Quando o sono da criança se torna pesadelo para os pais

( Artigo publicado na revista “Crianças”)

Por Cleyton Angelelli

Com grande frequência, pais chegam ao consultório pediátrico trazendo queixas de sono de seus bebês e crianças. Relatam buscas de um sem-número de tentativas de adaptações, receitas e técnicas, e muitos fracassos em “fazer” seu filho dormir. Muitos estampam desânimo e estresse no rosto, decorrentes de exaustão por semanas e até meses a fio.

Meu bebê tem algum problema? – é a questão que muitos nos fazem, especialmente quando se trata do primeiro filho do casal. Nós pediatras somos bastante mobilizados por essa queixa, e muitas vezes não encontramos nenhum fator clínico ou orgânico que justifique o problema do sono. Buscamos oferecer apoio, através de dicas, ideias e “jeitinhos” para “ensinar” a esses aflitos pais a lidar com a questão.

Como se tornar um novo pai/mãe afeta o sono?

O manejo do sono do filho, principalmente para os pais novatos, é desafiador. Mesmo sendo o foco desses pais o bem-estar de seus filhos, é necessário aconselhar que eles também prestem atenção às próprias necessidades e expectativas, especialmente quando os cuidadores estão operando com pouco tempo de descanso devido às mamadas noturnas e outras solicitações.

Esse impacto nas famílias é bastante significativo. Segundo os pesquisadores da área, enquanto pais perdem uma média de 13 minutos de sono por noite, as mães deixam de dormir por mais de uma hora por noite. E o sono dos pais não retorna aos níveis pré-gestacionais até que a criança atinja 6 anos de idade. Mães de recém-nascidos estão também sob risco de insônia, sonolência diurna, ansiedade, depressão, sono não repousante e fadiga. A privação de descanso pode aumentar os sintomas de depressão pós-parto, presente em 1 a cada 8 mães.

Ritmos diversos

 Dormir é universal, no entanto, sob o mesmo teto, podem conviver indivíduos com ritmos e necessidades diversas de dormir. Portanto, primeiro é necessário esclarecer para os pais alguns “mistérios” sobre diferenças entre o sono na infância e nos adultos. Um adulto saudável tem um sono consistente e previsível, que dura em torno de 7 horas por dia, na maioria das vezes ininterrupto. Já o recém-nascido pode passar 15 a 18 horas por dia dormindo, mas em períodos curtos, independentemente de ser dia ou noite e, não raro, com maior atividade acordado à noite, pontuam os especialistas.

O desenvolvimento de um ritmo do sono no bebê (o chamado ritmo circadiano, de aproximadamente 24 horas) começa a surgir na maioria das vezes entre 3 e 6 meses de vida, com a criança obtendo mais horas contínuas de sono noturno e menos horas de sono diurno. Porém, existe grande variabilidade individual e alguma imprevisibilidade nesse amadurecimento, e não é incomum que o bebê ainda tenha despertares durante a noite durante todo o primeiro ano de vida. A questão gera mais ansiedade nos pais quando esses se defrontam com um processo que pode ter muitos avanços e retrocessos, tanto por uma causa definida (como por eventuais doenças agudas, viagens, mudanças de endereço), como sem um motivo aparente.

Conforme a criança cresce, a arquitetura do sono vai se aproximando da do adulto, tanto na estruturação de um sono sem interrupções a noite, como diminuição da necessidade de dormir de dia. Perto dos 5 anos de idade, ela apresenta uma estrutura de sono semelhante ao adulto, conforme estudos com crianças de 2 a 8 anos.

Uma técnica de sono para chamar de sua

É típica a cena da criança surgindo – mais uma vez – no quarto do casal durante as madrugadas, em busca de proteção contra monstros que insistem em habitar sua mente infantil. Por sua vez, os pais não compreendem e se frustram por ela ainda ser incapaz de acomodar seus medos e sentimentos desconfortáveis à noite, em geral afetando seu descanso e tornando-se irritável também de dia. A continência parental é sufocada pelo cansaço, aumentando as tensões e conflitos familiares, em uma espiral de desamparo. Alguns pais relatam nervosismo ao final do dia, perto da hora da criança ir para a cama.

Não se pode culpar um pai e uma mãe exaustos por buscarem saídas. Muitas vezes os problemas de sono os afetam desde o período gestacional, ou mesmo antes, como aponta Genevieve DelRosario em seu artigo Moms need to sleep like a baby, too! (“Mães também precisam dormir como bebês!”, em tradução livre). A realidade do filho que não dorme contrasta com aquele bebê que um dia foi idealizado, e expõe muitos pais à insegurança de seu papel de cuidadores e às cobranças da cultura contemporânea, que almeja entregar resoluções rápidas e massificadas às várias questões parentais.

Assim, para equilibrar a complexa equação da privação de sono com a atenção ao filho, existem técnicas e experiências que os ensinam como “domar” o sono da criança e, de preferência, “sem traumas”. As opções são variadas, bem como seus resultados, uma vez que os pais esperam respostas e atitudes em relação ao sono dos filhos que talvez não estejam prontos para obter – deles e de si próprios.

Com isso, a chamada conquista da autonomia do sono pela criança é forjada por um infinito entra e sai dos pais no quarto do bebê, por noites seguidas, até que algum lado se renda. Dormir é “vitória” contra o oponente, e não dormir é “derrota” – sim, há uma guerra em curso! Uma guerra não poderia deixar de ser traumática para pais e filhos.

O ambiente de dormir para você não é o mesmo para um bebê e uma criança

O bebê percorre um caminho para amadurecer e adquirir um bom hábito de sono, de preferência em um meio (ambiente de dormir) e observando certa higiene do sono que o ajude a se desenvolver de forma adequada. É preciso investigar quais aspectos e hábitos propiciam a melhor qualidade do sono, incluindo a rotina criada para a hora de dormir, a duração do sono, a temperatura e luminosidade do ambiente e a presença de ruídos, entre outros. Essas variáveis são entendidas como facilitadoras – não necessariamente determinantes – para ajudar a iniciar e manter o sono durante a noite toda. Não é incomum o relato de que algo que pareceu ajudar em algum momento o bebê a dormir sem interrupções não parece ajudar em outro momento.

Mas o meio, para o bebê, tem mais dimensões e significados. Não só os desconfortos e ruídos ambientais, mas também os psíquicos, influenciam a dinâmica do sono da criança. O bebê e sua mãe têm um longo caminho unidos, mesmo após a separação provocada pelo parto. A mãe é o meio para o bebê. É através dela que o bebê se relaciona com o meio, usando o anteparo materno para lhe dar contorno e organizar sua rica sensorialidade. Ao funcionar em simbiose com ela, principalmente nos momentos iniciais, muitas vezes é o colo materno o melhor berço: nos primeiros meses de vida, muitos bebês dormem melhor e por mais tempo quando são aconchegados num colo.

O colo não disponível, como no caso da ausência física ou emocional parental, torna muitas vezes o sono do bebê tenso, curto, cheio de sobressaltos e interrupções. Nesse aspecto, a rede de apoio às mães e pais – como a ajuda de familiares, babás e outros “colos” – serve também para indiretamente suportar o bebê em sua necessidade de proteção.

Do mesmo modo, pode haver colo em excesso, na medida em que ao bebê não é dada a oportunidade de aprender a dormir sozinho se os cuidadores são excessivamente ansiosos ou superprotetores. Conforme vai crescendo, a maioria das crianças atinge a capacidade de integração que lhe permite dormir com independência – o colo vai sendo finalmente introjetado por elas. Outras, por sua vez, podem precisar por muito tempo do conforto no contato físico dos pais para poder se entregar ao sono.

Desconstruindo a “Torre de Babel ao pé do berço”

Para desfazer esse verdadeiro “diálogo sem legendas entre estrangeiros”, em que um não compreende o que o outro está tentando comunicar, com frequência é preciso buscar uma intermediação de um “tradutor” sensível ao peso que o tema tem em cada família.

Para além das dicas e técnicas, o profissional de saúde – seja o pediatra ou o psicólogo – pode oferecer escuta e apoio aos pais para que caminhem na compreensão da criança em sua reivindicação de colo e proteção, dando a ela o que necessita para suportar a ausência física dos pais, sem que isso coloque a todos em situação de desestruturação. Aqui há um cuidado necessário para ajudar os pais a entender que os fantasmas que assustam a criança podem estar ligados mais às suas próprias crianças interiores do que a questões do bebê.7

No atendimento, a conexão pais-filho, os personagens no entorno familiar e as histórias daquele núcleo são incluídos na avaliação e depurados. Desse entendimento sobre as relações é que surge o amparo para que novos estágios no amadurecimento do sono possam ser gradualmente alcançados, sinal de maturidade e independência da criança. Também há limites a serem confrontados e superados por ambos os lados, de forma segura e amorosa. É significativo lembrar: a criança estará pronta quando estiver pronta e o amadurecimento integral da criança, incluindo físico e psíquico, está intrinsecamente atrelado ao ciclo sono-vigília. A criança se desenvolve também durante o sono.

Foto do autor:

Cleyton Angelelli – Pediatra, com especialização e alergia-imunologia infantil e homeopatia. Membro do Departamento de Saúde Mental da Sociedade de Pediatria de São Paulo. Membro do Grupo de Desenvolvimento Emocional Infantil da Casa Curumim (São Paulo).

E-mail: agimedicina@gmail.com     tel: (11) 93404-6982


Depressão pós parto

É claro que te amo 

E tenho tudo para ser feliz 

Mas acontece que eu sou triste…

Vinicius de Moraes (1)

Depressão pós-parto

Por Arianne M M Angelelli

Psiquiatria da Infancia, Adolescência e Perinatalidade

Introdução

“Tenho medo do meu filho”, dizem muitas mulheres, diante da fragilidade e total dependência do recém-nascido. Sobre o filho temido estão projetados os medos, as fantasias, os remorsos e as culpas, o desejo de voltar atrás, de ser de novo livre, e também os restos de operações edípicas e pré-edipicas vividas pela mulher no passado. A afirmação pode parecer ilógica: que mal pode fazer à mulher um ser tão indefeso como o bebê? Nos tempos atuais, a supervalorização da criança (fato recente na história do mundo) e a tirania dos ideais exerce sobre a mulher uma imposição que transforma a maternidade. Em muitos casos vivências de persecutoriedade, perda, falibilidade e impotência dominam a cena perinatal: um drama em que uma mulher, geralmente sozinha, enfrenta grande adversidade ligada ao fato de tornar-se mãe.

Clitemnestra “Depois do assassinato”. Por John Collier, 1882, na Guildhall Art Gallery, Londres. Fonte: Wikipedia.

A trilogia grega Orestéia, de Ésquilo (escrita no século V_ AC) conta a saga de traições e vinganças da família real de Micenas. Na tragédia grega a rainha Clitemnestra mata o seu esposo, recém chegado da guerra de Troia, porque descobre que, para vencer esta guerra, o esposo havia sacrificado a filha do casal . Após assumir o trono, Clitemnestra toma o poder até ser assassinada, desta vez por seu filho Orestes, que vem para vingar a morte do pai. Mas é muito interessante como Clitemnestra descobre que seu filho está chegando para realizar essa vingança. Ela descobre a intenção de Orestes por meio de um sonho premonitório. Neste sonho, Clitemnestra dá à luz uma serpente, que abocanha seu seio e se amamenta de sangue e leite.(2).

Um filho que é uma serpente, um seio que gera sangue e leite, são imagens fortíssimas que atravessam os séculos e ainda hoje valem como metáforas das situações conflituosas e ambivalentes que podem ocorrer com a chegada do bebê. O processo gestacional, o parto e o puerpério exigem muito da mulher em termos físicos e psíquicos. Ao contrário do que se poderia pensar, nem a gravidez, nem o pós-parto são períodos de proteção contra a eclosão de surtos e doença mental. Essa mulher que a tragédia grega pinta com as cores da ambivalência, do amor e do ódio, é a mãe espoliada e machucada pelo filho, adoecida pela depressão ou psicose . O filho-serpente é um perigo e uma ameaça para esta mãe.

Podemos também evocar a relação entre a serpente que suga o sangue e o leite e a amamentação, inspirados pelo sonho de Clitemnestra. É comum que dificuldades na amamentação possam estar mascarando um quadro depressivo ou ansioso na mulher. E a ideia do “sangue” que se mistura no leite pode também ser ligada às questões transgeracionais, como uma loucura que “passa pelo sangue” e se reedita a cada geração.

Sabemos que é necessário, para cuidar de um bebê, um grande trabalho psíquico. Colocar-se a serviço do ser humano em porvir é muito cansativo, pois o ser humano não nasce pronto, e precisa de outro ser humano para se tornar pessoa. O desamparo da criança é vivenciado pelo cuidador. Neste momento delicado, o cuidador se dá conta do que representa esta empreitada. Por isso, aquele que exerce a função materna precisa de toda ajuda e, ainda assim, está só. O mergulho, a regressão ao mundo sem palavras, sensorial, ao mundo do tudo ou nada que é o cuidado diário do recém-nascido exige um grande esforço, pois o bebê representa o arcaico dos nossos primeiros tempos e demanda do seu cuidador a capacidade para se colocar em contato com emoções muito primitivas (3). Mas atribuir a uma só pessoa- a mãe- o fracasso ou o sucesso nesta tarefa complexa é fruto da simplificação e da idealização da função materna. Esta deve ser constituída a cada caso e precisa do apoio ambiental. A idealização da maternidade supõe “um saber atávico sobre o maternal” (4) que a clínica e a observação atenta nos fazem questionar.

Para Christina Wieland (5) a cultura ocidental e sua desvalorização do feminino contribuem para que a imago materna, que nos atravessa a todos, oscile entre a mãe santa idealizada e a bruxa, justificando ora a veneração e ora a violência contra a mulher. Este estado de coisas não ajuda em nada quando a mãe se depara com o bebê real e se defronta com a maternagem que ela realmente pode exercer. A reação da sociedade à dependência experimentada nos estágios iniciais da vida, quando a mãe tem total poder sobre nós, e que reprimimos em nossa busca por autonomia e individuação, pode se transmutar em todo tipo de hostilidade, velada ou não, contra a Mãe.  Mesmo a visão mais romântica da amamentação, por exemplo, e o cuidado mais bem-intencionado podem estar a serviço de uma tirania não consciente que rouba à mulher o exercício da sua subjetividade e criatividade. A crença no instinto maternal e os preconceitos motivados por essas razões inconscientes levam também à dificuldade que a própria mulher tem de procurar ajuda de quando adoece psiquicamente, na gravidez e no pós-parto.

A partir disso falaremos aqui de alguns conhecimentos úteis para o profissional psi, no que concerne à depressão periparto e sua terapêutica dentro do campo da psiquiatria, assim como de algumas implicações que a patologia pode ter sobre o desenvolvimento da criança.

Quadro clínico da depressão pós-parto

Diferenciando Saúde e Doença.

