Los silêncios  . Quem fala no silêncio da menina que não fala?   

Os silêncios  . Quem fala no silêncio da menina que não fala?

Começa assim. Sexta de noite, depois de uma semana puxada de consultório, pós feriado, uma amiga querida nos convida para o cinema. O título do filme? Los silêncios. Hummm. No Instituto Moreira Sales. Sem pipoca. Chegamos. Cinema quase vazio,  começa o filme com a imagem de uma canoa, que chega a uma ilha . O barulho da canoa na água, a pouca luz , e passa pela cabeça a pergunta: valeu a pena vir? Porque começa um sono, que vem sim, do horário, do dia, do fim da semana, mas que enfim se transforma em viagem. De inicio, quero des- esperar , pular fora da canoa.

Depois entendo sem entender: esta chegada  é um convite . Como um preparo para a entrada neste mundo particular, feito de silêncios, nao-ditos, espíritos,  real  e imaginário. Dizia Victor Guerra que a transição sono- vigilia é a hora do fantasma, do sinistro, mas também a hora da entrada no mundo do sonho. Antes de adormecer, há um momento de transição, em que inicia o intercurso entre pensamentos, restos do dia, e devaneios, imagens… É a entrada num processo primário de pensamento, em que a mente escorrega em associações frouxas, figuras flutuantes, perdendo a linha reta das palavras e das ideias. É torvelinho. É a  entrega do corpo e da alma a um fluxo livre que desemboca enfim no sono e no sonhar. Me vem à mente: às vezes, como as crianças, demoro e custo a dormir, com dificuldade de me deixar levar para este momento de transição. Num dia tenso , falta a segurança para se sustentar numa canoa que balança. Quero  des-esperar e pular fora. Assim me sinto no cinema começando a ter sono até que uma luz , na tela, se transforma em uma pessoa que recebe e acolhe os passageiros da canoa. Percebo que também chego. Chego à ilha. Chego de canoa.

Um filme assim é como uma vertigem. Na vida diurna , moderna, estamos encharcados, empapuçados de palavras. Somos falantes , ou até ouvintes , mas há poucos lugares  para a  escuta . Assim é estranho penetrar no silêncio e se deixar envolver por ele. Filmes assim são preciosos. Densos , ricos nas linguagens não  verbais , envolventes. Transportam para o reino do silêncio e do sentimento, e nos ajudam a botar reparo no agora das coisas. O pensamento também é um modo de não estar presente. A película tem um andamento particular, muitas vezes lento : e o silêncio a atravessa de muitas maneiras. O escuro, a pouca luz. O não dito da menina, filha, índia, que começa a intrigar a gente: por que ela não fala? E o silêncio do luto. Trata este filme do desamparo de Amparo, viúva dos conflitos da Colombia, refugiada em uma região  fronteiriça numa comunidade amazônica. Sem trilhar o caminho da vitimização, retrata a mulher em seu processo de integração na comunidade , enquanto lida com sua grande perda.

Em ” Los Silencios” falam os mortos e falam os vivos, fala a modernidade e fala o modo mais primitivo de viver dos índios, em seu contato com o sobrenatural, com o ritual e em comunidade. Perto do final do filme se rompe o silêncio dos que antes foram calados , e então o luto de Amparo se encaminha para uma resolução ritual, poética. Se o poeta tentou fotografar os silêncios, Beatriz Seigner, diretora deste filme, bem logrou filmá-lo.

O filme está em cartaz.

Dificil fotografar o Silêncio. Poema de Manoel de Barros.