de banhos que o via chorar na infância pela dor da perda do pai, a esposa percebe a delicadeza, beleza e nobreza dos gestos do marido e passa a aceitar e compreender seu trabalho . A convivência com o patrão e a secretária do trabalho oferece a Daigo a família perdida… -É comovedora a cena em que ele agasalha o patrão que dorme e nos faz perceber seu sentimento de falta do pai perdido.

Um dia recebe a notícia da morte de seu pai. Amparado pela esposa, apesar da resistência inicial, parte para se despedir do pai, para o reencontro com o pai agora morto mas sempre presente nos acordes da sua música. Desta vez está na cena como a família que assiste, mas quando vê a inabilidade dos agentes que fariam o serviço, os tira da situação e resolve ele mesmo realizar o ritual de preparo do corpo. Quando encontra a pedra que havia dado ao pai, se restabelece uma ligação. A pedra simbolizava uma ligação com o pai que ele julgava perdida, e através daquela pedra o pai narrava em seu silêncio mortífero a presença do filho para ele. O rosto do pai pode finalmente compor a sua memória, nesta cena tocante em que prepara o filho prepara o pai para a partida sob os acordes da música. Ficamos comovidos.

Este filme ,através da delicadeza, criatividade e sensibilidade do diretor em tratar de temas tão difíceis, nos oferece em sua poética elementos fundamentais para -como diz o poeta Manoel de Barros- nos tirar do deserto e auxiliar no trabalho de elaboração do luto.

Carla Braz Metzner

O abraço partido

De repente, neste dia dos pais, penso naqueles que não tem o seu pai consigo. Na falta que faz um pai.

Tem os pais que já morreram, mas também tem os pais que foram embora, tem os pais que nunca estiveram aqui. Quando um pai vai embora, em seu lugar ficam muitas perguntas. Outros podem exercer o seu papel, mas o abandono de um filho por seu pai é difícil de entender, do ponto de vista do filho. Os laços que ligam um pai ao seu filho não são somente biológicos. Divórcios difíceis, relações fugazes, situações externas…e os pais muitas vezes vão embora. No nosso trabalho de analistas encontramos muitas destas feridas . Pais que se sentem estranhos em relação aos seus filhos, filhos que mal conhecem, ou não conhecem seus pais. É bem dolorido pensar que o pai faltou em sua vida- qual a razão para este abandono…. Falo aqui , mesmo, desta pessoa, deste homem, que veio e partiu. A função paterna, esta, pode ser exercida por outras pessoas. Pode-se crescer, pode-se amar, trabalhar, sem a presença do pai. Mas fica uma dor quando ele parte, pois em nosso íntimo sabemos que este homem se furta a uma responsabilidade, e sua partida é abandono. Para a criança é difícil enxergar quando a ponte entre si e seu pai está obstruída pela própria mãe, ou pela força de alguma circunstância. O abandono é intransitivo.

Muitas vezes, o tempo passa e as circunstâncias mudam. Quando se reencontram pai e filho, pode haver reparação e a criação de outras pontes, sobre as ruínas daquela que foi destruída. O tempo que passou, não volta. Mas as memórias podem ser relidas com as lentes da compreensão. Pode-se enfim dizer, em muitos casos, que entre um pai biológico e um filho nada existe- e passar do rancor à gratidão por aqueles que garantiram sua vida e a sustentaram com seus laços amorosos. Porém, negar a dor não faz com que desapareça. Se pranteada, o luto necessário pode acontecer…a dor toma um destino e pode parar de doer.

Como se constroem as pontes que ligam o pai e seu filho? A lei garante a pensão, mas a ponte, não. É difícil aprender a amar alguém a quem não se viu crescer. Os momentos repartidos valem mais que mil presentes.

A história de Ariel , no filme “O Abraço Partido” ( Daniel Burman, 2004) é a história de muitos que se sentem abandonados pelo pai. No decorrer do filme, percebemos as dores da família, de origem judaica, que permanecem encriptadas por conta das violências e rupturas sofridas. Em uma conversa com sua avó, Ariel descobre que ela era cantora, e não cantou mais depois que deixaram a Polonia:

Ainda nao sei… quando escapamos do gueto com seu avô, viemos à Argentina. Não tinhamos nada. Eu, em Varsovia, cantava em um clube, com as meninas.

-você cantava?

-Sim , mas quando nos instalamos na Argentina, o avô não quis que eu cantasse mais.

-Por que?

-Dizia que lhe recordava o horror, sua família, amigos que já não estavam… e eu para não fazê-lo sofrer…cantava para dentro…o que eu amava cantar, cantava em minha mente.

Ariel quer fazer o caminho inverso, sair do país em crise e tornar-se cidadão europeu. O pai, que partiu para a guerra de Yom Kipur, ele não conhece. O pai perdeu seu braço na guerra. Quando tenta se reaproximar, depois de anos, encontra uma resistência por parte de Ariel. Assim, a ruptura e a perda vão se reeditando; a avó que não canta, o pai que perdeu o seu braço, o moço que não conheceu o seu pai. O reencontro entre Ariel e seu pai Elias é o ponto alto do filme, uma cena muito bonita, que nos toca pela sua dramaticidade e verdade. Percebemos no olhar do pai que o filho sempre esteve presente em seu coração.

Muitas vezes na tentativa de ouvir as feridas dos abandonados, encontramos histórias de abandonos transgeracionais e suscessivos. Um pai que deixa seu filho à própria sorte carrega consigo também esta marca:

“    Um homem chegou aos quarenta anos e assumiu a tristeza de não ter um filho. Chamava-se Crisóstomo. Estava sozinho, os seus amores haviam falhado e sentia que tudo lhe faltava pela metade, como se tivesse apenas metade dos olhos, metade do peito e metade das pernas, metade da casa e dos talheres, metade dos dias, metade das palavras para se explicar às pessoas”. Via-se metade ao espelho e achava tudo demasiado breve, precipitado, como se as coisas lhe fugissem, a esconderem-se para evitar a sua companhia. Via-se metade ao espelho porque se via sem mais ninguém, carregado de ausências e de silêncios como os precipícios ou poços fundos. Para dentro do homem era um sem fim, e pouco ou nada do que continha lhe servia de felicidade. Para dentro do homem o homem caía.

Este é um trecho do livro “O filho de Mil homens” de Valter Hugo Mãe. O pai de Ariel, Elias, também lhe falta um pedaço: o pedaço dos abraços que não pôde dar em seu filho enquanto ele crescia.

Este dia dos pais, dedico aos pais e aos filhos que não puderam se abraçar.

Nesta cena, Ariel vê seu pai, reconhece a falta do braço que ele perdeu na guerra. Sua reação nos dá a ideia da dimensão da sua angústia.

A crueza e a beleza de viver o possível

Sobre o filme: Hanami – Cerejeiras em flor
Direção: Doris Dörrie; Produção Alemanha/França, 2008

Observação: o texto revela o roteiro do filme [ALERTA DE SPOILER]

Em “Hanami”, na primeira cena, a morte é logo anunciada. Trudi (Hannelore Elsner) fica sabendo que Rudi (Elmar Wepper) tem pouco tempo de vida. Os médicos contam apenas para ela e sugerem que os dois façam uma viagem, enquanto é possível. “Meu marido não gosta de aventuras” responde e resolve guardar sua angústia e o segredo. No entanto, pede ao homem para irem visitar o filho mais novo em Tóquio. Ela ama a dança japonesa do Butoh e tem o sonho de conhecer o Monte Fuji, mas ele acha muito caro, “talvez depois da aposentadoria”. Então, o casal visita os outros dois filhos em Berlim e, diante do desencontro de gerações, decidem ir passar uns dias na praia. Mas, o inesperado acontece. Trudi morre dormindo. Morre com seu segredo, com seus sonhos. A realidade toma outro curso.

A falsa sensação de permanência do estar vivo, com suas rotinas e certezas, traz uma perspectiva de que sempre se terá tempo para o futuro, como se a negação da perspectiva de um fim acabasse mortificando o viver em repetições previsíveis.