Atualmente, pela grande quantidade de quadros de humor diagnosticados no pós-parto terem se iniciado já na gravidez, prefere-se utilizar o termo depressão periparto para englobar estes casos também. A alteração do humor relativa ao sentimento de culpa, a preocupação e a tristeza fazem parte da vida e da condição humana. Em fases de transição, como o a gravidez e o puerpério, reações de ajustamento são comuns. Por isso é necessário fazer a distinção entre as reações patológicas e as reações adaptativas normais de todo este processo. Antes do parto, os quadros psiquiátricos se correlacionam com um pior desfecho obstétrico- a tristeza ou ansiedade na gravidez, para além de um certo limite, tem muitas consequências. Já no pós-parto a diferenciação entre blues puerperal e depressão é muito importante, pois o “blues” é autolimitado e não deve ser Medicalizado*. Como estabelecer esta diferença? O blues puerperal é uma condição transitória e muito frequente relacionada ao cansaço, sentimentos de desamparo e flutuações hormonais. É própria à situação de adaptação da mãe ao recém-nascido e às mudanças no primeiro mês após seu nascimento. A transitoriedade (pico de sintomas na primeira semana, com resolução dentro de no máximo um mês) e a característica flutuante do quadro, sem marcas de gravidade, indicam que a conduta nestes casos deve ser de apoio à puérpera e suporte ambiental. Se, por outro lado, os sintomas de humor seguem um curso de piora progressiva, evoluindo para a caracterização de um episódio depressivo maior, a mulher deve ser encaminhada para tratamento.

Sintomas

Os fatores mais importantes que justificam a hipótese de um episódio depressivo, independente de sua ocorrência dentro ou fora do pós-parto, são o humor triste e a ausência de prazer na vida. Alterações de apetite, sono, alterações cognitivas como distratibilidade e perda de memória, fadiga e sentimento de culpa ou vergonha costumam estar presentes, mas nem sempre indicam depressão se encontrados isoladamente. Os critérios para o diagnóstico da depressão não variam no período perinatal em relação a outras fases da vida (ver tabela 1) embora haja algumas particularidades desta fase: a presença de ansiedade e preocupações obsessivas com o bebê (8). É importante distinguir a depressão com características ansiosas de situações potencialmente angustiantes, comuns na gravidez e pós-parto, ligadas a estressores como falta de suporte, complicações gestacionais ou questões de saúde do bebê. A preocupação materna primária- um estado particular das mães de bebês pequenos e que se caracteriza por forte conexão mental e emocional entre a mãe e filho (9) faz parte da saúde, assim como os dilemas e conflitos característicos do momento de transição para a parentalidade.

A retração da libido, caraterística da depressão, encontra na fase puerperal um fator agravante: a presença do bebê que necessita ser cuidado. A mãe que está bem dirige a seu filho sentimentos que brotam de sua vida sexual, num sentido amplo- o bebê é investido eroticamente por ela, que se ocupa do seu corpo, alimentação e bem-estar, encontrando verdadeiro prazer no seu contato (10). Na depressão, está reduzida a energia libidinal disponível para este investimento, pois a mãe se retrai. A tarefa do cuidado com o bebê passa a ser penosa ou carregada de preocupações. Então, a face oculta da maternidade, que para a maioria permanece reprimida, vem à tona: componentes agressivos e terroríficos como os do sonho de Clitemnestra, e a ambivalência – sangue e leite- que existe nos sacríficios que o estado de neotenia do bebê exige da mãe. A mudança radical que ocorre na vida da mulher ao tornar-se mãe (geralmente mais marcada na vinda do primeiro filho) é um luto impossível quando esta adoece num quadro de depressão. A nova condição é vivenciada como perda da identidade. A mãe se sente incapaz de fazer face à responsabilidade da tarefa. Muitas mulheres tem a sensação de que a maternidade é uma espécie de malogro (perda de liberdade, transição para um papel que a oprime) e o humor deprimido impede que as perdas e mudanças de rumo na vida na transição para a parentalidade sejam compensadas pelo investimento narcísico no filho (11). Isso pode se iniciar já na gravidez. Após o nascimento da criança, vicissitudes relativas a ela podem seguir um caminho de mão dupla: quando algo ocorre com o bebê (por exemplo, a internação prolongada numa UTI, uma doença ou síndrome, retraimento excessivo, questões na amamentação) e a mãe não pode “se alimentar” do seu amor, o risco de depressão também aumenta.

        A disforia é um sintoma de humor comum na depressão perinatal e pode ser descrita como um sentimento de mal-estar constante associado à irritabilidade. Pode prevalecer sobre o sentimento de tristeza e se associar à angústia, (descrita como o aperto ou peso no peito) e choro frequente. Os equivalentes orgânicos do afeto (sono e apetite) comumente se alteram na depressão perinatal. No pós-parto, quando o bebê tem despertares na madrugada, a insônia e o cansaço materno não podem ser explicados somente por este fator, pois a dificuldade de dormir novamente após um despertar noturno ou repousar durante o dia, decorrentes da depressão e ansiedade, pioram o cansaço da mãe.

        O sintoma fadiga, ou cansaço excessivo, deve ser bem investigado. Se ele não cede após períodos de descanso pode ser na verdade um sintoma depressivo. Fadiga e perda de energia estão presentes em muitos puerpérios de mães saudáveis; pelas demandas da fase, principalmente quando há pouco auxílio ambiental. Um estudo inglês recente relaciona a solidão e sobrecarga da pandemia de COVID 19 a aumento da sintomatologia depressiva nas mães (12). Por isso, a avaliação clínica deve levar em conta o contexto, o conjunto dos sintomas e o humor associado, e não somente a queixa isolada. Não podemos nos esquecer também de fatores orgânicos que podem concorrer neste momento. Nos casos de muita perda de energia e astenia, doenças físicas e desequilíbrios hormonais tem de ser investigados. Alguns quadros puerperais de base sistêmica podem ter sintomas que se confundem com a depressão: anemia, tireoidite pós-parto ou hipotireoidismo, síndrome de Sheehan (falência hipofisária decorrente de choque hipovolêmico-perda excessiva de sangue- durante ou após o parto), doenças autoimunes, encefalite e outras doenças infecciosas, reações a medicamentos, entre outros. Assim, o diagnóstico diferencial da depressão pós-parto inclui a pesquisa de quadros clínicos que a agravem ou melhor expliquem.

        Os sintomas cognitivos da depressão podem ser muito perturbadores. Na depressão, queixas de memória e distratibilidade não se explicam apenas pelo cansaço da fase. Dificuldade de se organizar, de tomar decisões, tendência a procrastinar e preocupação com detalhes são sintomas derivados de alterações cognitivas que contribuem para um agravamento dos problemas cotidianos, levando a certo caos que deixa a mulher ainda mais paralisada. Anteriormente eficientes e capazes de enfrentar situações desafiadoras, no trabalho ou em outras áreas da vida, as mulheres deprimidas veem-se ineficientes e bloqueadas na própria capacidade de pensar. Encaram a maternidade como dificuldade intransponível.  Preocupações e ruminações obsessivas de causar dano ao bebê podem aparecer, e mesmo pensamentos de morte e ideação suicida. O suicídio é uma das maiores causas de morte materna até que se complete o primeiro ano de vida da criança. (13). Muitas vezes ocultados na entrevista com o médico ou terapeuta, pensamentos suicidas devem ser investigados.

        Para evitar o diagnóstico em quadros transitórios, a maioria dos manuais classificatórios de psiquiatria pede a presença de duas semanas de sintomas para caracterizar o transtorno depressivo maior (vide tabela 1), visto que situações passageiras podem ser autolimitadas. Quase sempre há flutuação dos sintomas no tempo, com alternância de momentos melhores e piores, sendo comum a piora matinal.  

        A depressão pós-parto é um tabu porque é vista pelo imaginário social como sinal da inapetência do amor materno, tão idealizado em nossa cultura. Existe subnotificação, retardo em procurar ajuda e não reconhecimento do quadro em muitos casos, que permanecem sem tratamento. (14) Em um estudo, apenas um terço dos pediatras sentia-se capaz de reconhecer os sintomas de depressão pós-parto das mães que frequentavam a sua clinica (15). As mães podem esconder seus sintomas por vergonha ou desconhecimento.

        Prevalência e fatores de risco

        A prevalência de depressão periparto varia nos estudos, inclusive por diferenças metodológicas. Em condições sociais particularmente desfavoráveis, a prevalência pode estar bem acima acima dos 10-13% encontrados na maioria dos estudos populacionais (13,14,16). Dificuldades sociais e familiares, pobreza e gravidez na adolescência, entre outros fatores, aumentam seu risco. A depressão pós-parto masculina pode ser um gatilho e um agravante para a depressão materna, tendo uma prevalência média de 10% e ocorrendo principalmente entre o terceiro e o sexto mês após o nascimento do filho (17,18). A complexidade da situação puerperal nos deve fazer atentar para os sintomas que podem surgir no bebê, na vida de relação e na família, e que podem estar relacionados com um quadro depressivo não identificado. Porém, o fator mais importante de risco é a depressão gestacional ou episódio anterior na vida da mulher. A suscetibilidade à depressão depende de fatores endógenos e individuais, sempre observados nos relatos do transtorno através dos tempos (19). Alguns fatores de risco comumente encontrados para o transtorno estão elencados na tabela 2.

                Não há consenso sobre o ponto de corte no tempo a partir do qual um quadro depressivo na mulher não mais se correlaciona com o período pós-parto apesar de os manuais classificatórios especificarem uma data específica (6 semanas pós-parto no caso da CID 10 e 4 semanas pós-parto no caso do DSM V (20).  Alguns estudos consideram até um ano após o parto, levando em conta a magnitude do estressor “filho” que perdura por muito mais que um ou dois meses depois do nascimento! A variação no critério tempo de início do quadro dificulta a comparação entre os estudos.  Quanto ao curso da doença, o episódio depressivo no puerpério tem algumas particularidades: em geral persiste por seis meses, mas um terço das mães ainda apresentará sintomas mesmo depois de dois anos (22). Também pode haver maior demora na resposta às medicações, além da grande particularidade da questão da amamentação que discutiremos adiante.

        Diagnóstico Diferencial

        É importante ter em mente que parte dos quadros de humor puerperal não serão depressões unipolares, mas sim bipolares- portanto algumas de nossas pacientes serão na verdade portadoras de transtorno bipolar. Casos de depressão pós-parto que na realidade se encontram dentro do espectro bipolar apresentam maior incidência de crises de pânico, irritabilidade, impulsividade e labilidade do humor, e irão implicar em mudança no diagnóstico e perspectiva do tratamento. Um indício de bipolaridade é a má resposta ou piora com o uso de antidepressivos (23). A investigação dos antecedentes pessoais e familiares de transtorno bipolar do humor pode auxiliar o clínico na questão do diagnóstico diferencial. A bipolaridade, porém, não é a única causa de resposta paradoxal ao tratamento. Algumas doenças sistêmicas ou cerebrais podem estar presentes associando-se à depressão, agravando-a ou explicando totalmente os sintomas apresentados, o que muda o diagnóstico ou influencia a conduta terapêutica.

        Os sintomas obsessivos podem estar presentes no quadro depressivo perinatal, por vezes com intensidade e gravidade suficiente para justificar o diagnóstico de TOC (transtorno obsessivo compulsivo) comórbido. São preocupações e pensamentos de caráter rígido, incapacitante, para além de um excesso de zelo com o bebê. Preocupações hipocondríacas e pensamentos de causar dano à criança podem estar presentes, causando grande sofrimento.  

Tratamento da depressão periparto

Se nos casos de Blues pós-parto as medidas de suporte costumam ser suficientes, trazendo melhora e alívio, nos casos de depressão encontramos um estado melancólico ou ansioso que se agrava pelas demandas do bebê. O tratamento deve ser tríplice com medidas psicoeducativas e ambientais, provendo cuidado à mãe e ao bebê, psicoterapia e medicamentos, observando-se as particularidades do momento. À mãe com antecedentes de depressão, ou bipolaridade na família, o pré-natal deve incluir a indicação de suporte psicológico sempre que possível. Nos casos mais leves a psicoterapia pode ser indicada isoladamente, sem prescrição medicamentosa, mas em geral não é fácil a decisão terapêutica no caso do ciclo gravídico puerperal; pois se o uso de fármacos na gravidez e amamentação não é isento de riscos para a mãe e para o bebê, também são grandes as consequências para ele da doença depressiva materna e doença mental da mãe, em geral. (24-32)

A decisão de tratar com medicamentos a mulher no ciclo gravídico-puerperal deve levar em conta o risco/benefício em cada caso, a gravidade e a decisão pessoal da mãe. Casos de depressão moderada a grave geralmente não podem prescindir do uso de medicamentos, assim como nos casos geralmente mais graves de depressão bipolar. Não existe medicamento totalmente seguro quando entramos neste campo, mas diversos consensos, constantemente atualizados, auxiliam o clínico que atua nesta área (33,34).  Há medicamentos sabidamente teratogênicos e outros cujo risco parece ser mais baixo. Há drogas que apresentam uma maior transferência para o leite materno, e outras que tem menor passagem ao leite, e assim por diante.

 Alguns princípios gerais devem guiar a conduta do clínico, como evitar usar polifarmácia e tentar utilizar as menores doses possíveis dos medicamentos aparentemente mais seguros em cada fase (gravidez, amamentação, puerpério). Deve-se levar em consideração a resposta da mãe a determinados fármacos e evitar fazer trocas de medicamentos desnecessárias. O alívio do sofrimento dentro da possibilidade de menor risco possível deve nortear a conduta. Algumas medicações anteriormente consideradas seguras podem vir a se associar a maiores riscos conforme as evidências cientificas vão se acumulando. Outros medicamentos, anteriormente proscritos, como por exemplo o lítio na gravidez, passam a ser mais bem aceitos quando os trabalhos mais recentes passam a evidenciar um risco mais baixo do que se pensava anteriormente.

Uso de medicamentos na amamentação.

Na depressão pós-parto há quatro tipos de medicamentos mais usados no controle e alívio dos sintomas (35-39). Os antidepressivos podem pertencer a classes diferentes, como os tricíclicos e os inibidores de recaptação de serotonina, entre outros. Dentre as opções disponíveis, contamos com drogas relativamente eficazes e seguras para o uso na amamentação. Não se justifica a interrupção da amamentação por conta da necessidade do uso de antidepressivos pela mãe. Alguns antidepressivos considerados mais seguros (como a sertralina a paroxetina e o escitalopram) apresentam baixa razão leite/plasma (proporção entre a concentração de droga presente no leite em relação à concentração no sangue da mãe). Não parece haver prejuízo cognitivo ou de desenvolvimento para os bebês em aleitamento no caso de várias destas medicações, o que encoraja o seu uso- quando sabemos das consequências da depressão não tratada para o desenvolvimento do bebê.

Os benzodiazepínicos e os indutores de sono também podem se fazer necessários para tratamento do sono e ansiedade maternos, com ação rápida e sinérgica ao efeito dos antidepressivos, principalmente nos quadros mais agudos. Podendo ter um efeito de sedação nos neonatos que amamentam, devem ser usados com cautela, mas são em alguns momentos mais eficazes e rápidos do que outros medicamentos. Aconselha-se o uso pontual e por curto período destes medicamentos para controle de sintomas agudos das depressões que podem cursar com muita ansiedade e angústia.

Finalmente, os antipsicóticos e os estabilizadores de humor podem ser necessários, havendo opções mais indicadas para uso nesta fase. Alguns antipsicóticos e estabilizadores de humor como a quetiapina mostram-se relativamente seguros tanto na gravidez quanto na amamentação. Caso especial é a depressão que se relaciona com o transtorno bipolar- seu manejo é mais difícil pois pode ser exacerbada pelos antidepressivos. Nos casos de pacientes bipolares infelizmente a polifarmácia é mais regra do que exceção. Quando a mãe não está amamentando, a escolha do medicamento deve ser direcionada para aquele que apresenta maior evidência de resposta para ela. Não é necessário, porém, interromper a amamentação ao iniciar o tratamento da mãe, assim como em muitos casos não é prudente interromper o medicamento antidepressivo na gravidez – aqui pesem o desejo materno e a avaliação do risco de tratar e não tratar que é diferente em cada caso.

Há muitos medicamentos que podem ser utilizados na amamentação inclusive para que as mães deprimidas possam estar em condições para fazer psicoterapia. Nos transtornos de humor, pode haver dificuldade de engajamento no processo de psicoterapia e de aderência aos outros tratamentos disponíveis. O uso da medicação traz alívio dos sintomas incapacitantes propiciando uma melhora nos outros aspectos da vida, na medida em que a mãe consegue se mobilizar para buscar ajuda. Para muitas medicações a literatura não encontra associação entre uso materno e prejuízo cognitivo ou emocional das crianças – seja na gravidez ou na amamentação. O uso de antidepressivos na gravidez, como observado nos estudos mais recentes também não parece se correlacionar com o aumento do risco de transtornos do espectro autista (40,41).

Há medicamentos novos com ação hormonal que parecem ser promissores, como a brexanolona (https://www.medscape.com/viewarticle/910643)- ainda não utilizada no Brasil.

Consequências da Depressão Puerperal

Do ponto de vista psiquiátrico, o período perinatal é momento de vulnerabilidade. A maneira como se dá o puerpério e suas reconfigurações, em termos de papéis assumidos e para o psiquismo, tem consequências duradouras em vários campos da vida materna e do filho. A presença de depressão neste momento é preditor de crises depressivas futuras e de dificuldade de reorganização da vida pessoal e profissional da mulher.

Estudos recentes cada vez mais apontam para as consequências da depressão materna na prole, com prejuízo na interação mãe-bebê (menor reciprocidade, estimulação e vocalizações da mãe para com o bebê) e alteração de vários indicadores em seu desenvolvimento (interacionais, motores, cognitivos e sociais), assim como piora da qualidade do apego e maior risco de morbidade psiquiátrica futura (24-32). Porém a interação entre os fatores da doença materna e suas consequências na criança é complexa. Num estudo realizado em nosso meio, filhos de mães deprimidas desenvolveram mais rapidamente a linguagem (24), ao mesmo tempo que tinham pior índice de reciprocidade social. As consequências da depressão materna na prole dependem de vários fatores, como o suporte social, a resiliência da família e da própria criança. Visto que parte dos quadros já se inicia na gravidez, fatores nutricionais, descuido com o pré-natal, uso de drogas psicoativas e álcool, e mesmo alterações de dieta ligados a um precário estilo de vida interferem no desenvolvimento do feto e da criança. Já foi descrito o aumento da morbidade psiquiátrica na prole de mães submetidas a estresse em situações de guerra até as gerações futuras. Este fato tem sido associado a alterações de metilação do DNA fetal que se transmite aos seus descendentes (32). Seria este um correlato biológico para o que conhecemos em psicanálise como transgeracionalidade?

 Sabe-se que mães com depressão podem se mostrar capazes de manter o nível de interação com seus bebês por mecanismos compensatórios, direcionando ao filho sua energia em detrimento de outros aspectos de sua vida, principalmente nos casos de depressão mais leve. A relação da depressão materna com o padrão de apego apresentado pelo bebê parece ser consistente, direcionando a forma com que a criança tenderá a interagir com o ambiente, sua regulação emocional e autocontrole na vida futura. Bebês de mães deprimidas, principalmente se cronicamente deprimidas, são um grupo de risco para doenças psiquiátricas. Os primeiros mil dias de vida, contados a partir da concepção, parecem ser cruciais para o desenvolvimento físico e psíquico do indivíduo e a neurociência tem demonstrado prejuízos ao desenvolvimento ocasionados pelos traumas ocorridos no início da vida (32).

        Na clínica com bebês de 0-3 anos, encontra-se muitas vezes nos casos de depressão ou ansiedade maternas uma certa intrusividade que pode ser tão danosa como a negligência nos cuidados. A simbiose neste caso não funciona de modo a promover sintonia entre mãe e filho, mas destina-se ao controle e alívio da culpa e persecutoriedade maternas, podendo ocasionar um desequilíbrio dos ritmos no neonato e um excesso de excitação do mesmo. Seus sinais de retração não podem ser acolhidos nem traduzidos como necessidade legítima de repouso, de auto-regulação. Acriança pode reagir a esta invasão com uma imobilidade defensiva se a mãe “estiver muito agitada- encobrindo, pela atividade, uma depressão própria- ou demasiadamente excitante e estimulante, não permitindo, ao bebê, o intervalo e o tempo necessários a uma apropriação. (42). Nestes casos, tudo pode parecer bem com a mãe zelosa e conectada com a criança, mas aparecem problemas psicossomáticos ou de sono no bebê- invadido pela hipervigilância materna, ele não “desliga” e não descansa.

        Se não há queixas específicas, a ameaça pode estar projetada nas figuras mais próximas da mãe (avó, sogra, parceiro). Neste caso, surgirão conflitos familiares difíceis de manejar. “Hoje… a mãe deve enfrentar sozinha este desamparo que ela não compreende e que não é reconhecido socialmente… Ela tenta, frequentemente, apoiar-se na única pessoa que está a seu alcance: seu marido. Ela espera dele o que deveria esperar de uma mãe: que a ajude, que cuide do bebê para ela, o que frequentemente causa problemas, dificuldades para o casal ou fragiliza e afugenta o pai.” (11). Se o ambiente não é capaz de metabolizar a angústia da situação, pode reagir retaliando a mãe ou atacando o seu vínculo com o bebê que a todos parece excessivo ou inadequado.

Existe preconceito e desinformação de muitos clínicos em relação aos riscos dos medicamentos usados para tratar os transtornos puerperais. É comum a interrupção de medicamentos necessários para a mulher com depressão, quando engravida, aumentando a chance de depressão perinatal. Da mesma maneira, ao amamentar, muitas pacientes preferem não usar medicações psicotrópicas, temendo prejudicar o bebê, por desconhecerem os riscos da própria depressão, acreditando que seu sofrimento irá preservar o filho. O sacrifício materno acaba sendo contraproducente, pois no início da vida, em termos psíquicos, mãe e bebê compõe uma díade e o sofrimento e as dificuldades acabam sendo compartilhados, direta ou indiretamente.

Conclusão

Apesar dos tabus envolvendo os transtornos mentais perinatais, vem se notando maior mobilização social e pelos profissionais da saúde para fazer frente às demandas das mulheres, bebês e famílias. O profissional de saúde que se dispõe a trabalhar neste campo deve equilibrar a percepção da vulnerabilidade tão característica desta fase com a tendência autoritária do discurso que por vezes domina a visão medicalizante quando se fala da doença mental da mulher no puerpério. Quantas iatrogenias podem acontecer por falta de compreensão destes processos! A provisão ambiental não deve usurpar o protagonismo parental deste momento, o que muitas vezes ocorre, mesmo que disfarçada sob o discurso de uma ordem médico-científica que reivindica para si todo o saber. Temos situações de abandono e situações de intervencionismo que em nada ajudam a mãe (e o pai, muitas vezes também alijado de toda decisão). Às vezes a mãe chorosa sai da consulta com o especialista (obstetra ou pediatra) com uma prescrição de sulpirida (EquilidR) para se “acalmar” e “ter mais leite”, quando sua lactação é normal e tudo o que precisa no momento é ser ouvida e obter suporte. Em que medida a prescrição de um neuroléptico como o “equilid” é capaz de embotar o afeto e a libido, prejudicando o vínculo mãe-bebê, é tema para ser estudado ainda. As emoções e a regressão que ocorrem na perinatalidade não devem ser consideradas como doença e se há uma “cura” para este estado de coisas, essa cura é o descanso, o suporte ambiental, a boa escuta e o próprio tempo passado com o filho… Como diz Winnicott:

A mãe, que talvez esteja fisicamente exausta, e, talvez, incontinente, e que está dependente para muitas coisas, é ao mesmo tempo a única pessoa que pode apresentar o mundo ao bebê de modo significativo para este…, todavia, seus instintos não conseguem se desenvolver se ela estiver amedrontada… o leite materno não desce como uma excreção- é uma resposta a um estímulo que consiste exatamente na visão, no cheiro, e no contato com o bebê, bem como no som do seu choro. (43).

Obstetras, psiquiatras, pediatras e profissionais envolvidos com a gravidez e o parto, os que prestam auxílio às mães nos níveis de atenção básica, e toda a rede social tem papel importante na identificação e cuidado da depressão perinatal. Ela é muito frequente, principalmente em populações com vulnerabilidade social, e seu tratamento é fator importante para a prevenção das patologias psíquicas que podem acometer as crianças no futuro.

Tabela 1 (Fonte: American Psychiatry Association.)

Critérios para episódio depressivo maior segundo o DSM V (resumido)

Cinco ou mais dos sintomas abaixo presentes por pelo menos 2 semanas e que representam mudanças no funcionamento prévio do indivíduo     
             Pelo menos um dos sintomas é    
 –Humor deprimido             
 –Perda do interesse ou prazer
Os sintomas não se devem aos efeitos fisiológicos de uma substância (ou outra condição médica)  Os sintomas causam sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo do funcionamento social, ocupacional ou em outras áreas importantes da vida.  
Não houve nenhum episódio de mania ou hipomania anterior (exceto induzidos por substância ou outra condição médica)Os sintomas não se devem aos efeitos fisiológicos de uma substância ou outra condição médica  Quadro não é melhor explicado por transtorno esquizoafetivo, transtorno delirante ou outro transtorno do espectro esquizofrênico e outros transtornos psicóticos.  
1-Humor deprimido (sente-se triste, vazio ou sem esperança).
2- Acentuada diminuição do prazer ou interesse em todas ou quase todas as atividades na maior parte do dia quase todos os dias.
3-Perda ou ganho de peso acentuado sem estar de dieta (mais de 5%do peso corporal)
4- Insônia ou hipersonia quase todos os dias.
5-Agitação ou retardo psicomotor quase todos os dias.
6-Fadiga e perda de energia quase todos os dias.
7-Sentimento de inutilidade ou culpa excessiva ou inadequada (que pode ser delirante) quase todos os dias.
8-Capacidade diminuída de pensar ou concentrar-se, ou indecisão quase todos os dias.
9-Pensamentos de morte recorrentes (não apenas medo de morrer), ideação suicida recorrente (com ou sem plano suicida), ou tentativa de suicídio.  
        Especificadores: Com características ansiosas.Com características mistas.Com características melancólicas.Com características atípicas.Com sintomas psicóticos.Com padrão sazonal.No período próximo ao parto: Início durante a gravidez ou nas 4 semanas após o parto.Com catatonia.

Tabela 2   Fatores de risco para depressão pós-parto (16,19,21)

Fatores psicossociais- ausência de suporte social e familiar, dificuldades financeiras, conflitos conjugais, ausência de companheiro, perda de companheiro ou entes queridos na gestação, relacionamento ausente ou difícil com uma figura materna, abuso ou negligência na infância.
Vulnerabilidade- idade precoce, antecedentes de depressão ou depressão pós-parto, disforia pré-menstrual, traços de personalidade como neuroticismo ou introversão, baixa autoestima.
Fatores da gestação- Gestação indesejada, gemelaridade, menor intervalo entre as gestações, parto prematuro, tratamento para engravidar, parto cesáreo.
Fatores relativos ao bebê- malformações congênitas, estadia em UTI neonatal, intercorrências neonatais, não amamentar.

*Nota: O termo medicalização refere-se à adoção de um viés patologizante ou organicista na compreensão do sofrimento e comportamento humano: “o conceito é considerado um “clichê da análise social”. Publicações proliferam sobre diferentes objetos medicalizáveis, tais como a infância, comportamentos desviantes; gravidez e parto…Para cada um deles, surgem potencialmente novas condições médicas …ou entidades clínicas já existentes aumentam em prevalência, sobretudo em países desenvolvidos”. (6;7)

Referências

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Links das referências

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Ref 12

https://www.frontiersin.org/article/10.3389/fpsyg.2021.648002      DOI=10.3389/fpsyg.2021.648002  

Ref 13

Ayers S, Shakespeare J. Should perinatal mental health be everyone’s business? Primary Health Care Research & Development 16, 323–325, 2015. doi: 10.1017/S1463423615000298. [PubMed]

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Gestos Alongados

Eu queria levar banana-maçã pro meu pai. Não que ele tivesse me pedido. Estava na lista dele, mas no mercado não tinha. Sei disso porque faço as compras para ele desde março. Ele tem mais de noventa anos e neste 2021 está recluso há catorze meses. Hoje levo.

Conduzo o carro através do seis quilômetros que nos separam. Não é longe, mas nessa pandemia, as coisas se encompridam. Os gestos se alongam em etapas. Antes de sair, coloco máscara de proteção (duas), troco os sapatos, pego o elevador, torço para não encontrar com muita gente.

Uma vontade grande de estar na rua, com ganas de sair dela logo.

No caminho, claro de sol, abro as janelas quando pego velocidade. Sensação de liberdade provisória. É sábado à tarde e vejo poucas pessoas nos pontos de ônibus. Estão com máscaras no rosto, no queixo, nas mãos. Conversam e riem.

Os fins de semana são tempos de ônibus alegres, pessoas em grupo, o tempo mais largo, folgado. Como suas roupas, soltas, sem cintos, fivelas, compromissos. Perto do parque do Ipiranga, ciclistas e pessoas correndo. Um cachorro escapa da guia e vai ao encontro de dois labradores. Uma pequena confusão de latidos e correrias. Na Vila Mariana, passo em frente a restaurantes com mesas ao ar livre, nas calçadas. Famílias em fim de almoço, crianças gritando. Gente querendo viver, difícil pensar na morte.

Chego na rua onde ele mora, estaciono logo. Volto ao ritual. Máscaras, elevador, tirar sapatos. Meu pai abre a porta e se afasta. Agora já se acostumou a não vir me abraçar. Estar com ele também requer gestos alongados. Lavar as mãos, sentar longe, vontade de estar próxima, medo de ficar muito perto. Apartar-se do pleno viver, preservar a vida.

Sinto o piso frio da cozinha sob meus pés. Vejo a quietude da sala, os móveis escuros, um violino mudo em cima de uma poltrona, o teclado encapado em plástico. O sol filtrado pelas cortinas atenua os contornos.

Coloco as bananas na fruteira. Ele sorri. Obrigado, filha. Ele sabe que não precisa delas. Eu também sei. Mas ele gosta e não tinha vindo nas compras.

Venha se sentar.

O apartamento, com seus sofás, quadros, porta-retratos, respira todo à minha mãe. Meu pai vive sozinho em meio às suas lembranças há vinte e cinco meses.

Estar com ele também requer estirar sentimentos. Para que caibam a ausência e a presença dela, dele, dos dois.

Estar com ele requer visitar a falta dela. Na sala, no quarto, nos olhos dele. Por isso tudo é tão comprido. Alongam-se os silêncios, as pausas. Meu pensamento, dilatado, comprime o passado e o futuro.  Revejo a mesa, almoços, risadas e antevejo a sala vazia. Sentimentos condensados.

No quarto, dentro do armário, as roupas soltas de seus hábitos, aguardam um destino.

As caixas de remédio empilhadas perto dos copos me alertam para verificar se estão acabando. Conto os comprimidos de cada uma. Três, seis, nove, treze.

Precisamos pedir pra farmácia, pai. Ele faz que sim com a cabeça e, como se lembrasse de alguma coisa, se levanta, pega a chave e de forma ritmada dá corda no relógio antigo de parede. Os sabiás cantam lá fora, meio da primavera. Os ponteiros seguem se movendo. Vamos comer as bananas. 