O que lembra a efemeridade assusta: a doença, o envelhecimento, a possibilidade do morrer. As moscas, lembradas no poema recitado em família, aparecem como importunos insetos que precisam ser afastados ou esmagados para que não atrapalhem a sensação de continuidade, com sua existência efêmera. Por outro lado, a perda iminente ou concretizada de um ser querido quebra esse arranjo confortável e chama, à cena, a fragilidade humana.

Ele, agora viúvo, vai à Tóquio, levando as roupas da mulher na mala, desejando que de alguma forma ela esteja presente. É primavera e depois de alguns dias, o filho o leva para o Hanami Festival.

Contemplar as flores das cerejeiras é uma tradição milenar no Japão. É uma forma de apreciar a beleza e brevidade da floração, que dura cerca de 14 dias, ao sentar embaixo das árvores, com a família e amigos, comendo e celebrando a vida, enquanto é possível. Observar as flores, a sua natureza cíclica, coloca, no tempo, a percepção da finitude, que coabita a existência.

Voltando ao jardim, Rudi conhece Yu (Aya Irizuki), uma jovem órfã, que dança o Butoh no parque. Com ela, consegue conversar sobre sua perda, entender o significado da dança com as sombras e os sentimentos.

O Butoh, por ser uma dança sem coreografia própria, mostra um corpo em transformação, que constrói e desconstrói sua identidade em ritmos particulares, transitórios. Através da fluidez da forma, busca expressar e alcançar a essência do dançarino. O marido enlutado, anteriormente preso à suas tarefas e costumes, nesta nova convivência, veste outra roupagem, inusitada.

A menina passa a ser sua intérprete, uma ponte à língua japonesa e ao mundo sensível da sua esposa. Eles fazem uma viagem para ver o Monte Fuji, mas a montanha diariamente se esconde na neblina. Quando, numa madrugada, finalmente a montanha fica visível, o homem, sentindo-se cada vez mais doente, dança o Butoh, vestido com as roupas de Trudi, e encontra a morte.

Quando Winnicott anota em suas memórias: “Oh, Deus! Possa eu estar vivo quando morrer” sublinha a valorização da experiência, o exercício constante de sentir-se real mesmo diante da terminalidade. A vivacidade de estar presente em seus gestos, na expressão de si mesmo é interagir e observar a realidade sem estar submisso a ela.

Muitas vezes para lidar com a inevitabilidade da perda, viver passa a ser uma repetição de atos rotineiros, metódicos, que afasta a espontaneidade, a criatividade. O próprio futuro surge como uma fuga para o eterno. Desvestir-se das ilusões, sentir a falta do outro que segue suas próprias leis e caminhos e reinventar-se são tarefas diárias, mas que por vezes somem no cotidiano, como nas manhãs que se repetem na cidadezinha do interior em que os personagens moram.

O entorpecimento, trazido pela negação da vulnerabilidade humana, borra os limites entre o que é subjetiva e objetivamente percebido, inibindo a ação criativa. Quando diariamente Rudi chegava para jantar, no tempo em que vivia com sua mulher, e encontrava os charutos de repolho prontos para comer, pelo costume, turvava-se a realidade de que ali existia alguém que os fizera. Após sua perda, quando chega na casa vazia, a falta, objetivamente, explicita o engano. Mais tarde, no Japão, a partir da receita da esposa, pode brincar, inventar, recriar a partir da visibilidade da separação e cozinhar os charutos para o filho.

D.W.Winnicott afirma: “É com base no brincar que se constrói a totalidade da existência experiencial do homem. Não somos mais introvertidos ou extrovertidos. Experimentamos a vida na área dos fenômenos transicionais, no excitante entrelaçamento da subjetividade e da observação objetiva, e numa área intermediária entre a realidade interna do indivíduo e a realidade compartilhada do mundo externo aos indivíduos”.

Experimentar a impermanência das coisas e das pessoas, abre portas para a angústia, mas também para um convite a desfrutar a realidade provisória em que se vive. As cerejeiras em flor carregam dentro da sua beleza o sentido da transitoriedade e a urgência do presente.

Nessa época em que a pandemia atual marca a fugacidade da vida, colocando as pessoas como moscas presas numa garrafa do tempo presente, resta a crueza e a beleza de viver o possível, que limita e liberta.


de tantos instantes
para mim lembrança
as flores de cerejeira

?
Matsuo Bashô


Cena final do filme “Hanami – Cerejeiras em flor”

CONFIAR : A INTERNET, O SEGREDO, E A VULNERABILIDADE ADOLESCENTE

Por Cleyton Angelelli e Arianne Angelelli

“onde houver um desafio do rapaz e da moça em crescimento, que haja um adulto para aceitar o desafio “

Winnicott.

Nos dias de hoje ,com a internet, encontramos jovens plugados durante o dia todo, conectados em um espaço virtual, que não permite o acesso dos pais. Ao mesmo tempo as famílias estão reduzidas e cada vez mais isoladas em seus espaços de comunicação. Hoje vemos crianças muito pequenas com tablets e adolescentes 24h ligados em seus computadores e I phones. Os pais , que vieram de outra geração , não sabem colocar limites e carecem de parâmetros diante da realidade cada vez mais virtual desta geração. Muitas vezes não estão familiarizados com a tecnologia da mesma forma que os filhos e se sentem desorientados ao perceber que o mundo virtual adolescente é um campo desconhecido. Alguns pais tentam exercer controle sobre os acessos e o tempo nas telas , outros são excessivamente permissivos com os filhos . Todavia, não há uma fórmula mágica para fornecer parâmetros 100% seguros quando se trata do processo de ganho de autonomia que a adolescência representa. Os adolescentes vão se expor a perigos mas estarão esperando que os pais possam estar atentos a eles. O processo de crescer envolve muitos lutos e reviravoltas – e os pais precisam estar dispostos a “topar a parada”.

A proposta deste trabalho é a análise do filme ” Confiar ( Trust) ” do diretor David Scwhimmer ( 2010). No enredo, uma garota de 14 anos que vive com os pais e o irmão, numa família estável, aparentemente saudável, envolve-se na internet com um pedófilo. Ele se faz passar por um rapaz mais novo e abusa sexualmente dela.

O pai, publicitário, ele mesmo veiculando na mídia imagens sensuais de meninas muito jovens , ao ver a filha conversando com o desconhecido , não imagina o risco que ela corre . Confiante na sua capacidade de discernimento e na sua “inocência”, se surpreende quando comunicado, por terceiros, de que a moça sofreu abuso num primeiro encontro com o pedófilo. As fraturas na comunicação intrafamiliar se evidenciam. Os pais , envolvidos com a saída do filho mais velho de casa, deixaram de notar o perigo que a filha estava correndo. Percebe-se que nesta família a chegada dos filhos à adolescência encontra os pais de certa forma despreparados para lidar com o luto e a transformação . Eis o que acontece: desponta a sexualidade da filha , que vive o apaixonamento em segredo- mas os pais não estão atentos aos sinais de que ela precisa de orientação.

A retomada da comunicação familiar se faz por meio de muita dor .Todos terão de elaborar o luto pela infância perdida e pela família idealizada que parece desmoronar neste momento. Após vários desdobramentos do ocorrido, a adolescente, sem condições de elaborar o trauma, faz uma tentativa de suicídio. Os pais, avisados por uma amiga, conseguem encontrá-la a tempo.

Existe um paradoxo na comunicação adolescente. Parafraseando Winnicott, neste momento da vida há
“um sofisticado jogo de esconder, em que é uma alegria estar escondido, mas um desastre não ser achado”.

Winnicott conta o caso de uma mocinha que tinha um diário secreto, que era deixado de modo a ser encontrado pela mãe, que deveria ficar ciente dele, mas sem comentar com a filha. O paradoxo está no fato de que o adolescente quer privacidade e quer se arriscar, mas deseja que os pais estejam sempre atentos e dispostos a protegê-los , percebendo os sinais de que algo anda errado e colocando limites em sua onipotência. É um jogo de esconder muito sofisticado, pois a criança que cresceu precisa agora de um espaço para si, mas não quer ser abandonada à própria sorte.