“Winnicott  afirma que a criatividade é a base do viver saudável, e que é esta condição que faz com que a vida valha a pena. A possibilidade de viver criativamente é relacionada à qualidade da provisão ambiental recebida no início da vida. Com base na teoria de Winnicott sobre a criatividade, é possível pensar o trabalho do luto como estando vinculado à possibilidade de realizar um ato criativo, com o objetivo de reinstalar a idéia de que a vida vale a pena.” Barone,K.C. O trabalho de luto à luz dos fenômenos transicionais. Caderno Ser e Fazer, 8 outubro 2004

Imagem: Pilar Rodriguez

Os elementos masculino puro e feminino puro na clínica

EXTRAIDO DE: Os elementos masculino puro e feminino puro na clínica: a história de Vítor
Cecilia Luiza Montag Hirchzon, Maria Cecilia Schiller Sampaio Fonseca ,Maria Lúcia de Toledo Moraes Amiralian

( Natureza Humana 5(2): 443-457, jul.-dez. 2003).

Winnicott coloca-se como um psicanalista preocupado especialmente com a compreensão do ser humano e seu processo de desenvolvimento. “Desenvolvimento é a minha especialidade”, diz ele na palestra “Este Feminismo”, de 1964, e é dessa maneira que se propõe compreender o caminho percorrido por homens e mulheres desde a concepção até a morte. O eixo central de sua teoria é o processo de amadurecimento, a continuidade do ser. O seu foco é no aspecto sadio do desenvolvimento, onde considera até a morte natural “como a derradeira marca da saúde” . Saúde para ele significa não apenas ausência de doença, como algumas vezes é conceituada, mas sim uma condição que possui em si um aspecto positivo. O desenvolvimento inclui a compreensão das falhas e ausências que tanto podem impedir como propiciar que ele seja pleno. Dentro desse processo de amadurecimento, escolhemos nos deter nos elementos masculino puro e feminino puro, que consideramos uma abordagem de grande originalidade na obra de Winnicott. A constatação da existência desses elementos ocorre numa sessão onde, após longo tempo de trabalho com um paciente, surge uma situação inusitada.

Relata que esse paciente, apesar de sucessos em sua vida e outras análises anteriores, não se sente satisfeito. Continua na análise atual em busca de algo que ainda não encontrara. A sessão a que se refere passa-se em torno da “inveja do pênis”, como se fosse vivida por uma menina e não por um homem adulto, casado e com uma vida profissional ativa. Isso surpreende Winnicott, que se vê interpretando “Estou escutando uma garota. Sei perfeitamente bem que você é homem, mas estou escutando uma garota e falando com uma. Estou lhe dizendo: você está falando sobre inveja do pênis”. Enfatiza que isso não tem nada a ver com homossexualidade . O paciente responde aliviado: “Se eu fosse falar a alguém a respeito dessa garota seria chamado de louco”. Ao que Winnicott responde: “Não é que você tenha contado isto a alguém; sou eu que vejo uma garota e escuto-a falar, quando  na verdade há um homem em meu divã. O louco sou eu”. O alívio provocado era devido a haverem chegado, na transferência, a uma vivência que acompanhava o paciente por toda a sua vida. Era por tocar numa cisão que muito cedo se estabelecera dentro dele, na busca de ajustar-se a uma expectativa de sua mãe. Esta havia desejado que ele, seu segundo filho, fosse menina e o havia visto e tratado como tal. Essa situação tão precoce o levou a incorporar a “loucura da mãe”, mantendo essa cisão quase total entre ser menino e menina, sentindo-se “louco”. Quando Winnicott assume e traduz a loucura da mãe, provoca o alívio mencionado e novos rumos na condução de sua análise. Encontra-se então Winnicott diante da tarefa de procurar entender e elaborar o que se passara, já que havia se deparado com algo novo, que não tinha pensado até então e que não tinha nenhuma referência em outros autores. A partir daí começa a formular suas idéias sobre o que seriam esses elementos feminino e masculino puros. Afirma que não é um conceito novo na psicanálise a idéia da predisposição para a bissexualidade: existem elementos masculinos e elementos femininos em todo ser humano. A originalidade de seu pensamento está na concepção de elemento feminino puro e elemento masculino puro como modalidades de relação de objeto, definindo-as como independentes da pulsão, tal como esta é entendida nos textos freudianos. É importante ressaltar que a teoria de desenvolvimento de Winnicott não se apóia na teoria da libido, como proposta por Freud. Ele interpreta a teoria da sexualidade sob outras luzes e propõe um novo paradigma à psicanálise . Winnicott apóia-se no amadurecimento pessoal, em que contempla como aspectos fundamentais as tarefas de constituição do si mesmo (self ) e de sua interação com o ambiente. Há uma tendência inata denominada continuidade do ser, espécie de mola propulsora, que permite ao ser humano percorrer um caminho que o impele de uma dependência absoluta à busca da independência. Winnicott parte da concepção de que no início da vida há uma dependência absoluta, em que o bebê não se diferencia do seio: ele é o seio. Embora, do ponto de vista do observador externo haja a mãe e seu bebê, do ponto de vista do bebê, o que existe é uma unidade existencial: o bebê é o seio que o alimenta, o colo que o sustenta, as mãos que o acariciam. É o mundo do objeto subjetivo, onde ainda não se constituiu a externalidade. Nas primeiras mamadas não há diferença entre o eu e o não-eu, há um estado de indiferenciação. Para que o bebê vá prosseguindo o seu caminho em direção à independência, é necessário que a mãe apresente repetidamente o seio, de uma forma a que Winnicott se refere como “monótona”, ou seja, repetitiva, mas com prazer (não insípida). Essa situação propicia ao bebê a possibilidade de criar esperança, de ter confiança, de poder acreditar no mundo, o que permite a crescente separação e a vivência da sua dependência. A mãe que está à disposição de seu bebê, permitindo que ele seja, estaria vivendo esse tipo de relação de objeto chamada elemento feminino puro: ambos estão sendo. Nesse momento há a identificação primária do bebê com sua mãe e a identificação com aquela que é abre caminho para a constituição do si mesmo e do sentimento do real. A identidade com o elemento feminino puro é condição fundamental para todas as identificações futuras que ocorrem na vida de cada um. A partir do ser, o bebê pode ir fluindo no seu continuar a existir, dando seqüência às tarefas do processo maturacional. Há um emergir do si mesmo (self) e do sentido de identidade primária. Nessas primeiras relações o bebê vive a ilusão de onipotência e a mãe suficientemente boa coloca o que o bebê cria no lugar e no tempo em que necessita. O bebê sente-se um deus criando o mundo. Os fatos do mundo vão adquirindo sentido para ele, preparando para, gradativamente, ir suportando a desilusão, a frustração de que o mundo existe antes de tê-lo “criado”. Essa atitude da mãe permite que a experiência primária de criação vá sendo internalizada, constituindo-se numa fonte interna do viver criativo. O bebê começa a perceber a distinção entre o eu e o não-eu; o ego mais organizado, que se diferencia e se separa pode agora pôr em ação o elemento masculino puro, que é ligado ao fazer. É o fazer emergindo do ser primordial. Como diz Winnicott: “Após ser – fazer e deixar-se fazer. Mas ser, antes de tudo” . Estamos falando de criatividade como Winnicott a considerou: uma proposição universal ligada à saúde, significando uma atitude em relação à realidade externa que implica estar vivo, ou seja, um sentimento de que a vida vale a pena ser vivida. Em “Vivendo de modo criativo”, uma das suas últimas conferências (1970), ao definir criatividade, o autor afirma:

Para ser criativa, uma pessoa tem que existir e ter um sentimento de existência, não da forma de uma percepção consciente, mas como uma posição básica, a partir da qual operar. Em conseqüência, a criatividade é o fazer que emerge do ser, que indica que aquele que é, está vivo. (Winnicott 1986h, p. 31)

Diferencia essa criatividade da criação de obras de arte, sendo esta uma forma mais elaborada, diferenciada. Esse ato criativo, próprio do artista, tem uma especificidade que foge ao nosso tema neste momento. Para existir a criatividade, o elemento feminino puro seria o primordial, próprio da fase de fusão com a mãe. Essa abordagem é diferente de outras teorias psicanalíticas, nas quais a origem da capacidade criativa se situaria em estágios e mecanismos mais avançados de desenvolvimento mental. Para Freud, a capacidade criativa seria uma sublimação de pulsões instintivas que não podem se realizar como tais. Para Melanie Klein, seriam reparações de aspectos agressivos ligados à culpa na posição depressiva. Em Winnicott, a criatividade tem a característica de ser primária, constitutiva, determinante de saúde e amadurecimento. Retomando a questão do fazer, temos que falar dos instintos, pois o elemento masculino puro não só se apóia, mas pede ação mobilizada pelo instinto. A partir do momento em que começa a experienciar os instintos como próprios, vê-se o ser humano diante de uma nova tarefa, que é como lidar e integrar ao si mesmo (self) a vida instintiva. Essa vivência no próprio corpo, assim como as diferenças biológicas dos sexos, tem papel fundamental. As diferenças anatômicas e  hormonais entre os sexos são obviamente determinantes de como será o contato, tanto com a sexualidade em si, como com o mundo. Ao seguir o seu curso começam a aparecer as diferenças relativas ao gênero: características mais marcadamente masculinas ou  femininas. É um tema importante para futuras reflexões. Nos primórdios do desenvolvimento, o bebê não precisa atender às suas necessidades, pois a mãe é quem vai atendê-las. À medida em que vai amadurecendo, o si mesmo (self), agora mais definido, o Ego já com a função que diferencia o eu do não-eu, vai sendo capaz de sentir as necessidades como próprias, buscando atendê-las. Quando há falhas nesse processo, surgem dissociações entre o ser e o fazer. Uma das conseqüências é a perda do viver criativo, o “si mesmo” (self) passando a ser aquele que está sempre respondendo e se adaptando à realidade externa, em detrimento do “si mesmo” (self) verdadeiro.

Outro conceito de grande utilidade clínica, próximo a este, apontado por Winnicott no processo de amadurecimento e separação, foi observado no caso clínico de Vítor, relatado adiante. Winnicott afirma que, apesar da dessemelhança entre os sexos, há uma semelhança básica em relação à questão primordial da dependência absoluta, que o leva a propor “um fenômeno separado que denominamos Mulher… que é a mãe não reconhecida dos primeiros estágios de vida de todo homem e de toda mulher”. Podemos agora refletir sobre a questão da diferença entre os sexos, partindo de como cada um deles vai elaborar essa dependência absoluta de uma mulher. Isso é de fundamental importância para o desenvolvimento da identidade de cada sexo. O homem, para ser “si mesmo” e para constituir a sua identidade masculina, terá de se separar desta Mulher,  de quem dependeu totalmente. Já a mulher, para se constituir como tal, não precisa estabelecer necessariamente a separação – pode manter-se identificada com essa Mulher. Observamos, portanto, duas direções distintas: enquanto a mulher lida com a Mulher dentro de si através da identificação, o homem tem que se separar, tornar-se único, o que se constitui em uma urgência no desenvolvimento da sua identidade. A especificidade da identidade feminina caracteriza-se por ser geracional e infinita, isto é, podendo manter dentro de si três mulheres: o bebê menina, a mãe e a mãe da mãe. Essa condição possibilita à mulher o desempenho de diferentes funções sem violar a sua natureza. Pode ocupar posições diversas nas brincadeiras, onde ora é mãe, ora é filha, alternando papéis. Ou, ainda, na idade adulta, exercendo a sua feminilidade, ocupando o lugar de mãe e/ou mulher sedutora. Enquanto isso, o homem não se funde nessa linhagem – sua condição básica é a de ser um: o provedor, aquele que faz. É uma função que ocupa tanto no âmbito familiar, quanto social e profissional: tudo se agrupa em torno desse fazer/ prover. Já podemos observar no menino as brincadeiras mais ligadas ao lutar, brigar, competir – atividades ligadas à ação – enquanto nas meninas, elas se expressam nos diferentes papéis associados ao ser: ser mãe, ser filha, ser mulher. A título de ilustração, poderíamos usar como metáforas: para a mulher, um caleidoscópio, com constantes rearranjos; e, para o homem, a figura geométrica de um poliedro, que mesmo mostrando os diferentes lados, mantém a mesma configuração.   Apesar dessas diferenças, o elemento feminino puro e o elemento masculino puro têm que estar presentes e integrados em todo ser humano, homens e mulheres que, como já dissemos, é a condição primordial do viver criativo.

 

O artigo em sua integra encontra-se em:

http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-24302003000200006

 

Adeus à loucura

Fazer-se cuidar é um processo ativo que envolve bem pouco do que costumamos chamar de adaptação. Adaptação tem um sentido impotente de conformar-se ou adaptar-se às situações, pagando preços por vezes altos demais. A resistência oferecida por esses meninos às situações adversas nos faz pensar em um outro processo, no desenvolvimento de habilidades depassivadoras, e, ao mesmo tempo, produzir ressonância com um outro apesar das diferenças.

Visando ampliar o horizonte ético do tratamento das psicoses em crianças e adolescentes, e contribuir para a memória coletiva, este artigo narra o percurso de um hospital-dia na rede pública paulistana.

Leia o artigo na integra no link abaixo:

Sociedade Civil Percurso – NP (uol.com.br)

p16_texto03.pdf (uol.com.br)

Os elementos masculinos e femininos no amadurecimento : suas expressões no viver criativo


          Winnicott coloca-se como um psicanalista preocupado especialmente com a compreensão do ser humano e seu processo de desenvolvimento. “Desenvolvimento é a minha especialidade”, diz ele na palestra “Este feminismo”, de 1964, e é desta maneira que se propõe compreender o caminho percorrido por homens e mulheres desde a
concepção até a morte.


          O eixo central de sua teoria é o processo de amadurecimento, a continuidade do ser. O seu foco é no aspecto sadio do desenvolvimento, em que considera até a morte natural “como a derradeira marca da saúde” (Winnicott, 1990, p. 30). Saúde para ele significa não apenas ausência de doença, como algumas vezes é conceituada. O desenvolvimento inclui a compreensão das falhas e ausências que tanto podem impedir como propiciar que este seja pleno.


          Dentro deste processo de amadurecimento escolhemos nos deter nos elementos masculinos e femininos, que consideramos uma abordagem de grande originalidade na obra de Winnicott. A constatação da existência desses elementos surgiu numa sessão, em que se viu falando a uma menina dentro de seu paciente- um homem adulto. Essa percepção foi acompanhada da concordância aliviada deste, trazendo novo rumo na condução de sua análise. Viu-se Winnicott diante da tarefa de procurar entender e elaborar a vivência al instalada, já que havia se deparado com algo novo, que não tinha pensado até então e que não tinha nenhuma referência em outros autores. A partir daí começa a formular suas ideias sobre o que seriam tais elementos.

Afirma que não é um conceito novo na psicanálise a ideia da predisposição para a bissexualidade: existem elementos masculinos e elementos femininos em todo o ser humano.

A originalidade de seu pensamento está na concepção de elemento feminino puro e elemento masculino puro como modalidades de relação de objeto, definindo-as como
independentes da pulsão, tal como esta é entendida nos textos freudianos.