No filme, o namoro virtual é o “diário secreto” que não foi encontrado pelos pais, quando a comunicação falhou. Ao tentar suicídio, enviando uma foto de si pela rede, a mocinha tenta de novo enviar um recado os pais …

( Trabalho apresentado no décimo terceiro congresso brasileiro de adolescência )

Na cena acima, a adolescente conversa com Charlie, que usa de uma falsa identidade para se aproximar dela por um chat online.

O mínimo para viver

O mínimo para viver To the bone, filme de Marti Noxon (2017)

“Você parece um fantasma” diz a mãe de Ellen, assustada, quando a vê durante a internação.

Ellen, uma jovem com anorexia grave, inicia um tratamento em uma clínica alternativa. Lá, conhece outros pacientes que enfrentam distúrbios alimentares e, através dessa convivência em grupo e com o terapeuta, entra em contato consigo mesma, com seu transtorno e história.

Um fantasma é um espírito sem corpo, etéreo. Anoréxica, Ellen some até os ossos. Quase um sopro do que poderia ser. Tem repulsa aos alimentos, sente-se gorda, faz exercícios para eliminar qualquer possibilidade de caloria acumulada.

Na reunião com a família na clínica, Ellen desaparece no turbilhão das relações familiares. Um pai ausente, três mães e nenhum colo, um abraço da irmã.

No decorrer do seu tratamento, Ellen parece ganhar forma ao assumir um outro nome: “Eli” – escolhido como seu, e não mais o de sua avó. Gradativamente, começa a interagir com as outras pessoas. Quando se decepciona, Eli ganha corpo, expressa sua raiva ao psicólogo e deixa a clínica. Vai em busca da mãe.

Nesse encontro, embalado pelas lembranças e culpas maternas (“estava em depressão após o parto, creio que não te segurei e alimentei como poderia”), vai se formando uma permissão. Eli pode não comer, pode morrer, se quiser, se esse for o seu desejo. É como se a mãe dissesse: pode viver a sua angústia, estou mais forte agora.

Nesse momento, com cuidado, a mãe a aconchega ao colo e Eli aceita uma mamadeira.

“Deveríamos poder deixar essas crianças irem até o fim” diz o psicólogo depois que ela vai embora. Eli vai até o fim, até os ossos. Poderia se dizer até a medula, para descobrir, após se deixar alimentar pela mãe, que quer viver, que pode perder o controle da sua alimentação para “o outro”, que pode se deixar envolver pelo colo de outrem.

Esse filme nos faz lembrar dos conceitos de Winnicott:

“Quando uma mãe, através da identificação com seu bebê (isto é, por saber o que o bebê está sentindo), é capaz de sustentá-lo de maneira natural, o bebê não tem de saber que é constituído de uma coleção de partes separadas. O bebê é uma barriga unida a um dorso, tem membros soltos e, particularmente, uma cabeça solta: todas estas partes são reunidas pela mãe que segura a criança e, em suas mãos, elas se tornam uma só”. (Winnicott, Explorações psicanalíticas, 1969g/1994, p. 432)

 “A mãe sabe por empatia que quando se pega um bebê é preciso levar um certo tempo nesse processo. O bebê deve receber um aviso, as várias partes devem ser seguradas em conjunto; finalmente, no momento certo, a criança é levantada; além disso, o gesto da mãe começa, continua e termina, pois o bebê está sendo levantado de um lugar para outro, talvez do berço para o ombro da mãe”. (Winnicott, Natureza humana, 1988, p. 137)

A mãe de Eli, deprimida, sem o suporte do pai, sempre ausente, conta que não pode segurar direito o seu bebê.

“No início há o soma [o corpo], e então a psique, que na saúde vai gradualmente ancorando-se ao soma. Cedo ou tarde aparece um terceiro fenômeno, chamado intelecto ou mente”. (Winnicott, Natureza humana, 1988, p. 161)

“A integração também é estimulada pelo cuidado ambiental. Em psicologia, é preciso dizer que o bebê se desmancha em pedaços a não ser que alguém o mantenha inteiro. Nestes estágios o cuidado físico é um cuidado psicológico” (Natureza humana, 1988, p. 137)

Conforme as ideias de Winnicott, podemos entender que, na saúde, a mente tem sua origem num momento específico do percurso de amadurecimento. Ela surge como um ramo da psique na sua integração com o soma. Isso se inicia na fase de desilusão – quando, por qualquer aspecto da realidade, as necessidades do bebê não são atendidas – e segue como uma linha presente ao longo de toda a existência do indivíduo.

“Se tomarmos agora o caso de um bebê cujo fracasso da mãe em adaptar-se é rápido demais, podemos descobrir que ele sobrevive por meio da mente. A mãe explora o poder que o bebê tem de refletir, de comparar e de entender…. Este pensar transforma-se num substituto para o cuidado e adaptação maternas. O bebê “serve de mãe” para si mesmo através da compreensão, compreendendo demais”. (Winnicott, Explorações psicanalíticas, 1965/1994, p.122)

A desconexão entre o corpo e sua imagem e necessidades, aspecto da anorexia, pode se entender como vestígio de alguma não integração psique-soma. A sobrevivência através da atividade mental poderia explicar a recusa ao alimento como uma teoria primitiva para controlar a fome, a vida, a morte, a necessidade e a ausência do outro. No entanto, os sintomas psicossomáticos seriam ainda, de alguma forma, expressão da busca de interação psique-soma, através da tendência inata à integração.

O convívio a que Eli se permite na clínica e a possibilidade experimentada no encontro com o terapeuta e com sua mãe proporcionam a renovação da expressão de suas necessidades, no embate da sua satisfação/frustração com a realidade possível.

Nesse sentido, Eli precisa ir “até os ossos” para encontrar o seu corpo, as suas emoções, a integração perdida e para poder se deixar permear pelo alimento, pelo sol, pela vida.

Coringa : do riso à dor

Joker (Todd Phillips,2019) é mais que a história de um vilão forjado pelo ambiente da privação e do abandono. É a história de um sujeito psicótico que tenta se curar a partir do humor. Filho do delírio materno, Arthur segue tentando aprender e apreender a linguagem do mundo por meio das suas nuances e sutilezas, pelo atalho do humor: mas não consegue encontrar o riso do Outro , não consegue capturar o seu olhar.

Hoje é dia das crianças, eu queria falar do riso. E desde que assisti ao filme Coringa, há uma semana, venho me lembrando dele … a atuação de Joachin Phoenix é tão impressionante que algumas imagens me capturaram e fizeram companhia durante muitos dias. Suas falas, seus gestos, seu caderno de piadas; sua dança, sua dor, sua fragilidade; a lógica pessoal tão própria a ele; as tentativas de estar num mundo hostil e incompreensível. Embora Coringa seja o louco, é quem denuncia a hipocrisia e a violência; assim como no seriado da Netflix “Casa de Papel” sua máscara virá a ser adotada por todos os que se veem calados pela injustiça e pela negligência, quando por fim o caos se instalar quase nos momentos finais do filme. O clima de caos social já se anuncia no início do filme, com o rádio noticiando o acúmulo dos ratos e do lixo na cidade de Gotham, enquanto Arthur se maquia para trabalhar ( como palhaço) : não há riso e sim abandono, solidão, descaso. Arthur é palhaço. Vive com a mãe e tenta se inserir na ordem do mundo por meio do trabalho: mas busca um reconhecimento que não encontra junto aos colegas e nem mesmo nas entrevistas com a assistente social que parece ser a responsável pelo tratamento psiquiátrico e pelo recebimento das medicações para controle da sua doença psicótica. Em um dado momento , diz a ela que não sabe bem “se existe” e não obtém ressonância, nada de uma escuta : e Arthur diz a ela que ela não ouve. No trabalho, ganha uma arma de um colega, a pretexto de ajuda-lo a se defender ( pois sofreu ataque de uma gangue quando trabalhava de palhaço). E diz ao colega” você sabe que não posso ter uma arma…”. Escreve em seu caderno algo como ” o problema de se ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você se comporte como se não tivesse”. O filme é bem construído na medida em que alguns dos seus delírios e alucinações nos são apresentados como reais, gerando a impressão de um borramento das suas vivências em relação aos fatos objetivos e suas percepções delirantes, recurso utilizado em filmes deste tipo ( como Tully http://www.gestoespontaneo.com.br/2018/07/02/natividade/ ). Este recurso gera empatia pela sua triste figura e uma maior compreensão do seu mundo mental. Há um sentimento de compaixão, senão simpatia, que surpreende, já que outros Coringas conhecidos de filmes anteriores não davam margem a este tipo de construção por sua vilania e crueldade. Mas seguir pelo caminho da “explicação” e justificativa do crime a partir da penúria e privação é sempre um caminho perigoso. O que comove aqui é a sua fantasia de cura* por meio do riso, do humor, humor que ele não acessa senão por imitação, por meio da máscara ( metáfora do seu não-rosto, do seu não-ser), humor que ele tenta buscar com o intelecto de forma obsessiva em seu caderno de anotações, copiando e assistindo a humoristas de stand-up. Mas Coringa não tem graça. Arthur tem um problema de riso inadequado que se expressa quase como um tique vocal nos momentos de maior angústia. O riso caricato de Arthur é bizarro e grotesco, e provoca no outro o que o “unheimlich” ( estranho) convoca: agressividade, asco- o Coringa é aquele para o qual os rostos não se voltam , é o feio, o louco, o estranho, o bizarro. E no entanto seu sonho é ir à TV e fazer os outros rirem; apresentar-se, fazer um show. Há um pai que existe-não existe. Fica pouco claro se o o pai do Batman é também pai de Arthur: no delírio dele, no delírio da mãe, ou na improvável hipótese de ser o pai de fato (que teria se eximido de filiá-lo por meio de um ato de coação à mãe, forçando-a a “assinar papéis falsos” de adoção). De todo modo, o menino jamais foi “adotado” por nenhum pai. Sua origem permanece indeterminada. (Mesmo filhos biológicos precisam ser de certa forma “adotados”- re-conhecidos: porque nenhum filho que nasce cumpre plenamente a fantasia de seus pais, e para se constituir pessoa precisará ser amado, filiado de alguma forma por alguém.) O menino escuta de sua mãe que sua missão na vida será trazer alegria e riso aos outros: a mãe o chama de “Happy” ( feliz). Feliz é tudo o que ele não é; mas a sina é tomada ao pé da letra – sendo o palhaço e carregando consigo a marca bizarra do riso imotivado, que denuncia sua miserável condição. A ironia está ligada à impossibilidade deste rapaz convocar o riso do Outro.

Para Freud, o humor é um dom precioso e raro. E é subversivo, porque proporciona um atalho para a expressão do reprimido, da agressividade- revela as imperfeições, as falhas, as incongruências e a fragilidade humana. Porém o humor permite que estes conteúdos se apresentem ao outro de forma aceitável: os chistes, as piadas e as ironias se utilizam de condensação e deslocamento para causar um efeito supreendente e que provoca o riso. O riso libera o corpo, e quando despertado pelo outro e pelos deslizamentos da linguagem , dá sentido a uma parte alienada do eu que se encontrava reprimida. Assim como o insight e apreensão estética de algo, o riso pode ser prazeroso não somente pela sua liberação motora mas também por integrar conteúdos do Si Mesmo, por ser atalho para enfrentar temores, vergonhas, sexualidade e morte recalcadas : ” numa brincadeira pode até se dizer a verdade…”

Assim o riso tem um papel civilizador, e a capacidade de humor é um recurso precioso para o indivíduo. Rir é gostoso, poder rir de si mesmo é como poder ser para Si Mesmo um pai bondoso que tolera o erro, o rebaixamento, a falha, o tropeço. Não para o Coringa que tem falhas básicas na sua estruturação: seu riso é uma caricatura, seu rosto é uma pintura, ele compreende as piadas com sua mente mas não é chamado a participar do banquete do mundo, está do lado de fora, está só.

Parece que o rapaz Arthur intui que o humor é a chave do simbólico que precisa acessar para passar a existir no mundo. Como um código, uma senha, que tenta descobrir. Sua busca fracassa, e o resto da história a gente já sabe; sem sonho e sem riso, sem humor e sem reconhecimento, resta a violência e o delírio. Interessante notar que à medida que delira o “Joker” cria para si uma identidade, um nome, e passa a existir no ato violento. Coringa forja o seu riso com o sangue da sua ferida-numa imagem fortíssima. Não há melhor metáfora para a sua maquiagem que o sangue (dor) transformado em riso -não pela via do humor, que se utiliza do recurso simbólico; mas pela concretude da marca deste sangue em seu rosto.

Los silêncios  . Quem fala no silêncio da menina que não fala?   

Os silêncios  . Quem fala no silêncio da menina que não fala?

Começa assim. Sexta de noite, depois de uma semana puxada de consultório, pós feriado, uma amiga querida nos convida para o cinema. O título do filme? Los silêncios. Hummm. No Instituto Moreira Sales. Sem pipoca. Chegamos. Cinema quase vazio,  começa o filme com a imagem de uma canoa, que chega a uma ilha . O barulho da canoa na água, a pouca luz , e passa pela cabeça a pergunta: valeu a pena vir? Porque começa um sono, que vem sim, do horário, do dia, do fim da semana, mas que enfim se transforma em viagem. De inicio, quero des- esperar , pular fora da canoa.

Depois entendo sem entender: esta chegada  é um convite . Como um preparo para a entrada neste mundo particular, feito de silêncios, nao-ditos, espíritos,  real  e imaginário. Dizia Victor Guerra que a transição sono- vigilia é a hora do fantasma, do sinistro, mas também a hora da entrada no mundo do sonho. Antes de adormecer, há um momento de transição, em que inicia o intercurso entre pensamentos, restos do dia, e devaneios, imagens… É a entrada num processo primário de pensamento, em que a mente escorrega em associações frouxas, figuras flutuantes, perdendo a linha reta das palavras e das ideias. É torvelinho. É a  entrega do corpo e da alma a um fluxo livre que desemboca enfim no sono e no sonhar. Me vem à mente: às vezes, como as crianças, demoro e custo a dormir, com dificuldade de me deixar levar para este momento de transição. Num dia tenso , falta a segurança para se sustentar numa canoa que balança. Quero  des-esperar e pular fora. Assim me sinto no cinema começando a ter sono até que uma luz , na tela, se transforma em uma pessoa que recebe e acolhe os passageiros da canoa. Percebo que também chego. Chego à ilha. Chego de canoa.

Um filme assim é como uma vertigem. Na vida diurna , moderna, estamos encharcados, empapuçados de palavras. Somos falantes , ou até ouvintes , mas há poucos lugares  para a  escuta . Assim é estranho penetrar no silêncio e se deixar envolver por ele. Filmes assim são preciosos. Densos , ricos nas linguagens não  verbais , envolventes. Transportam para o reino do silêncio e do sentimento, e nos ajudam a botar reparo no agora das coisas. O pensamento também é um modo de não estar presente. A película tem um andamento particular, muitas vezes lento : e o silêncio a atravessa de muitas maneiras. O escuro, a pouca luz. O não dito da menina, filha, índia, que começa a intrigar a gente: por que ela não fala? E o silêncio do luto. Trata este filme do desamparo de Amparo, viúva dos conflitos da Colombia, refugiada em uma região  fronteiriça numa comunidade amazônica. Sem trilhar o caminho da vitimização, retrata a mulher em seu processo de integração na comunidade , enquanto lida com sua grande perda.

Em ” Los Silencios” falam os mortos e falam os vivos, fala a modernidade e fala o modo mais primitivo de viver dos índios, em seu contato com o sobrenatural, com o ritual e em comunidade. Perto do final do filme se rompe o silêncio dos que antes foram calados , e então o luto de Amparo se encaminha para uma resolução ritual, poética. Se o poeta tentou fotografar os silêncios, Beatriz Seigner, diretora deste filme, bem logrou filmá-lo.

O filme está em cartaz.

Dificil fotografar o Silêncio. Poema de Manoel de Barros.

Museu- a história dentro da história.

Retirado de Folha-Uol

 

A Psicanálise? Uma das mais fascinantes modalidades do gênero policial, em que o detetive procura desvendar um crime que o próprio criminoso ignora.