           É importante ressaltar que a teoria de desenvolvimento de Winnicott
não se apoia na teoria da libido, no que difere de Freud. Apoia-se, sim, no
amadurecimento pessoal, onde contempla como aspectos fundamentais as tarefas de constituição do “si mesmo” (self) e de sua interação com o ambiente.
           Há uma tendência inata denominada continuidade do ser, espécie de mola propulsora que permite ao ser humano percorrer um caminho que o impele de uma dependência absoluta à busca da independência.
Winnicott parte da concepção de que no início da vida há uma solidão essencial acompanhada de uma dependência absoluta, em que o bebê não se diferencia do seio: ele é o seio. Embora do ponto de vista do observador externo haja a mãe e seu bebê, do ponto de vista do bebê o que existe é uma unidade existencial: o bebê é o seio que o alimenta, o colo que o sustenta, as mãos que o acariciam…

           Neste momento, a mãe, que está à disposição de seu bebê permitindo que ele seja, estaria vivendo esse tipo de relação de objeto chamada elemento feminino puro: ambos estão sendo. A partir do ser (identificação primária com a mãe) o bebê pode experimentar o eu sou (identidade pessoal).

           Nas primeiras mamadas não há diferença entre o eu e o não-eu- é um estado de indiferenciação, há uma mutualidade mãe-bebê. É o que Winnicott denomina “SER e o elemento feminino: a mãe e o bebê simultaneamente separados e unidos” (Abram, 2000, p. 153).

           Para que o bebê prossiga o seu caminho em direção à independência é necessário que a mãe apresente repetidamente o seio de uma forma que Winnicott se refere como “monótona”, ou seja, repetitiva, mas com prazer (não insípida). Essa situação propicia ao bebê a possibilidade de criar esperança, de ter confiança, de poder acreditar no mundo, o que permite a crescente separação e a vivência da sua dependência.           

Só a partir deste momento, que é a base do ser, o bebê pode ir fluindo no seu continuar a existir, dando sequência às tarefas do processo maturacional. Há o emergir de um “si mesmo” (self) e de um sentido de identidade primária. O bebê começa a perceber a distinção entre o eu e o não- eu; o ego mais organizado, que se diferencia e se separa pode agora pôr em ação o elemento masculino puro que é ligado ao fazer. É o momento de poder viver criativamente: o fazer emergindo do ser primordial. Como diz Winnicolt: “Após ser – fazer e deixar-se fazer. Mas ser, antes de tudo” (Winnicott, 1975, p. 120). Estamos falando de criatividade como Winnicott a considerou: uma proposição universal ligada à saúde, significando uma atitude em relação à realidade externa, que implica estar vivo, ou seja, um sentimento de que a vida vale a pena ser vivida.


          Em “Vivendo de modo criativo” (Winnicott, 1975, p. 31), uma das suas últimas conferências (1970), ao definir criatividade, esse autor afirma: Para ser criativa, uma pessoa tem que existir e ter um sentimento de existência, não da forma de uma percepção consciente, mas como uma posição básica a partir da qual operar. Em conseqüência, a criatividade é o fazer que emerge do ser, que indica que aquele que é, está vivo.”

          Diferencia essa criatividade da criação de obras de arte, sendo esta uma forma mais elaborada, diferenciada. Este ato criativo, próprio do artista, tem uma especificidade que foge ao nosso tema neste momento.

          Para existir a criatividade, o elemento feminino puro seria o primordial, próprio da fase de fusão com a mãe. Nestas primeiras relações, caracterizadas pela mutualidade, o bebê vive a ilusão de onipotência e a mãe suficientemente boa coloca o que o bebê cria no lugar e no tempo em que necessita. Fornece assim as condições fundamentais para essa ilusão ser mantida. O bebê sente-se um deus criando o mundo. Os fatos do mundo vão adquirindo sentido para ele, preparando para gradativamente ir suportando a desilusão, a frustração de que o mundo existe antes dele tê-lo “criado”. Essa atitude da mãe permite que a experiência primária de criação vá sendo internalizada, constituindo-se numa fonte interna do viver criativo.


          Esta abordagem da criatividade é diferente de outras teorias psicanalíticas, em que a origem da capacidade criativa se situaria em estágios e mecanismos mais avançados de desenvolvimento mental. Para Freud a capacidade criativa seria uma sublimação de pulsões instintivas que não podem se realizar como tais. Para Melanie Klein, seriam reparações de aspectos agressivos ligados à culpa na posição depressiva. Em Winnicott, a criatividade tem a característica de ser primária, constitutiva, determinante
de saúde e amadurecimento.

          O conceito de onipotência para Winnicott tem também uma definição própria. É uma experiência com caráter criativo e não só de controle mágico do objeto. Nesse sentido não seria concebida como uma defesa, mas como uma vivência necessária, própria do processo de desenvolvimento. O bebê precisa ser confirmado nessa experiência para, em seguida, ir se apercebendo do ambiente. Para isso necessita de uma mãe-ambiente confiável. Se há um abalo nessa confiabilidade, deixa de poder vivenciar a ilusão de onipotência, que pode então se transformar e ser usada como uma defesa – o sentimento de onipotência.


            Retomando a questão do fazer, temos que falar dos instintos, pois o elemento masculino puro não só se apoia, mas pede ação mobilizada pelo instinto. Assim se vê o ser humano diante de uma nova tarefa. A partir do momento em que começa a experienciar os instintos tem de lidar e integrar ao “si mesmo” (self) a sua vida instintiva.  Esta  vivência  no  próprio  corpo,  assim  como  as  diferenças  biológicas  dos  sexos, têm papel fundamental. As diferenças anatômicas, hormonais, entre os sexos são obviamente determinantes de como será o contato tanto com a sexualidade om si, como com o mundo. Ao seguir o seu curso começam a aparecer as diferenças relativas ao gênero: características mais marcadamente masculinas ou mais marcadamente femininas. É um tema importante para futuras reflexões.

Nos primórdios do desenvolvimento o bebê não precisa atender as suas necessidades, pois a mãe é quem vai atendê-las. À medida que vai amadurecendo, o “si mesmo” (self), agora mais definido, o ego já com a função que diferencia o eu do não-eu, vai sendo capaz de sentir as necessidades como próprias, buscando atendê-las. Quando há falhas nesse processo surgem dissociações entre o ser e o fazer. Uma das consequências é a perda do viver criativo, o “si mesmo” (self) passando a ser aquele que está sempre respondendo e se adaptando à realidade externa, em detrimento do “si mesmo” (self) verdadeiro.
           Nesse processo de amadurecimento e separação, Winnicott chama a atenção para um outro aspecto que nos parece de grande utilidade na clínica. Afirma que, apesar da dessemelhança entre os sexos, há uma semelhança básica em relação à questão primordial da dependência absoluta, que o leva a propor um fenômeno separado que denominamos MULHER… que é a mãe não reconhecida dos primeiros estágios de vida de todo homem e de toda mulher” (Winnicott, 1996, p. 150).

Podemos agora refletir sobre a questão da diferença entre os sexos, partindo de como cada um deles vai elaborar esta dependência absoluta de uma mulher. Isso é de fundamental importância para o desenvolvimento da identidade de cada sexo. O homem, para ser “si mesmo” e para constituir a sua identidade masculina, terá que se separar desta MULHER de quem dependeu totalmente. Já a mulher, para se constituir como tal, não precisa estabelecer necessariamente a separação – pode manter-se identificada com esta MULHER.

Observamos, portanto, duas direções distintas: enquanto a mulher lida com a MULHER dentro de si através da identificação, o homem tem que se separar, tomar-se único, o que se constitui em uma urgência no desenvolvimento da sua identidade. A especificidade da identidade feminina caracteriza-se por ser geracional e infinita, isto é, podendo manter dentro de si três mulheres: o bebê menina, a mãe e a mãe da mãe. Esta condição possibilita a mulher o desempenho de diferentes funções sem violar a sua natureza. Pode ocupar posições diversas nas brincadeiras, onde ora é mãe, ora, filha, alternando papéis. Ou ainda na idade adulta, exercendo a sua feminilidade, ocupando o lugar de mãe e/ou de mulher sedutora.


           Enquanto isso, o homem não se funde nessa linhagem-sua condição
básica é a de ser um: o provedor, aquele que faz. É uma função que ocupa
tanto no âmbito familiar, quanto social e profissional: tudo se agrupa em torno desse fazer/prover.

As brincadeiras do menino são mais ligadas ao lutar, brigar, competir- atividades ligadas à ação, enquanto nas meninas elas se expressam nos diferentes papéis associados ao ser: ser mãe, ser filha, ser mulher. A título de ilustração, poderíamos usar como metáforas: para a mulher, um caleidoscópio, com constantes rearranjos; e para o homem, a figura
geométrica de um poliedro, que mesmo mostrando os diferentes lados, mantém a mesma configuração.


           Apesar dessas diferenças, o elemento feminino puro e o elemento masculino puro têm que estar presentes e integrados em todo ser humano, homens e mulheres que, como já dissemos, é a condição primordial do viver criativo.

Referências


ABRAM, J. (2000). A linguagem de Winnicott. Rio de Janeiro: Revinter.
ELLMAN, S.J. (1998). Enactment. Transference and analitical trust. In: ELLMAN and
MOSKOVITZ. Enactment. London: Jason Aronson.
KOHON, G.; GREEN, A. (1999). The greening of psychoanalisis. In: KOHON, G. (ed.)
The Dead Mother: The Work of Andre Green. London: Routledge.
WINNICOTT, D. W.(1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago.
______ (1983). O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes
Médicas.
______ (1990). Natureza humana. Rio de Janeiro: Imago.
______ (1996). Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes.

Cecilia Luiza Montag Hirchzon (https://www.gestoespontaneo.com.br/cecilia-l-montag-hirchzon/)
Maria Cecilia Schiller Sampaio Fonseca ( Membro associado da SBPSP, membro efetivo da SBPR).
Maria Lúcia de Toledo Moraes Amiralian. (Docente do Instituto de Psicologia da USP. Doutora em Psicologia Clínica do IPUSP)

extraido da revista -Panorama – SBPSP (2003)

Rapunzel e sua torre:considerações a respeito da psicose puerperal

Entre a psicose e a normalidade existem mais conexões do que  gostaríamos de acreditar- e a familiaridade do estranho da psicose nos assusta justamente por sua ressonância em nós mesmos. Diz Nino Ferro “Naturalmente, é com os pacientes graves (e com as partes psicóticas de cada paciente) que continuamente nos expomos às maiores dificuldades… à espera de poder transitar por zonas ainda escuras e cegas da nossa mente”.
Como então distanciar-se do terror da psicose puerperal e dos  transtornos mais graves que podem ocorrer no período perinatal- se um dia já fomos também bebês em estado de dependência absoluta, se a rejeição ao bebê não nos provoca empatia? Se o próprio feminino em nossa cultura não nos fornece referência suficiente? Vivemos numa cultura do matricídio, em que as coisas inanimadas prevalecem sobre o humano, e a relação mais primeira, da mãe com seu bebê, é idealizada ou reificada mas não encontra proteção ambiental necessária ao seu sustento. “É preciso uma tribo para cuidar de um
bebê”, diz o ditado. Esta verdade parece estar sendo esquecida nos nossos dias.
Sucumbem os indivíduos mais frágeis diante das pressões e da instabilidade característica da fase perinatal. Instabilidade esta que é orgânica,pelas intensas flutuações hormonais, pela privação do sono, pelas vicissitudes do corpo e seu Real , tão presentes no momento. Mas também psíquica ,também social, também familiar.
Para a psiquiatria, a conexão entre psicose puerperal e transtorno bipolar faz-se evidente, delimitando um fator de risco dos mais importantes.
Porém, para o analista, a desconstrução do rótulo e a busca de um sentido para o sujeito importam mais. No contato com a paciente o terapeuta tenta prosseguir na construção de um “historiar” e um acolhimento para o delírio -composição e remendo criado pela pessoa para dar significado às suas  vivências. A aliança terapêutica é um holding que vai possibilitar o outro holding, o holding do bebê, impossível nos estágios iniciais de desorganização em que a paciente se encontra. Aqui importa menos o reencontro da mãe e do bebê do que a a possibilidade de a mãe re-significar a si mesma, aprisionada
que está dentro da torre da psicose.
Delírios envolvendo o roubo ou a troca do bebê são muito comuns na psicose puerperal. Podem estar muito estruturados (como vimos no filme “O bebê de Rosemary” de Polanski) ou, no mais das vezes, conectados a um estado paranóide difuso, ligado a grandes flutuações do humor. O que  na psicose aparece como delírio surge como fantasia no período do blues puerperal.
Nesta ocasião de transparência psíquica os ciúmes e conflitos surgem como uma forma camuflada do temor de não ser suficiente, de ter seu bebê “sequestrado” pela sogra, pela enfermeira super competente, ou pela própria mãe. Ansiedades estas que são mitigadas pelo ambiente continente, pela passagem do tempo e pelo descanso. O próprio contato com o bebê faz diluir paulatinamente a flutuação do humor de base neurótica do blues puerperal.
Mas na psicose, o terror é vivenciado – não é bonita a psicose, nem fácil de suportar. Os casos puerperais costumam ser muito graves. Mas, pertencendo ao sitio do estranho, não deixam de ressoar profundamente em nós. Quando eclode o surto, muitas vezes ainda no período da internação, intensas angústias mobilizam toda a equipe do hospital- em geral despreparada para isso. Às vezes a visão médica domina a cena, o que pode roubar à mulher a oportunidade de encontrar, a partir da crise, um caminho para a subjetivação. Sem cuidado, a família se desorganiza, impossibilitada de dar e receber escuta. É quando iatrogenias ocorrem, porque o sujeito psicótico deixa de ser considerado um sujeito, mesmo que a desorganização ocorra de forma autolimitada, mesmo nos casos de resolução mais rápida da crise. A equipe hospitalar raramente tem condições de manejar casos de tanta complexidade.
Apesar de não ser infecciosa, a loucura “pega”, e pega de um jeito que muitas vezes não se percebe. Porém, somente uma atitude cuidadosa e não julgadora tem chance de atingir paciente e família neste momento. Há que se encontrar dialética no cuidado : enquanto, de um lado, o psiquiatra busca e ajusta as medicações, o manejo da enfermagem é de particular importância, pois as famílias se desestruturam e a paciente está muito regredida. Enquanto o antipsicótico age para reduzir as manifestações
delirantes e a desorganização, no contato com a paciente o terapeuta prossegue fornecendo uma escuta única, uma escuta para o delírio, para o ser quebrado desta mãe que ainda não pode constituir-se como tal. Sem contar a particularidade da vinda do bebê: quem vai se ocupar dele? Tamanha é a complexidade do manejo nos casos de psicose puerperal.

No conto de fadas que narra a história da Rapunzel, a apropriação pela mulher de algo que pertence à bruxa faz com a mesma reivindique o bebê desta mulher, assim que ele nasce: como pagamento pelo roubo. Sua primeira filha.

Ou seja: a Rapunzel nasce de uma mulher que, na gravidez, comeu rabanetes roubados da horta da bruxa. Mulher que, ao parir, paga uma dívida .
Para quem não se lembra da história, a menina Rapunzel cresce encerrada em uma torre até poder ser resgatada por um príncipe. No conto, é a mediação do príncipe que desfaz o encanto do seu aprisionamento.
Pensando no período pos-parto, podemos imaginar  a psicose como um aprisionamento em que a mãe, que deve à bruxa, não pode apropriar-se do lugar materno. Outrossim, tem seu bebê roubado. Que bruxa é esta? Sua própria mãe? Algo de sua história?
Como saber… Cada mulher e cada Rapunzel terão sua história particular. Mas sabemos que mulheres psicotizam mais no pós parto do que em qualquer outra época da vida… Pois algo arriscado acontece à mulher que pare e é convocada a tornar-se Mãe. Agora ela é chamada a responder a uma pergunta e ocupar um novo papel. Este bebê é meu? Tenho permissão para ocupar este lugar?
Penso que a estória de Rapunzel é cena e enredo vivido no pós parto de muita mãe que passa a delirar sobre a troca, a morte, o sequestro de seu bebê.
De certa forma, é a mãe que está então confinada na torre da sua própria psicose. A mulher, roubada de si mesma, estará à espera de um terceiro, um mediador, que quebre o encanto da indiferenciação entre ela e a bruxa. Estará à espera do “príncipe” sem o qual jamais poderá se separar, se organizar, tocar o chão. Quem poderá enfim ajudá-la a tecer, no vão que surge entre as suas tranças cortadas- cortadas como um cordão umbilical- um pouco de sentido, um tanto de coragem, para poder se apartar da bruxa? Eis uma aproximação poética do trabalho a ser feito no caso da psicose. Dizem que o príncipe também, ao tentar chegar perto da Rapunzel, levou um tombo danado. E aí,
quem se habilita? Será que esta história ainda pode ter um final feliz?
Arianne Angelelli
Julho- 2020

Gesto espontâneo e interpretação criativa

https://www.metodista.br/revistas/revistas-metodista/index.php/MUD/article/view/831/846

Professora Doutora Ivonise Fernandes da Mota

O gesto espontâneo e a interpretação criativa

Ivonise Fernandes da Motta*

PARA SER GRANDE, sê inteiro: nada

 Teu exagera ou exclui

Sê todo em cada coisa.

 Põe quanto és

No mínimo que fazes.

Assim em cada lago a lua toda

Brilha, porque alta vive.

Pessoa, F. (1995/1993). Ficções do Interlúdio / Odes de Ricardo Reis, 414, 14- 2-1933. In Fernando Pessoa, Obra poética. Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar S.A., p. 289.

 Resumo

O presente artigo tece considerações sobre possíveis manifestações do “Verdadeiro Self” que podem ter ocorrência no processo psicanalítico. “Expressões”, “gestos” ou “atitudes” inesperados ou surpreendentes tanto por parte do terapeuta quanto por parte do paciente podem facilitar revivências do passado, da história psíquica do analisando, que podem ser extremamente valiosas para o trabalho psicoterápico em andamento. O termo “interpretação criativa” estaria incluído nessa categoria ou classificação. Descritores: psicoterapia; psicanálise; Donald W. Winnicott; gesto espontâneo; criatividade.

Introdução

               Gesto espontâneo foi um termo utilizado por D. W. Winnicott para designar uma das inúmeras maneiras pelas quais o verdadeiro self pode se expressar. Estaria relacionado ao cerne, ao centro do ser, representando o que há de mais autêntico, mais genuíno para aquela pessoa em especial. Nesse contexto, gostaria de empregar o termo “interpretação criativa” para algo semelhante que pode ter ocorrência no trabalho analítico. A partir do contato com o paciente, nós, psicoterapeutas, podemos nos surpreender com “expressões”, “gestos” ou “atitudes” que poderíamos denominar “inesperados” ou “surpreendentes”. Após muitos anos de trabalho com pacientes com as mais variadas dificuldades, queixas ou sintomas, por vezes algo que se poderia dizer dessa natureza, ocorria: uma palavra, uma atitude inesperada do terapeuta surpreendem o “par analítico” ao trazer à tona algo novo, algo novo para revelação. Por exemplo, dizer a um paciente a frase: “não admito isso em um homem”, após ouvir várias de suas associações, despertaria no mínimo “estranheza”, ou eu diria “surpresa”. À primeira vista, tal expressão poderia ser entendida como autoritária, disruptiva, invasora. Com a evolução ou experiência nos vários e diferentes setores do campo psicanalítico desde sua criação, vários aspectos, teóricos e técnicos, tiveram de ser gradativamente revistos e mudados. O trabalho com crianças e pais trouxe inúmeras contribuições e conhecimento tanto no que se refere ao desenvolvimento psíquico quanto à constituição e construção das bases fundamentais do psiquismo. De maneira semelhante, o trabalho com pacientes psicóticos ou com perturbações mais severas trouxe inúmeras contribuições sobre a importância do que se denomina “manejo de setting”. O “setting” clássico ou tradicional estabelecido por Freud tem suas bases na experiência principalmente com pacientes neuróticos. O trabalho com pacientes regredidos ou em regressão mostrou a necessidade de várias modificações: tempo das sessões, pertinência ou não de interpretações, tipos de interpretação condizentes com o material vivenciado, orientações ao ambiente do paciente (pais, parentes, instituições). Com esse tipo de pacientes, o que denominamos usualmente “neutralidade” do analista cede lugar ao que poderíamos chamar o surgimento da pessoa real do terapeuta. Ou seja, aparece a marca da falha do ambiente. Algo no desenvolvimento daquele indivíduo revela a presença de um aspecto do ambiente que dificultou o desenvolvimento psíquico ou mesmo “traumatizou” ou irrompeu ou interrompeu com invasões disruptivas. O conhecimento advindo do tratamento com pacientes regredidos ou em regressão (como gravidez, crises, por exemplo) nos aproxima da emergência de conhecimentos semelhantes com pacientes neuróticos. O acompanhamento de pacientes diagnosticados neuróticos irá, por vezes, de encontro a revivências primitivas, ao aparecimento de falhas ambientais significativas para o paciente, para sua constituição e desenvolvimento. Frases que à primeira vista parecem “destoantes” ou “estranhas”, como uma terapeuta dizer a um paciente “não admito isso em um homem”, podem ser um sinal da necessidade do encontro com algo do passado, uma falha ambiental do passado do paciente que emerge pelas palavras do terapeuta. Ao sublinhar a importância do ambiente no desenvolvimento psíquico, Winnicott vem ferir mais uma vez o narcisismo do ser humano: não podemos ter controle sobre muitos dos acontecimentos que ocorrem conosco. As pessoas que nos circundam invariavelmente irão limitar, influenciar e até definir situações que podemos até desconhecer, o que nos remete ao observado por Freud em relação à instintividade no ser humano: o homem mais uma vez não é senhor em sua própria morada. Os terapeutas de crianças e adolescentes costumam conhecer bem essas limitações. As dificuldades invariavelmente surgidas na psicoterapia quando do atendimento desse tipo de pacientes expõem os limites de nossa onipotência, de nosso trabalho, limites e alcance que sofrem repercussões de várias ordens envolvendo familiares. O papel materno no desenvolvimento humano é conhecido por vários e diferentes vértices, por pesquisas nas mais diversas áreas do conhecimento. Com os avanços nas pesquisas, o papel paterno tem se mostrado de igual importância para as possibilidades de desenvolvimento psíquico. Winnicott ressalta a importância da figura do pai tanto no que concerne em fornecer apoio para a mãe desempenhar suas funções maternas, quanto em favorecer as várias e sucessivas passagens desde o estágio de dependência absoluta (mãe-bebê) até o de dependência relativa. Para esse autor, o pai tem o lugar do indestrutível, o limite que não pode ser ultrapassado. Por isso mesmo, sua presença liberta o menino, o homem, para a instintividade. A possibilidade de “matar” o pai simbolicamente e não ter a concretização da “morte”, na medida que o pai mantém sua presença e lugar constantes, libera o menino para seus desejos instintivos. Desejar é distinto de concretizar, portanto não oferece ameaças reais ao menino, ao homem e à figura paterna. A rivalidade e a competição edípicas podem ser vivenciadas em tons e matizes ricos e presentes possibilitando o caminhar por esses conflitos sem a necessidade de defesas patológicas ou excessivas. No desenrolar do trabalho analítico, muitos aspectos do terapeuta são trazidos à revelação, além dos emergentes do próprio paciente. Levando-se em consideração que o terapeuta tem seus conflitos neuróticos devidamente analisados, além do conhecimento de vários ângulos de seu funcionamento mental mais primitivo, o surgimento de momentos do que se poderia denominar “expressão do verdadeiro self” pode trazer revelações significativas para o par analítico. A análise cuidadosa dessas expressões faz-se necessária para compreensão e possibilidades de sua utilização a favor do tratamento psicoterápico em andamento. É importante frisar que a presença desses momentos, ou o que eu chamaria “interpretação criativa”, ocupa um lugar diferenciado do que poderia ser facilmente confundido com “acting out” do terapeuta, ou seja, invasão no setting analítico de aspectos do self do terapeuta, que, de maneira intrusiva, pressionam o tratamento. Ao escrever sobre mudanças do setting, D. W. Winnicott delimitou as especificidades, limites e perigos de tais situações. Uma de suas recomendações era a de que o tratamento com pacientes regredidos ou em regressão deveria ser conduzido apenas e tão somente após dez anos de experiência analítica. A complexidade de tais ocorrências demandariam muito do psicoterapeuta tanto em termos psíquicos quanto em termos de conhecimento psicanalítico, daí a necessidade de, no mínimo, dez anos de trabalho com pacientes. Outeiral (2001), ao escrever sobre o tema ressalta: “A contribuição de D. W. Winnicott para ser compreendida requer um profundo aprendizado psicanalítico prévio (e neste ponto concordo plenamente com os padrões de formação da International PsychoAnalysis Association, baseados no “tripé” criado por Eitington: análise pessoal, supervisão e seminários teóricos) que nada tem a ver com superficialidade, ‘intuição pura’, empirismo ou ‘espontaneidade sem sentido’… A clínica que nos é permitida acompanhar é plena de sentido e intencionalidade” (p. 103). Outro aspecto relevante a ser considerado é a impossibilidade de comunicação. É trazido à revelação algo que estava bloqueado ou impedido de ser conhecido ou revelado. O contato cada vez maior e mais profundo com vários aspectos psíquicos do paciente e conseqüentemente do próprio terapeuta tem expressão por meio do surgimento do que denomino neste artigo “interpretação criativa”. Algo do ambiente constitutivo do paciente torna-se presente, possivelmente uma falha. Algo falhou e é revelado por algo que é dito pelo terapeuta e que pode surpreender o próprio terapeuta. Quando falhas foram significativas no desenvolvimento do paciente; a revivência do ocorrido no passado é invariavelmente acompanhada por sentimentos hostis, por sentimentos raivosos. Para Winnicott, o encontro do paciente com as limitações ambientais traz à tona a hostilidade pelos prejuízos, entraves e conseqüências. Esse seria um aspecto relevante ao traduzir a diferenciação entre o mundo psíquico do paciente e o ambiente do qual fez ou faz parte: discriminação cada vez maior advinda do trabalho psicoterápico quanto a quem sou eu e quem é o outro; quem são ou quem foram os participantes do entorno do paciente e geradores das falhas por vezes disruptivas ou invasoras. Trazer à consciência os danos sofridos, suas repercussões e presença na vida do paciente é de vital importância para o reconhecimento do que foi vivido em épocas pretéritas e a possibilidade de, ao revê-las, estabelecer outras bases para o desenvolvimento psíquico. Ao escrever sobre o tema, Margaret Little (1992), psicanalista e paciente de D. W. Winnicott que pôde vivenciar um tratamento com bases na regressão, diz: “A regressão para a dependência é um ‘processo de cura’ (Winnicott 1954b) originado não no analista, mas naquela parte do analisando, seu “verdadeiro self” (Winnicott 1949a, 1960b), que ainda pode esperar uma reversão do fracasso original, encontrando no analista uma adaptação suficiente para as suas necessidades. É preciso haver um ‘tratamento’ em vez de uma ‘técnica’; e um comportamento intuitivo, não interpretação verbal. Mas isso não é fácil, porque envolve o analisando em uma volta assustadora ao primeiro estágio não integrado. Há o risco de aniquilação repetida pelos estímulos aos quais ele tem de reagir fisicamente (reflexo de choque), e com uma integração forçada, contra os quais ele não tem defesas e não pode compreender; de deixarem-no cair quando ele está indefeso, não havendo limites ou controle. O analista tem de ser capaz de renunciar às suas defesas contra a mesma ansiedade, o medo de aniquilação, da perda de identidade, tanto por si mesmo como pelo paciente. Ao mesmo tempo, sua própria identidade deve permanecer distinta, e seu sentido de realidade inalterado, mantendo a consciência em dois níveis extremos, o da realidade e o da ilusão. Ele está na posição de uma mãe vis-à-vis o filho, mas onde nem ele nem o paciente estão de fato nessa situação. Isso exige as mesmas qualidades de uma “mãe suficientemente boa” (Winnicott 1952b), empatia com a criança (Winnicott 1960 a) e capacidade de considerá-la uma pessoa separada. Não contar com a “atitude profissional” para aceitar um “relacionamento direto” com o paciente como distinto da imagem do espelho, e lembrar-se de que a sexualidade não tem qualquer sentido aqui; unir-se fisicamente a ele aceitando a ilusão de unidade; tolerar o ódio do paciente sem revidar quando os traumas originais são revividos (Winnicott 1947, 1960c) e suportar as suas próprias emoções quando elas são despertadas” (Little, 1992, p. 88). Muitos anos de trabalho com pacientes dão ao terapeuta maior segurança e confiança adquiridas gradativamente e que o possibilitam renunciar pouco a pouco a uma “técnica” para a emergência de vários aspectos de seu próprio self ou, dizendo melhor, de seu “verdadeiro self”, o que contribuiria para revelação de aspectos essenciais do self do paciente, tanto aspectos dissociados quanto aspectos não integrados. O surgimento dessas facetas do self no presente com tons e matizes vivos e atuais tornaria possível todo um trabalho de revivências e integração. Winnicott, ao escrever sobre “A interpretação na psicanálise” (1968), afirma: “O princípio que estou enunciando neste momento é que o analista reflete de volta o que o paciente comunicou. Este enunciado muito simples a respeito da interpretação pode ser importante pelo próprio fato de ser simples e evitar as tremendas complicações que surgem quando se pensa em todas as possibilidades que podem ser classificadas na premência interpretativa. Se este princípio muito simples é enunciado, ele imediatamente precisa de elaboração, e sugiro que necessita de elaboração do seguinte tipo: área limitada da transferência de hoje, o paciente tem um conhecimento exato de um detalhe ou de um conjunto de detalhes. É como se houvesse uma dissociação pertencente ao lugar a que a análise chegou hoje. É útil lembrar que, desta maneira limitada ou desta posição limitada, o paciente pode estar dando ao analista uma amostra da verdade, isto é, de algo que é absolutamente verdadeiro para o paciente, e que, quando o analista o devolve, a interpretação é recebida pelo paciente que já emergiu, até certo ponto, desta área limitada ou condição dissociada. Em outras palavras, a interpretação pode ser mesmo dada à pessoa total, enquanto que o material para interpretação derivou apenas de uma parte da pessoa total. Como pessoa total, o paciente não teria sido capaz de ter fornecido o material para a interpretação” (1994, p. 164). A possibilidade de acesso às falhas ambientais vividas pelo paciente tornam possível não apenas o conhecimento dessas vivências e seus efeitos, mas também a emergência de possibilidades do que denominaríamos reparação. A sobrevivência do analista, a sobrevivência do paciente, significando a manutenção da constância do tratamento, e a não retaliação por vivências do tipo aqui descritas – “Não admito isso em um homem” – podem significar um marco de mudança. Nessa situação clínica aqui utilizada para exemplificar o que denomino “interpretação criativa”, o marco presente foi a interdição paterna realizada pelas palavras da terapeuta “não admito isso em um homem”. Evidenciou falhas vividas pelo paciente quanto à função paterna e que, ao serem trabalhadas na psicoterapia, puderam ser conhecidas e re-significadas. Em seu trabalho “O ódio na contratransferência” (1947), Winnicott ressalta a importância de, em certo tipo de pacientes ou em certas situações clínicas, o paciente encontrar o ódio do terapeuta que possibilitaria o surgimento do ódio do paciente, aspecto dissociado e que necessitaria de integração. O ódio do terapeuta traria essa dissociação à revelação e expressaria a permissão do surgimento de aspectos hostis do paciente para o trabalho integrativo. A expressão “não admito isso em um homem” inclui uma carga inegável de sentimentos hostis. Inclui também a firmeza e a força por vezes necessárias para marcar o limite, o limite intransponível, marcar o lugar e a presença do pai, o indestrutível. Margaret Little (1992), no relato de sua análise com Winnicott, assinala a importância do reconhecimento do ambiente para a integração de aspectos dissociados de sua personalidade. Winnicott definia a mãe de Little da seguinte maneira: “Sua mãe é imprevisível, caótica, e estabelece o caos ao seu redor” (p. 50). A esse respeito, Little escreve: “É preciso fazer uma observação sobre a minha família; caso contrário, seria difícil acreditar em muitas coisas que digo, ou mesmo entendê-las. Fico surpresa ao constatar que apesar de na verdade ter dito muito pouco sobre isso verbalmente ao D. W., seu comentário sobre minha mãe foi como uma revelação (não uma interpretação analítica). Ele tornou possível e lícito para mim compreender muitas coisas que eu já sabia, havia observado ou que me disseram” (1992, p. 51). O reconhecimento da importância do ambiente no desenvolvimento psíquico levaria a situações nas quais “o manejo de setting” se faz imprescindível e também ao reconhecimento de momentos nos quais expressões do verdadeiro self tanto do paciente quanto do analista são vitais para a superação de impasses no processo analítico ou para o surgimento de novas facetas valiosas para a continuidade do trabalho desenvolvido. Ao escrever sobre a conceituação de elementos masculinos e femininos expelidos (split-off) encontrados em homens e mulheres, Winnicott relata passagem instigante vivida com um paciente. O paciente já havia realizado uma longa análise, mas apresentava dificuldades em terminá-la. Em determinada sessão, Winnicott relata a presença significativa do que usualmente denominamos “inveja do pênis”, algo incomum ao se pensar que o paciente em questão era um homem. A interpretação fornecida ao paciente foi: – “Estou ouvindo uma moça. Sei perfeitamente bem que você é homem, mas estou ouvindo e falando com uma moça. Estou dizendo a ela: você está falando sobre inveja do pênis”. Os efeitos da interpretação confirmaram sua pertinência. O paciente responde: “Se eu falasse a alguém sobre essa moça, seria chamado de louco”. Winnicott prosseguiu: “Não é que você tenha contado isso a alguém; sou eu que vejo a moça e ouço uma moça falar, quando na realidade, em meu divã achase um homem. O louco sou eu”. E em seguida afirma: “Não tive de elaborar esse ponto, porque a chave era aquela. O paciente disse que agora se sentia são, num ambiente louco. Em outras palavras, achava-se agora liberto de um dilema” (1975, pp. 105-106). Winnicott conclui: “Esse complexo estado de coisas apresentava uma realidade especial para esse homem, porque ele e eu fomos impulsionados à conclusão (embora incapazes de prová-la) de que sua mãe (que já não está viva) viu uma menina quando o viu como bebê, antes de passar a aceitá-lo como menino. Em outras palavras, esse homem teve de ajustar-se àquela idéia da mãe de que seu bebê, seria e era uma menina… mas a loucura da mãe, que viu uma menina onde existia um menino, fora trazida diretamente ao presente através de minha afirmativa: ‘Sou eu que estou louco’. (1975, p. 106). O trabalho psicoterápico teve continuidade nas sessões seguintes, e outra das conclusões de Winnicott foi: “Quando me concedi tempo para refletir sobre o que acontecera, fiquei intrigado. Não havia aqui qualquer conceito teórico novo, nenhum novo princípio de técnica. Na realidade, eu e meu paciente já havíamos percorrido antes esse campo. Entretanto, tivéramos, aqui algo de novo, novo em minha própria atitude e novo em sua capacidade de fazer uso de meu trabalho interpretativo” (1975, p. 108). À medida que o trabalho psicoterápico prossegue e ganha profundidade, surgem possibilidades de acontecimentos dessa ordem, semelhantes ao descrito por Winnicott em “O brincar e a realidade” (1975). Algo bastante diferente, inesperado surge para o par analítico trazendo à luz aspectos importantíssimos do passado do paciente e que, até então, não foram revelados. Em “Holding e interpretação” (1991), Winnicott relata a análise com um paciente homem, por meio da qual podemos acompanhar suas interpretações de angústias e conflitos edípicos. Em “Relato do tratamento psicanalítico de uma menina ‘Piggle’” (1979), Winnicott narra o trabalho realizado em 16 consultas terapêuticas – trabalho que ele denomina tratamento segundo a demanda. Ou seja, a menina comunicava a necessidade da realização de uma consulta, a qual era aceita por Winnicott. Angústias e conflitos edípicos foram profundamente trabalhados. Mais uma vez, ao lermos esses tratamentos conduzidos por Winnicott, torna-se presente a importância do ambiente e das figuras materna e paterna para a constituição e desenvolvimento psíquicos. O tratamento realizado por Winnicott com Gabrielle (Piggle) teve início quando a paciente contava com a idade de dois anos e cinco meses e finalizou quando tinha cinco anos e dois meses de idade. O posfácio do livro que relata a evolução de Gabrielle, após a conclusão do tratamento, dá-nos a confirmação de que as consultas realizadas possibilitaram trabalho integrativo imprescindível ao favorável desenvolvimento psíquico da menina. Esse tipo de tratamento, segundo a demanda, foi possível pelas boas condições ambientais presentes no caso de Gabrielle. Os pais e mesmo a menina tinham condições psíquicas favoráveis ao trabalho psicanalítico necessário para a superação dos sintomas e o movimento integrativo e evolutivo que foi realizado. Uma das conclusões sobre esse tipo de tratamento trazidas no posfácio do livro é: “O fato de os pais poderem participar de um processo de crescimento e reparação foi-lhes de grande valor. Tal participação evitou o que se pode freqüentemente observar: os pais sentem que foram ignorados e, dessa forma, talvez se predisponham a sentimentos de rivalidade e competição com o terapeuta; talvez tenham inveja do terapeuta e da criança, ou, alternadamente, para evitar tais sentimentos penosos, assim como para evitar a conduta obstrutiva insidiosa que pode deles resultar, os pais se retraem, saindo do campo de influências de um relacionamento vivo com a criança, simplesmente entregando-a a um profissional com mais conhecimento e prática” (1979, p. 173). Mais uma vez fica evidenciada a importância em se considerar a participação do ambiente em qualquer tratamento psicanalítico, tanto por seus fatores benéficos quanto pelos impeditivos. A inclusão da participação das falhas ambientais que foram significativas para o paciente nos remete ao surgimento de acontecimentos reveladores dessas falhas e que podem surgir por meio de expressões do verdadeiro self tanto do terapeuta quanto do paciente. Nesse âmbito, incluiria o que denominamos segundo uma visão winnicottiana “o gesto espontâneo” e a denominação que estou utilizando nesse artigo de “interpretação criativa”. Ao usar a expressão “não admito isso em um homem”, aspectos fundamentais do desenvolvimento psíquico do paciente puderam ser trazidos à revelação incluindo falhas de seu próprio ambiente. Ao dizer ao seu paciente “sou eu que estou louco”, Winnicott pôde trazer à tona aspectos essenciais do ambiente do paciente, decisivos para os processos integrativos necessários à finalização de sua análise. Rodman, na introdução do livro “O gesto espontâneo” (1990), compilação de inúmeras cartas escritas por D. W. Winnicott, ao abordar o tema aqui proposto, escreve: “Os que dizem que Winnicott colocou o valor terapêutico da relação com o analista acima do processo interpretativo compreendem mal e trivializam seu parecer, bem mais complexo. Seu trabalho sobrevive e continua sendo fecundamente citado em trabalhos sobre técnica precisamente porque seus textos, de aplicação ampla, não se conformam a tal classificação. Ele permaneceu firme como leitor do inconsciente e acreditando nas interpretações precisas, feitas no momento certo, como sendo o principal instrumento de mudança. Foi apenas no tratamento de pacientes profundamente perturbados que julgou ser indispensável uma fase de manejo (management). Tais pacientes, ao regressar ao ponto em que haviam falhado na primeira infância, exigiam um ambiente de apoio como um corretivo de onde poderia ser retomado o desenvolvimento. Uma versão da psicanálise como bondade profissionalizada, a psicanálise reduzida à empatia, ou a um longo processo cujo desfecho é a confirmação de que a vida do paciente foi realmente arruinada pelos pais, era algo inteiramente estranho a Winnicott. Ele disse que a “psicose é uma doença de carência”, mas sabia que chegar ao ponto de carência exigia um longo período de interpretação psicanalítica” (Rodman, 1990, pp. XXIX e XXX). E ao final da introdução de “O gesto espontâneo” (1990) Rodman conclui: “Ele procurava proteger ações delicadas, transitórias, do peso esmagador da classificação formal. Ele queria engendrar em outros o gosto pela ação experimental, a qual era, a seu ver, pensamento inspirado manifesto na segurança de uma relação. Ele trabalha, portanto, pela criação de condições que encorajariam a disposição de pacientes, analistas e cidadãos comuns a produzir contribuições únicas, a arriscar o gesto espontâneo. Ele celebrou o emergir do mundo interno em formas que outros pudessem contemplar. Ao dar ao conceito de associação livre de Freud uma definição ampla e harmonizada, ele promoveu o espírito psicanalítico a novas estruturas de relevância” (Rodman, 1990, pp. XXX e XXXI). Gostaria de concluir este artigo referendando a importância dos vários e diferentes “gestos espontâneos” e “interpretações criativas” invariavelmente presentes no dia-a-dia de nosso trabalho clínico. O aprendizado resultante, quer dos nossos acertos, quer dos nossos erros, poderá trazer contribuições valiosas nesse complexo caminho do gradativo aumento do conhecimento da natureza humana.