Está em cartaz nos cinemas uma nova película, muito interessante, que conta a estória do roubo do museu nacional de antropologia do México, ocorrida em 1985, fato real. ( Museu-2018- diretor Alonso Ruizpalacios). Dois jovens mexicanos , que por diferentes motivos se encontram numa certa marginalidade em suas vidas, à margem, vivendo numa adolescência comprida, encompridada pelas próprias dificuldades, decidem roubar o museu de antropologia da cidade. Há um narrador que retrospectivamente conta a história de como os dois rapazes, engenhosamente, conseguem burlar o sistema de segurança  e realizar o roubo, no dia de natal, de várias peças do museu, ato aparentemente despropositado. Fica parecendo que o roubo e a esperteza , o desafio, a perícia , fascinam mais os rapazes do que o prêmio monetário possível a se conseguir com o tráfico destas peças. Outrossim, logo virão a descobrir que o seu roubo teria um valor inestimável, não mensurável, e que não seria possível conseguir alguém para comprá-las. Afinal, o que querem estes rapazes? Corre paralela à trama principal, em estilo road-movie, das peripécias deste Dom- Quixote-ao-contrário e seu fiel escudeiro, uma outra trama: a exposição dos motivos, dos enredos, das circunstâncias, que os levaram a este ato. É intrigante perceber que o protagonista, Juan, mentor do crime, tem seu código de honra e profundo respeito pela história do país; é conhecedor e admira, pensa, se encanta, com aquilo que rouba. Esta peculiaridade explica também o destino que escolhe dar para as peças, nas cenas finais do filme.
Podemos nos enveredar pela vertente social que está presente no discurso dos rapazes: a questão do colonialismo, das pilhagens sofridas na América por todo o sempre ,e na sua pouca consciência de valor, da crença quixotesca de Juan num resgate da cultura e do que é autêntico num país também assolado pela corrupção e pelo descuido com seu patrimônio. Como não pensar no incêndio do Museu Nacional do Rio de janeiro, ocorrido em setembro último? Esta realidade compartilhamos com o México e com nossos vizinhos aqui da América Latina. A gente fica torcendo para os nossos (anti)heróis encontrarem um jeito de se safar porque, apesar da astúcia e da gravidade do ato cometido, são ingênuos e quixotescos; e nem sabem bem o que roubam, o que querem roubar. Em alguns momentos parece que tentam se apropriar deste capital simbólico, do que seriam aqueles amuletos maias e seus instrumentos por se identificarem, como marginais, com a opressão sofrida por este povo  no contato com os espanhóis e cujo tesouro procuram resgatar. Para os povos pre-hispanicos (termo inclusive que os rapazes recusam, por trazer no seu bojo a referência à dominação) o ouro e a prata tinham um valor diferente, não monetário: assim também Juan e Benjamim não roubam o museu para enriquecer, mas para se apropriar de outra coisa.
Que coisa?
No texto “pacto edípico e pacto social”, Helio Pelegrino* articula a conexão entre o pacto edípico, que fala de triangulação familiar e da introjeção pela criança dos valores paternos, do limite e da interdição, com o pacto social, descrevendo como o estado corrupto e a corrosão dos valores numa sociedade dificulta o trabalho, em cada lar , de promover a maturidade de cada indivíduo. Há que crescer, mas, para que? Para quem? Para o que?
Da mesma maneira, quando nos seus começos a criança não consegue uma saída razoável para o seu drama familiar, também não cresce e não pode reconhecer a lei como sua, como algo a respeitar. Como diz Manoel de Barros: “tudo que não invento é falso”.  Para alguns a lei estará sempre fora , do lado de fora, incompreensível e ilógica porque não pôde  ser inventada de novo no jogo das identificações que ocorrem em tempos muito precoces…tempos quase pré-históricos.
Juan é um filho que o pai não re-conhece. Cenas belíssimas, do filho no consultório do pai, fazendo perguntas que não são respondidas, e de momentos em que ele não consegue ouvir as palavras articuladas pelo pai nos fazem intuir uma falha profunda na constituição de Juan como sujeito. É como se ele fosse o pai ao avesso, irresponsável, um zé-ninguém, o esquisito de uma casa onde todo mundo se encaixa em algum papel e ao “baixinho” cabe somente o lugar da exclusão. Juan é de baixa estatura e parece ser objeto de desaprovação geral. Será que inventa esse roubo magistral para ter um reconhecimento? Para ser visto como alguém capaz de fazer uma coisa realmente grande?
O bom Benjamim, parceiro de Juan, que tenta desistir de vender a pilhagem porque deseja voltar para cuidar do pai doente, também está à margem. Entraram ambos na faculdade de veterinária, mas Benjamim trabalha catalogando peças do museu, é um trabalho maçante, mas que possibilita o acesso ao sistema de segurança para facilitar o roubo. Nas cenas em que os rapazes ardilosamente se aproximam das peças tão valiosas, rompendo os vidros e os lacres que as separam do seu alcance, há o júbilo de se apropriar. Uma máscara é roubada. Juan brinca de colocá-la em seu rosto- e em um momento até alucina o maia Pacal, grande governante, a quem parece admirar.
Este filme também é a história de um filho em busca do seu pai. De alguma forma Juan não se encaixa e não consegue estar perto dele, senão pelos seus atos avessos, pelo seus contrários. Para Winnicott  o comportamento anti-social muitas  vezes esconde um pedido de ajuda, um apelo ao ambiente: apelo que Juan faz ao pai e que fica mais claro quando o filme vai se encaminhando para um desfecho, no encontro deles dois. Parece que o moço está disposto a pagar um preço alto por este reconhecimento!
Mas este poderia ser somente uma dos motivos para explicar esta história possível, dentro da história. Como diz o narrador no final: qual seria a verdade? Se  às vezes nem mesmo o próprio protagonista da história sabe o que se passou ali , dentro de si, e em sua própria história.
Um pouco como na vida de todos nós.
* Pacto Edipico e Pacto Social- Artigo escrito por Hélio Pellegrino no suplemento Folhetim da Folha de S.Paulo do dia 11 de setembro de 1983.

 

 

Benzinho: a nossa pietá brasileira.

Benzinho – A nossa pietá brasileira
Sobre a relação do homem com sua mãe, a nossa blogueira do Gesto Espontaneo , Cecilia Hirchzon escreve *:
“O homem, para ser “si mesmo” e para constituir a sua identidade masculina, terá de se separar desta Mulher, de quem dependeu totalmente. Já a mulher, para se constituir como tal, não precisa estabelecer necessariamente a separação – pode manter-se identificada com essa Mulher. Observamos, portanto, duas direções distintas: enquanto a mulher lida com a Mulher dentro de si através da identificação, o homem tem que se separar, tornar-se único, o que se constitui em uma urgência no desenvolvimento da sua identidade. A especificidade da identidade feminina caracteriza-se por ser geracional e infinita, isto é, podendo manter dentro de si três mulheres: o bebê menina, a mãe e a mãe da mãe. Essa condição possibilita à mulher o desempenho de diferentes funções sem violar a sua natureza. Pode ocupar posições diversas nas brincadeiras, onde ora é mãe, ora é filha, alternando papéis. Ou, ainda, na idade adulta, exercendo a sua feminilidade, ocupando o lugar de mãe e/ou mulher sedutora. Enquanto isso, o homem não se funde nessa linhagem – sua condição básica é a de ser um”.
No belíssimo Benzinho, de Gustavo Pizzi, que está em cartaz nos cinemas, o primogenito de Irene, mulher brasileira , mãe de quatro filhos, vai embora para a Alemanha a convite de uma universidade que está interessada no seu talento esportivo. O adolescente vibra enquanto a mãe se quebra, assustada com a partida súbita, fora de hora, do filho muito jovem. A história de Benzinho é o processo que se desencadeia com a chegada da noticia, suas idas e vindas , focado aqui no ponto de vista da mãe que vai tentando aceitar o momento que é de alegria e tristeza. Porque Irene é Pietá não vou contar aqui, para não dar um “spoiler” do filme. A interpretação de karine Teles é magistral. O amor materno aqui se desdobra em suas mais variadas possibilidades ( como diz a Adelia Prado, mulher é desdobrável) . A mãe suficiente boa, por sua saúde e sua capacidade de lidar com a perda e a separação, aparece na interpretação de Irene. Mãe suficientemente boa que se atrapalha, fica brava, dá chilique, chora, pira, respira, mas, enfim, ama. A gente fica apaixonada pela Irene. O longa foi escolhido como o filme brasileiro que vai disputar uma vaga entre os quatro finalistas ao Prêmio Goya de Melhor Filme Ibero-americano, considerado o Oscar espanhol.
E , para terminar, um poema, uma musica.