Referências

Abram, J. (2000) A Linguagem de winnicott. (M. da Silva, trad.) Rio de Janeiro, RJ: Revinter.

 Laplanche, J & Pontalis J.B. (1983) Vocabulário de psicanálise. (P. Tamen, trad.) São Paulo, SP: Martins Fontes.

Little, M. (1992) Ansiedades psicóticas e prevenção. (M. Fernandes, trad.) Rio de Janeiro, RJ: Imago.

Outeiral, J., Hisada, S., Gabriades, R. (Orgs.) (2001) Winnicott seminários paulistas. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.

Rodman, R. (1990) O gesto espontâneo – cartas selecionadas de D. W. Winnicott. (L. Borges, trad.) São Paulo, SP: Martins Fontes.

Winnicott, D. W. (1968) A interpretação na psicanálise. In Winnicott, C., Shepherd, R., Davis, M. (orgs., 1994). Explorações psicanalíticas D. W. Winnicott. (pp.163-166) (J. Aguiar Abreu, trad.) Porto Alegre, RS: Artes Médicas.

Winnicott, D. W. (1975) O brincar e a realidade. (J. Aguiar Abreu e V. Nobre, trad.) Rio de Janeiro, RJ: Imago.

Winnicott, D. W. (1978) O ódio na contratransferência. In: Da pediatria à psicanálise. (J. Russo, trad.) Rio de Janeiro, RJ: Francisco Alves (Original de 1947).

Winnicott, D. W. (1979) The piggle relato do tratamento psicanalítico de uma menina. (E. Vieira & R. Martins, trads.) Rio de Janeiro, RJ: Imago. Winnicott, D. W. (1991). Holding e interpretação.

O analista no campo analisante: dos impasses às transformações possíveis.

https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/15302/1/Gina%20Tamburrino.pdf

Captando algo humano

http://revistapercurso.uol.com.br/index.php?apg=artigo_view&ida=1108&ori=edicao&id_edicao=52

LEITURA

Rêverie e interpretação: captando algo humano [Rêverie e Interpretação]

Rêverie and interpretation: capturing something human

Gina Tamburrino
Marina F. R. Ribeiro Ribeiro

Rêverie e interpretação. Captando algo humano é um dos primeiros lançamentos da coleção Kultur da Editora Escuta. A coleção tem como principal objetivo a apresentação de temas que refletem sobre a “natureza e a cultura humana”. Não se trata de uma coleção versada apenas em autores psicanalíticos. Entretanto, é Thomas Ogden, um psicanalista norte-americano, o primeiro autor convidado a apresentar seu pensamento.

Rêverie e interpretação apresenta o conceito de rêverie com a profundidade esperada pelos clínicos da atualidade. É um livro que trata o tema de forma clara, sincera e sensível. É um verdadeiro presente para o clínico da atualidade.

Ogden prima por uma escrita lapidada; se autodenomina um “escritor analítico”, e faz jus a esta designação. O texto é claro, vivo, interessante, bem cuidado. Os capítulos do livro têm como origem artigos publicados na década de 1990. Há um prefácio para a edição portuguesa, de outubro de 2013, do qual destacamos três pontos. O primeiro é a liberdade de pensamento a partir da qual o autor se expressa: “Um tema que trespassa subliminarmente pelo livro é a ideia de que precisamos criar a psicanálise para cada paciente” (p. 15). Uma psicanálise viva é criada a cada sessão, com cada paciente. O setting é a moldura que permite o enquadre para dupla analítica criar. O segundo ponto é o desapego a dogmas: “Ao ler os artigos neste volume, artigos que escrevi há mais de quinze anos, espanta-me que, em sentido relevante, compreendia então um bocado de coisas que hoje luto para compreender”. O terceiro aspecto, importantíssimo, é quando ele escreve: “o papel indispensável dos ‘fracassos’ do analista em se concentrar naquilo que o paciente está dizendo (porque tais ‘fracassos’ constituem o lugar de nascimento da rêverie)”. Ou seja, onde o analista se percebe fracassando, aí está o nascimento da rêverie. Ideia que Ogden desenvolve no capítulo seis que honrosamente leva o nome do livro, rêverie e interpretação, e que constitui o capolavoro do texto.

O primeiro capítulo, Sobre a arte da psicanálise, é uma visão atual de como Ogden pensa o trabalho analítico. Assemelha-se e complementa o capítulo dois (Do que eu não abria mão) de outro livro do autor também publicado no Brasil: Esta arte da psicanálise. Sonhando sonhos não sonhados e gritos interrompidos (Artmed, 2010). Ambos os capítulos apresentam uma visão humanista da psicanálise e da vida: “[…] creio que a tarefa analítica envolva mais profundamente o esforço do par analítico para ajudar o analisando a se tornar humano em um sentido mais amplo do que o que ele conseguiu até o momento” (p. 30). E, mais à frente, Ogden também desilude o leitor: “a incapacidade de ser plenamente humano é um aspecto do ‘destino de toda a humanidade'” (p. 32). E loca a análise aí: “é nesse esforço de sermos plenamente humanos que estamos vivos enquanto analista e analisando; é nesse experimento que vive a arte da psicanálise” (p. 34).