O gato andaluz*
(Rosa Alice Branco)
O meu filho caminha por aí. Já não sei
se é o Douro ou o Darro que lhe embala o sono.
Nem onde guardei as datas e o nome das ruas
ou se vou te encontrar logo à tardinha.
Deixei-me de saber e de pensar que sei.
Um gato arranha à minha porta a miar em andaluz.
Eu arranho a porta a dois dias daqui, duas horas
De avião. É proibido miar nos voos europeus.
Engulo a saliva do dia e assim se faz noite.
E não há gaivotas a gritar por mim. Por mim
estou eu à janela do avião. As malas
com que hei de dizer-te: cheguei. O teu abraço
como um rio qualquer onde corra água.
Esquecer o que ficou para trás e a língua que me fala.
Levar o copo à boca onde nasce a boca,
A fonte do quintal, a nascente do mar. O meu filho
Voa como se caminhasse descalço. Cruzamo-nos
no horizonte sobre a linha do rio onde deságua a luz.
E as palavras aquietam-se no seu nada.

( do livro Soletrar o dia, Ed escrituras, 2004)

* este artigo está postado em nosso blog na seção artigos e notícias ( “Os elementos masculino e feminino puro na clínica”).

La Vita in Comune- e seus homens imprudentemente poéticos.

“De vez em quando Deus me tira a poesia.

Olho pedra,

Vejo pedra mesmo.”

Adelia Prado

Em um certo momento do filme “la vita in comune” comecei a me perguntar se haveria uma final feliz , possível, para aqueles homens imprudentemente poéticos. Empresto aqui o título de uma outra obra* para falar de Filippo e os fratellos  Pati e Angiolino,  de sua amizade e de  sua inocência. Não deixa de ser engraçada a caricatura que a “vita in comune” faz da democracia, das mazelas da cidade parada no tempo que se chama Desperata**, e seus personagens.

A história é assim: Filippo é prefeito da cidade. Há pouco emprego, pouco progresso, e nas reuniões na câmara as criticas ao prefeito se tornam cada vez mais sérias. Querem construir perto do mar para atrair os turistas, mas Filippo gosta mesmo é de poesia, e vai ensinar literatura aos presos. Um deles é Pati, que se encanta e se transforma depois do contato com a poesia. Seu irmão, Angiolino, a principio se enraivece mas também se transforma por meio de um contato com o papa, que lhe diz para preservar a criação de Deus. A partir daí, a moda dos santos convertidos, ele que era um ladrão de galinhas, se regenera. Os três homens passam a compartilhar, poeticamente, e cada qual a sua maneira, um outro modo de vida. Aqui começa a utopia e o gosto levemente amargo da incompreensão -vai ficando mais clara a depressão de Filippo e a loucura dos irmãos. Porém o tema é tratado com leveza , com a poesia das imagens e da trilha sonora sempre presentes.

Os três Dons Quixotes encontram um doido que, a moda de Francisco de Assis, fala com os animais, e o acolhem. A imagem da arca de Noé aparece, com a utopia da paz entre os homens junto aos animais em harmonia e a terra-mãe protegida, cuidada. Algo como estar acolhendo o feminino de cada um.

Aparte os ( femin)ismos, acirrados nos nossos dias, e sem querer carregar bandeira; a película mostra a falta mesmo de poesia naquele mundo, onde pedra é pedra mesmo, onde falta espaço para o criar, lugar para o feminino. Este mundo masculino das coisas inanimadas e das relações robóticas, líquidas e utilitárias. Sem os objetos transicionais que dão sentido ao existir. Pois nos disse a Carla, também blogueira do Gesto Espontâneo, que a palavra poesia vem de poiseis, criar- transformar. Nesse sentido a poesia é o que reconecta o homem com o sagrado, a terra, o indizível, e o belo. São homens imprudentemente poéticos os heróis de La Vita em Comune. Vale apena assistir.

 

* titulo de um livro de Valter Hugo Mae, escritor português

**Aqui há um duplo sentido no nome da cidade; que pode significar “desespero” -“disperata” ou “aquela que em Deus espera- Desperata”. A polissemia é explorada de modo muito engraçado quando turistas chegam a cidade, logo no inicio do filme.

 

(La vita in comune – filme de Edoardo Winspeare, 2017. Em cartaz nos cinemas)

 

O gesto espontâneo de Francis Há

O filme Francis Há, do diretor Noah Baumbach (2013) está no netflix.

Para quem não assistiu no cinema, é uma boa opção. O filme narra as aventuras (e desventuras) de Francis, tentando achar o seu lugar ao sol em Nova York, e também no mundo adulto, em que parece não se encaixar. Grandona, desengonçada, espontânea, Francis e seus amigos são adolescentes tardios. Geração mimimi, geração nutela, geração nem-nem (nem trabalha, nem estuda)… Quem não escutou um destes termos e a explicação jocosa de que estes jovens estão se jogando da caixa d’água ou morrendo de propósito,  “feito passarinhos, avoando de edifícios” porque não querem crescer, ou não aguentam as frustrações? Não querem trabalhar, não querem dificuldades: “dá seis da tarde, largam a caneta”… ou: “foram criados na internet, tudo na mão, tudo fácil, não querem nada com a dureza”.

Hummmm… Ponho-me a pensar.

 

Na clínica dos tempos atuais constatamos um prolongamento da adolescência, toda uma geração de adultos jovens que não está conseguindo amadurecer. No entanto, amar e trabalhar, sair de casa, fazer parcerias e escolher uma maneira de ser autônomo é um desafio que enfrentam com dificuldade, nem sempre com essa placidez que aqueles termos pejorativos evocam. A geração mimimi está sofrendo de verdade.  Para Freud o trabalho pode “tornar possível o uso de inclinações pré-eexistentes, de impulsos pulsionais” a serviço da realização pessoal e da vida em comunidade. Winnicott diz: “se o que se pretende é que a vida instintual tenha liberdade de expressão...” haveria um equilíbrio que tem que ser obtido sempre de novo, em cada fase: “considerem um médico e suas necessidades. Privem-no de seu trabalho, e o que será dele? Ele necessita de seus pacientes e da oportunidade de usar suas aptidões, como qualquer outro profissional.”.

Privem o jovem adulto de usar suas aptidões… o que será dele?

Para estes jovens, estamos falhando em ser o ambiente que permite a realização: há os trabalhos criativos, e há os ofícios insanamente alienantes, e aqui eu não estou falando da alienação de Marx; eu estou falando da alienação do verdadeiro self. A morte psíquica é um desfecho possível, e quem viu o filme Arábia (Afonso Uchoa e João Dumas-2017) se entristeceu com a história do Cristiano, que escreve um diário, se apaixona, mas no final sucumbe, vira “coisa”, deixa de sonhar.

Francis sonha. E podemos sonhar este filme, como nos propõe Nino Ferro: Francis e seus amigos representando, cada um, uma parte do seu self (como no enredo de um sonho ou de uma sessão). O filme é uma fábula moderna sobre as vicissitudes da bailarina meio gauche, desengonçada, Francis, que com 27 anos enfrenta dificuldades para manter-se economicamente. Não  selecionada para o espetáculo de natal, ainda é uma adolescente: tem sonhos grandiosos de realizar-se como artista,  mas  não encontra reconhecimento no trabalho.Também não se acerta com o namorado :  “sou alta demais para casar” , e fala de si mesma  ” eu ainda não sou uma pessoa real, de verdade” . Da dificuldade de passar pela fase da adolescência diz ” sou uma pessoa que tem dificuldade em deixar os lugares” quando se demora no camarim, tentando organizar suas coisas após um ensaio, quando todos já foram embora.

 

Em várias de suas falas e no enquadramento do filme, quando dança, por exemplo, partes de seu corpo são deixadas fora da cena, e diz de si ” Nunca consigo saber como fiz meus machucados”. Esse corpo grandão e que escapa do esquema é tão próprio da adolescência, período de crescimento rápido, em que o corpo passa na frente e a mente corre atrás, atabalhoadamente, tentando dar conta do recado! Francis dança, mas é mesmo meio desastrada, como uma adolescente que cresceu rápido demais. Quando Sophie,  melhor amiga,  que pode ser sonhada como o seu duplo, de quem   diz “somos a mesma pessoa, com cabelos diferentes”, vai embora, inaugura-se  em Francis um período de solidão e busca de sentido,  marcado pela instabilidade: constantes mudanças de endereço  e viagens – a fuga para Paris, o retorno à universidade, à casa dos pais.  Outros personagens que vão aparecendo, todos na casa dos 30,e parecem encarnar os falsos-selves que Francis vai rejeitando em sua busca por autonomia e realização; os jovens ricos dependentes dos pais,  artistas que  nada produzem, a colega da companhia de dança que a acolhe em sua casa,  mas não sabe brincar. Francis, perto dos 30 e temendo parecer mais velha ( pois não se sente adulta), parece ser a pessoa mais desajustada, mas na verdade  é aquela que mais traz a marca da autenticidade e da alegria. Nem sempre estar bem ajustado significa saúde mental…se isso se faz às custas do estrangulamento do gesto espontâneo.

Podemos entender o tempo do filme como o tempo da adolescência,  tempo de estar sempre um pouco à deriva, sem respostas, de inquietude. Mas também tempo de rejeitar as falsas soluções. O que nós “adultos” ( rssss) gostamos de chamar de preguiça ou rebeldia ou aborrescência. ( É que a gente gosta de esquecer que já sentiu isso um dia – e vai sentir de novo: na menopausa, na hora de ter o ninho vazio, ao se aposentar, ao fazer o implante dentário, ao envelhecer…).

A cura da adolescência é a passagem do tempo. ” nos diz  Winnicott. Nós, terapeutas, vivemos com Francis, como expectadores, este marasmo que caracteriza tantos  momentos da análise dos adolescentes.

Enfim, nossa heroína consegue fazer a sua  passagem. No final do filme, tem a oferta de um trabalho de secretária ( aceito com  relutância), e se  reconcilia com a amiga que regressa do outro lado do mundo  ( simbolizando a integração dela mesma). Por fim alcançada alguma estabilidade,  inicia o trabalho como coreógrafa, inventando uma dança. Ela assim descreve sua coreografia       “gosto das coisas que parecem erradas”.

Três cenas finais indicam a elaboração da passagem da adolescência em Francis, de maneira muito poética. Na primeira,  orienta os bailarinos que vão ao palco encenar sua coreografia, mostrando a capacidade de estar na coordenação de um projeto original, autoral: a capacidade de trabalhar criativamente. Na segunda, o belo encontro de olhares de Sophie e Francis, ao fim da peça, que pode ser visto como o olhar amoroso, e também o espelho, o reconhecimento no olhar do outro, tão buscado pelo artista. E, enfim, a adequação ao princípio de realidade quando finalmente tem uma casa que é sua, e precisa cortar um pedaço de seu nome para que ele possa caber no  espaço da caixa de correio. É a aceitação da castração, como limite-borda definidora, parte do amadurecimento. Como nos diz Winnicott; “Ser, antes de fazer”. “O ser tem de se desenvolver antes do fazer…  finalmente a criança domina até mesmo os instintos sem a perda da identidade do self”. O nome comprido que pode ser cortado agora é Francis amadurecida, ajustando-se, sem deixar sua dança, sem perder a felicidade, o senso de identidade e a capacidade criativa. De uma forma dialética, e poética, o fazer também alimenta o Ser; assim acontece com Francis, que amadurece tarde, mas no seu próprio tempo.

para meu sobrinho, Thales Augusto.

 

Natividade

Latejar intervalado de orgasmo já em ferida.

Rotura. Espanto. Irreversível dor.

Um ventre inchado golfa a expectativa de si próprio.

Porém já fui pequena

Já fui também pequena

E me nasceram seios

E me cresceram pelos

E o sexo me floriu

No afago quente

Do primeiro sangue.

Um grito rouco. Um ventre rasgado de dentro.

Viscoso, um novo corpo

Tomba

E limita a eternidade…

Não tem olhos nem dentes, não tem nome,

Digere, vaga, suga,

É calvo, é mole, é outrem,

Só fúria sem contornos de crescer.

(Helder Macedo- Viagem de Inverno- 2000)

 

Tempos obscuros onde a maternidade não se acomoda mais dentro das expectativas da mulher moderna. O choque, o espanto, o horror, diante da dependência e da fragilidade. Mulher, o tempo se inscreve no seu corpo de modo muito marcado: a menarca, a gravidez, a menopausa. É o tempo marcando a mulher, limitada da eternidade, marcada. E no entanto! Como são fofinhos os bebês da propaganda do shampoo Johnsons!!! Como são lindos os papéis de parede azuis e lilases, os móbiles coloridos…

Por que então não estamos  inundadas de felicidade ao nos tornarmos mães?

Figura 1 Woman with shopping- Ron Mueck. 2013-detalhe

  Tenho trabalhado com estas mulheres envergonhadas, usando sertralina e palavras. São engenheiras, biólogas, são professoras, donas de casa

          são muito jovens, são mais velhas, tiveram gêmeos, tiveram parto prematuro, fizeram ovodoação, fizeram inseminação artificial, tiveram um filho planejado, tiveram um filho acidentalmente.

Quanta vergonha, não amar meu filho!!!”

Eu penso só no que vai ser da minha vida de agora em diante!”.  “Morei na Bélgica para fazer o meu pós-doc, não me apertava com nada, hoje tenho medo de dirigir, não consigo pegar o carro para ir a lugar nenhum, não consigo sair na rua com o bebê, acho que algo vai acontecer com ele”.

“Doutora, acho que tenho TOC. Tenho medo de o meu nenê ter frio, mas se o cubro, acho que vai ter calor, acordo toda hora para checar a temperatura do quarto, não consigo dormir pensando que ele não vai conseguir se descobrir nem se cobrir sozinho!… não sei o que faço, sei que é loucura; só que eu não durmo”.

Estranho! Como pode acontecer de não haver este reconhecimento, tão natural, biológico, tão programado! …Será???

 

 

Eu penso: sou capaz de fazer algo ruim com ela. Não quero ficar sozinha com ela. Quando a babá vai, antes do meu marido chegar, é a pior hora. Ela chora e eu não sei o que fazer, fico muito nervosa”.  

“Não deixo ela chorar. Tomo banho de porta aberta. Se ela chora, eu corro, pelada, molhada; sei que devia deixar ela chorar um pouquinho, não faz mal; mas eu não aguento.”

O estranho em mim. Meu filho, parte de mim, partiu exatamente de mim, do meu corpo, cresceu em mim, mas não é meu, não sou eu. Estranho e familiar. “Acho que não devia ter tido filho. Quis dar um neto para a minha mãe. Não achei que ia ser assim, não tive irmão. Quando tive o nenê comecei com essa cefaléia, fui internada no hospital, que vergonha, internar num  hospital onde todo mundo me conhece; aí que parei de amamentar, tomei muito decadron. Me fizeram um liquor e fiquei pior. Não acharam nada. Dor de cabeça não tem explicação e não passa com nada!!! Foi meu cardiologista que me deu  a fluoxetina, mas não adiantou, e eu parei. Está tudo tão horrível doutora”.

Em todos os relatos, a impotência. A perplexidade. Culpa. Vergonha… O estranho em mim. O estranho de mim. Quem sou eu, mulher, quem sou eu, mãe? As mães não vêm prontas, se constituem mães, assim como os bebês se constituem pessoas, inaugurando a família consigo. Como suportar a inexatidão deste processo: construído exatamente a partir de seus erros, tentativas, ajustes… Como controlar o que não tem controle? O que não tem governo, nem nunca terá, como canta o Chico. O que vem das entranhas, o que será que será? O que não tem juízo.

O que não faz sentido… Entre a depressão e o baby blues, mulheres numa contemporaneidade onde  bom senso e  instinto dão lugar aos manuais, à busca dos blogs, dos grupos de mães da internet, numa busca desesperada de referências: onde há tanta informação, não há informação nenhuma! Que sou eu? Mãe!????????? Mulher? “Eu dou peito livre demanda e lá em casa é cama compartilhada”.  “Tive parto em casa, foi maravilhoso, mas depois ele teve esta alergia: não posso comer: ovo, soja, leite, tomate, estou pensando em parar de amamentar”.

O que é ser mulher? Me diga menina, o que é feminina (agora é a Joyce quem canta)2. Ô mãe, me explica, me ensina…o que é feminina… E, principalmente: o que é ser mãe.

Ninguém fala a verdade tudo o que a gente passa no parto. Se eu soubesse que era assim, não queria. Porque ninguém fala a verdade para a gente! “

Porque o mistério nos horroriza. Em verdade, temos medo. Senhor, escutai meu estrondoso medo 3. Esta frase é no poema de Adelia Prado.É a Adelia Prado rezando.Rezando pedindo ajuda. Mãe no pos parto precisa de ajuda. É necessária uma tribo para cuidar de um bebê. E não uma mulher sozinha.

O filme Tully 1, do diretor Jason Reitman, nos traz a solidão de uma mulher que encontra na psicose um remendo para seu desamparo. Belíssimo, imperdível. Um retrato da maternidade. Que tão pouco se parece com os fantasiosos comerciais do shampoo Jonhson, do creminho para assaduras. A realidade da maternidade é assustadora e não perfeita; só na fantasia os bebês são tão bonzinhos e cheiram tãaao bem !!!.

Há três anos numa visita à pinacoteca, na exposição das esculturas hiper realistas de Ron Mueck, me deparei com uma obra de arte que muito me impactou. Woman with shopping, de 2013, que mostra uma mãe muito cansada, desarrumada, carregada de compras, que não olha para o seu bebê, que olha para ela, como uma interrogação. Depressão pós parto?

Estranho…O estranho em mim.

E chamo a Joyce de novo para arrematar essa conversa:

“Então me ilumina, me diz como é que termina?
– Termina na hora de recomeçar,

dobra uma esquina no mesmo lugar.

E esse mistério estará sempre lá
Feminina menina no mesmo lugar.”

Como  ajudar  tantas mães muito parecidas com esta: como oferecer uma ajuda ? Carregando para elas um pouco destas sacolas?

Winnicott, que foi pediatra toda a sua vida, dizia que bebê e mãe são uma coisa só; não existe “o bebê”; portanto, não se pode prover para os bebês um ambiente suficientemente bom, se a mãe não tem também um bom suporte.

Referencias

Figura – Woman with shopping- Ron Mueck. 2013

         2) Feminina– de Joyce  Moreno – uma inspiração!!!

  • 3)Do poema Impropérios, de Adelia Prado, do livro “O coração disparado”. Rio de Janeiro: Editora Record, 2013.

 

 

O Objeto Subjetivo à luz do filme ¨1945¨: por Diana Goldberg

O Objeto Subjetivo à luz do filme ¨1945¨

O filme de título 1945, se passa em uma pequena cidade/ aldeia no interior da Hungria, quando a Segunda Guerra recém terminou. Dois judeus chegam de trem a essa cidade carregando 2 baús, contratam um charreteiro para que possam transportá-los e iniciam sua caminhada atravessando a cidade.

Impressionante a sensibilidade e sutileza do diretor que, de forma extremamente sucinta e contida, consegue comunicar os inúmeros dramas que são mobilizados e despertados pela chegada dos dois homens, por meio dos quais o espectador vai depreendendo e se dando conta. Nada é claramente explicitado e mostrado, o que vai se revelando a cada momento é a vivência emocional e a estrutura de personalidade de cada habitante frente à chegada desses dois judeus que nada falam, nada fazem, apenas seguem caminhando.

 

Os sentimentos que são despertados nos distintos personagens revelam seu caráter.

O primeiro a se alarmar com a chegada dos desconhecidos é o chefe da estação, que rapidamente espalha a notícia a quantos moradores seja possível. Primeiramente, a um homem rico e poderoso na cidade, proprietário da farmácia, que está envolvido com os preparativos do casamento do filho que aconteceria naquele dia. Quem teria mandado aqueles dois judeus até lá? E assim a história se desvela, através das reações emocionais de cada habitante que projeta seus fantasmas.  Se constrói dessa forma o enredo do filme através dos sentimentos de culpa, sentimentos persecutórios, de negação, que os personagens expressam. Entendemos que os judeus que ali viviam antes da guerra foram levados para os campos de concentração, alguns traídos por seus melhores amigos. Após isso, os gentios que permanecem, tomam de forma ilícita suas casas e bens.

Cria-se o caos e o pânico entre os habitantes:  O Poderoso, muito nervoso e preocupado, havia se apoderado da casa e dos bens do melhor amigo, ao qual havia traído, e passa a demonstrar um comportamento psicopático de negação de seu ato, revelado pela mulher deprimida, a qual ele trata como doente mental. Esse mesmo homem destrata e humilha o filho, que não se comporta da mesma maneira autoritária e prepotente. Outro personagem, tomado pela culpa e desespero de ter se apropriado do que não era seu, querendo devolver o que não lhe cabe de direito, e sendo impedido, não suporta a angústia e se suicida.

Assim, temos uma rica oportunidade de constatar as teorias psicanalíticas segundo a luz de pelo menos dois autores distintos: Donald Winnicott, com sua Teoria do Objeto Subjetivo[1], e Freud, com o conceito de Projeção, assimilado e muito presente na obra de Melanie Klein.

Os dois judeus que ali chegam nada dizem, nada fazem, a não ser seguir caminhando e olhando ao redor, até chegarem ao cemitério judaico. Quando interpelados pelo Sr. Poderoso, o que queriam ali, respondem: ¨Viemos a um enterro¨; de quem pergunta o Sr. Poderoso; ¨Do que restou de nossos mortos¨; e assim como chegam, se vão. Toda a história é contada por meio do que a chegada desses dois senhores desperta nos moradores da cidade, pelos sentimentos projetados de culpa, medos persecutórios de descoberta e punição, negação maníaca de que seus comportamentos de apropriação indevida foram absolutamente lícitos, ou porque necessitavam, ou porque tinham escrituras que, na verdade, foram forjadas e falsas.

Além dos sentimentos despertados pela presença dos dois senhores, a situação tensa que se cria na cidade faz com que outras situações emocionais entre os moradores apareçam, revelando de forma contundente a natureza humana com o que tem de mais violento:  ódios, raivas, traições, interesses, inveja e ciúmes. A personagem mais lúcida é justamente a mulher melancólica, deprimida, que para aliviar seu intenso sofrimento faz uso de éter. Aquele que seria o mais íntegro só encontra saída partindo daquele lugar, justamente no mesmo trem em que partem os dois judeus, que não vieram a mando de ninguém, para reivindicar nada, cobrar nada, apenas para fazerem um enterro simbólico dos que já morreram.

[1] Conceito de objeto Subjetivo:  Para Winnicott, o ser humano não nasce do ponto de vista psíquico, ele vai se constituindo no olhar da mãe. Como o ser humano nasce numa condição de dependência absoluta e, nesse início, o bebê não sabe que é separado e diferente da mãe, como diz Winnicott: ¨o bebê é o seio¨, é importante que nesse início a mãe possa sustentar essa ilusão de onipotência, sendo essa uma mãe suficientemente boa que se adapta ativamente às necessidades do bebê, e assim sustenta a ilusão de que o bebê cria o seio. Esse conceito é central porque se refere a um aspecto essencial do desenvolvimento emocional que é a experiência da realidade subjetiva. A realidade subjetiva é a condição em que vive o bebê no início da vida e é através dessa condição que se dá a única possibilidade de percepção e apreensão do mundo.