O autor abre o primeiro capítulo do livro com uma frase interessantíssima: “A palavras e frase, bem como a pessoas, deve-se facultar certa imprecisão” (p. 21), “pois estão em constante movimento” (p. 23). “A imaginação”, afirma ele, “depende de um jogo de possibilidades” (p. 21). Aquilo que é vivo é fluido e impreciso; a experiência analítica é dessa ordem, um desapego difícil de significados fixos; ao texto psicanalítico criativo também se deve facultar certa imprecisão.

É de grande beleza a aproximação que Ogden faz, também no capítulo um, da experiência humana de encontro entre o escritor analítico e o leitor e o analista e o analisando. O escritor analítico “deve” ser capaz de criar uma linguagem da experiência de vitalidade e/ou desvitalização humanas para si e para o leitor. Falar sobre vitalidade e desvitalização humanas não leva “ao aprender da experiência” (Bion, 1962) humana. É preciso criar sentido para poder transmiti-lo. E isto apenas se torna possível diante de uma fala dramática que comporta intimidade e pessoalidade. Ambos, escritor e leitor, precisam ter uma experiência de estar vivo e presente. “Para estar vivo e presente na própria linguagem, para ter ‘o próprio tom de voz da fala um pouco… emaranhado nas palavras’, a pessoa que fala pede que um aspecto seu seja reconhecido pelo ‘ouvido da imaginação’ (do ouvinte)” (p. 29).

Ogden, assim como Winnicott (um dos autores que o inspira, além de Bion, entre outros), consegue expressar o complexo com frases aparentemente simples. Não nos enganemos, Ogden escreve sobre a complexidade da interação humana, especificamente a analítica, de forma sofisticadamente simples, o que faz dele um dos destacados autores da psicanálise contemporânea.

Os capítulos dois e três são eminentemente clínicos, nos quais a bússola de Ogden é a análise de formas de vitalidade e desvitalização no processo analítico. A presença do conceito do terceiro analítico norteia o pensamento clínico do autor: “[…] compreendo o terceiro analítico intersubjetivo como um sujeito criado pela interpretação inconsciente analista e analisando” (p. 42). O autor trabalha com a concepção de Winnicott sobre “o lugar em que vivemos” (uma terceira área da experiência entre realidade e fantasia), e com a ideia de Bion de que o analista mantém vivos e traz à vida aspectos do paciente, através de uma continência bem-sucedida. Ogden dá especial relevo à espontaneidade do analista que o salva de uma neutralidade caricaturesca. A contratransferêcia é compreendida dentro da unidade transferência-contratransferência e “refere-se a uma construção inconsciente intersubjetiva” (p. 39). Há uma importante preocupação com as formas de manejo e com a técnica analítica para lidar com os sentimentos de vitalidade e desvitalização que emergem na experiência analítica.

O terceiro capítulo apresenta a análise da perversão através da “análise da transferência-contratransferência perversa tal como se desenrola na relação analítica” (p. 71). É uma visão ímpar o modo como Ogden dá a ver de que maneira “a cena analítica perversa e o sujeito perverso da análise são construídos […] pela dupla analítica com o objetivo de evitar [a dolorosa] experiência de morte psíquica […]” (p. 73). No caso clínico trazido pelo autor, vemos uma interessante discussão clínica sobre um caso de perversão e o uso da técnica: “Um elemento da técnica que se reflete na análise descrita é o uso que o analista faz de seus pensamentos, sentimentos, sensações, fantasias, devaneios, ruminações e outros, mundanos, reservados e cotidianos, no processo de tentar entender a rede de significados intersubjetivamente gerados que constituem a transferência-contratransferência” (p. 95). O que é um grande desafio em um caso de perversão que implica uma erotização defensiva, além de encenações (enactments) sexualizadas.

No capítulo quatro – Privacidade, rêverie e técnica analítica – Ogden retoma o papel do uso do divã enquanto dispositivo do processo analítico; o analista fora do campo visual do analisando possibilita “estados sobrepostos de rêverie”. O divã favorece a privacidade da dupla para entrar em contato com seus estados de rêverie; mas isso não significa que o analista deve “insistir (de forma explícita ou implícita) que todo paciente de análise use sempre o divã”. Discute a relação entre o número de sessões semanais com o uso do divã: deveria o analista usar o divã quando o número de sessões é menor do que a ideal? Nesse capítulo o autor também renuncia à regra fundamental da análise de que o paciente deve dizer tudo o que lhe vier à mente. Aborda o fato de que a “técnica deve facilitar o processo” (p. 114), e que tanto o paciente como o analista devem ter a liberdade de falar e de silenciar. Tanto a comunicação quanto a privacidade devem ser consideradas para preservar a vitalidade do processo analítico. Ogden apoia-se na concepção de Winnicott de que no âmago de todos nós há um elemento sagrado, isolado e não comunicável.

No capítulo cinco, o autor discute as associações de sonhos no contexto da sessão como um evento intersubjetivo, aliás, como tudo na sessão. Considerando sempre a intersubjetividade do terceiro analítico: […] “Visto que as associações do analista com a experiência do sonho são extraídas da experiência do sonho no e do terceiro analítico, elas não são menos importantes, enquanto fonte de significado analítico em relação ao sonho, do que as associações do paciente” (p. 131). Entretanto, reconhecer o terceiro analítico intersubjetivo e tecer elaborações a partir dele não é tarefa fácil, o analista precisa dar tempo para que o paciente “responda ao seu próprio sonho, pois isso pode dar margem a uma forma de encenação transferencial-contratransferencial (enactment) em que o analista se serve dos sonhos do analisando e lhe oferece uma invenção narcisista” (p. 139). A experiência de sonhar é uma “experiência humana que não pode ser traduzida em uma narrativa linear, verbal, simbólica, sem perder a sintonia com o efeito criado pela própria experiência de sonhar…”; essa experiência se opõe ao significado do sonho, e, portanto, à sua compreensão (p. 139). Ao final do capítulo, retoma que a técnica analítica deve “servir ao processo analítico”, e não engessar o analista em dogmas desvitalizantes para o processo, ou seja, a técnica deve favorecer o processo e não emperrá-lo!

Consideramos que o capolavoro do livro é o capítulo seis, pois traz uma lapidada descrição de rêverie: “[…] Trata-se de uma experiência primorosamente privada que envolve os mais constrangedores aspectos cotidianos (e ainda assim tão importantes) de nossas vidas. Os pensamentos e sentimentos que a constituem são raramente discutidos com nossos colegas” (p. 146). E, mais à frente: “Paradoxalmente, apesar de o analista sentir suas rêveries como privadas e pessoais, é enganoso vê-las como ‘suas’ criações próprias, já que são, ao mesmo tempo, construções intersubjetivas inconscientes criadas em conjunto (embora assimetricamente), que chamei de ‘o terceiro analítico intersubjetivo'” (p. 147).

Ogden considera que o analista precisa tolerar “a experiência de estar à deriva” (p. 148), de ser levado pelas correntes inconscientes presentes na sala de análise. Entende que o movimento analítico é mais um estado de “deslizando em direção a” do que “chegando a” (p. 148).

A rêverie gera um desequilíbrio emocional no analista. “Os distúrbios emocionais associados com a rêverie geralmente são sentidos pelo analista como produto da interferência de suas preocupações do momento, de excessiva autoabsorção narcísica, imaturidade, inexperiência, fadiga, treino inadequado, conflitos emocionais não resolvidos, etc. A dificuldade de usar as rêveries no exercício da análise é facilmente compreendida, uma vez que tal experiência é tão próxima, tão imediata, que é difícil de ser vista: ela é, nas palavras de Frost (1942), ‘presente demais para se imaginar'” (p. 150).

A experiência de rêverie é sempre um elemento desorganizador para o analista, que ele tende a descartar, a se envergonhar, a considerar uma inabilidade, uma falha técnica. E, ao mesmo tempo, é a bússola emocional do analista, se ele tiver a condição e a liberdade psíquica de considerá-la; não é uma tarefa fácil. “Não há como ‘pular fora’ dos problemas ao se fazer o esforço de utilizar analiticamente a rêverie” (p. 150).

Após a apresentação de um interessantíssimo caso clínico, o autor concebe “o processo analítico envolvendo a criação de novos eventos intersubjetivos inconscientes que nunca antes existiram na vida afetiva, seja do analista seja do analisando” (p. 174). Ogden evidencia, em sua apresentação clínica, como suas rêveries e os sonhos da paciente “são criados no ‘mesmo espaço onírico analítico intersubjetivo'” (p. 175). A análise é um processo transformador tanto para o analista quanto para o paciente, ou seja, o analista está completamente implicado no processo, sempre considerando a assimetria da dupla. Lembramo-nos da metáfora de Bion sobre o processo analítico: o analista está no campo de batalha; assim como o analisando, pode matar ou morrer, mas tem a responsabilidade de o comando, no caso da análise, manter-se pensante.

Ogden termina o capítulo escrevendo que considera o uso das rêveries no trabalho analítico como um componente fundamental da técnica analítica. As rêveries nascem “da complexidade infinita do interjogo da vida inconsciente do analisando e do analista e das sempre mutantes construções inconscientes geradas pela ‘sobreposição’ dos dois” (p. 180).

No capítulo sete, Ogden discorre sobre o uso da linguagem em psicanálise, tanto a linguagem na sala de análise como a linguagem escrita. “O experimento de escrever, ler e escutar […] tem muito em comun com o experimento de pensar, sentir e comunicar que está no cerne da experiência analítica” (p. 186). A linguagem que comunica a experiência inconsciente precisaria ser insaturada nos termos de Bion, ou seja, quando uma linguagem sempre aberta a novos significados se fixa em um sentido, esse é provisório. Essa é a linguagem viva, sempre aberta a novos sentidos: “é essencial que o analista use linguagem que aspire a uma forma específica de imprecisão evocativa, às vezes enlouquecedora, quase sempre perturbadora” (p. 196). De forma delicada, Ogden aproxima o leitor da riqueza que existe em compreender menos e experimentar mais a/na experiência analítica: como é escutar esse paciente? como é estar com esse paciente? Não se trata de compreensão, mas de um processo de não “saber demais” (Winnicott, 1971). Ou, trata-se da prática da “arte de nãochegar (ao significado exato)” (Poirier, 1992).

O capítulo oito é um interessante exercício analítico literário; Ogden inicia o texto assim: “[…] Acrescentaria que a poesia é um grande disciplinador para a escuta analítica” (p. 211). Analisa três poemas de Frost e, ao final, escreve: “o poema não é sobre uma experiência; a vida do poema é a experiência” (p. 236). Diríamos que a vida, a vitalidade de uma sessão é a experiência transformadora que pode ocorrer através da e para a dupla analítica, mas para que isso ocorra precisamos estar à deriva das emoções inconscientes que circulam na sala de análise.

Ler Ogden é uma experiência transformadora, para aqueles que ousam se destituir da ilusão do conhecimento, e ficar à deriva.

A palavras e frases, bem como a pessoas, deve-se facultar certa imprecisão.

Boa leitura!

Cartas de Winnicott ( por Cecilia Hirchzon)

Este é Winnicott: criativo, arrojado, franco, irreverente, humilde, sedento de reconhecimento, sensível, voltado para problemas sociais, libertário e sobretudo fiel a si mesmo.

 

 

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições! Ninguém me diga “vem por aqui”.
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou…
Não sei por onde vou, Não sei para onde vou
– Sei que não vou por aí!

(José Régio. Poemas de Deus e do Diabo, 2005)

 

 

Cartas de Winnicott

Por Cecília Luiza Montag Hirchzon

Em um misto de busca de informação, curiosidade e talvez até um tanto de voyeurismo, fui à procura da correspondência de Winnicott para conhecer … quem era a pessoa que se expressava e existia através de suas cartas.

O livro sobre a sua correspondência em que me baseei foi O gesto espontâneo: D. W. Winnicott (1990), escrito por Robert Rodman que  teve acesso às cartas pela primeira vez em 1958.

O meu primeiro olhar foi de surpresa, seguido de interesse e admiração por esta pessoa genuína que se revela a cada passo, em todo o seu ser.

Ao comentar os diferentes autores, Winnicott elogia os trabalhos em que os analistas contribuem com suas próprias concepções, estimulando-os a ser eles mesmos. Paralelamente preocupa-se com a “confusão na Sociedade, quando vários termos são usados como se fossem plenamente aceitos”, salientando a necessidade “de descobrir uma linguagem comum”.

Mostra-se crítico, algumas vezes, com suas próprias colocações (em carta a Willi Hoffer): “manifestei um profundo desgosto por tê-la escrito, já que se trata de uma carta inteiramente ruim” (p. 26); assume conscientemente características suas : “sou daquelas pessoas que se sentem compelidas a trabalhar à sua própria maneira e a se expressar na sua própria linguagem” (p. 47).

Essas qualidades não implicam, no entanto, falsa modéstia, sabendo reconhecer o próprio valor e reivindicando seus direitos, como em uma carta endereçada a David Henderson: “Nesse caso acho que o senhor poderia ter mencionado o meu nome no lugar do de (Leo) Kanner … não entendo por que devemos procurar nos EUA algo que existe em nosso país” (p. 56).

A situação institucional e o risco de idolatria são temas frequentes de suas preocupações, como quando alerta Melanie Klein: “Estou preocupado com essa estrutura que poderia ser chamada kleiniana. Suas ideias só viverão na medida em que forem redescobertas e reformuladas por pessoas originais, dentro e fora do movimento psicanalítico” (p. 31). O comportamento por vezes impiedoso com alguns autores não o impede que em outros momentos reconheça o talento, por exemplo, de Bion: “Quero que você saiba o quanto valorizo o trabalho que você vem fazendo e apresentando em seus ensaios sobre o pensamento. Como muitas outras pessoas, eu os considero difíceis, embora extremamente importantes” (p. 115).

Nas situações em que se sente excluído, nada o impede de pedir e até mesmo implorar por um olhar sobre sua contribuição à cena analítica, daqueles que, em grande parte do tempo, não conseguem (ou não querem) reconhecer a originalidade de sua obra. Dirigindo-se a Melanie Klein, pede um movimento dela em sua direção: “Trata-se de um gesto criativo e não posso estabelecer relacionamento algum através desse gesto se ninguém vier ao meu encontro” (p. 30).

Tendo se desenvolvido em um “grupo psicanalítico e conhecido todas as suas pressões e tensões internas”, admite conhecer “a psicanálise apenas como uma ciência em luta” (p. 168), o que revela a pulsante e frequentemente explosiva atmosfera institucional daquele período.

Embora Winnicott tivesse sido médico do Departamento Infantil do Instituto Britânico de Psicanálise durante 25 anos, presidente durante dois períodos de três anos (1956-1959 e 1965-1968), e secretário científico e de treinamento por períodos de três anos (p. XV), a oposição à sua teoria foi intensa; isso não fez, felizmente para nós, com que ele renunciasse às inovações peculiares de seu pensamento: “não me importo que demonstrem que estou errado, nem que me critiquem ou ataquem. Mas fiz um trabalho importante, com o suor do meu rosto psicanalítico (isto é, clinicamente), e recuso-me a ser eclipsado” (p. 126).

Muitas vezes, em sua franqueza beirando a irreverência, passa por cima de qualquer formalismo escrevendo a altas patentes, como o Primeiro-Ministro Chamberlain, ou a Lord Beveridge. A sua participação ativa como cidadão levantando questões humanitárias mostrava-se em cartas a parlamentares e também a jornais, como o New Society e mais frequentemente ao Times, a respeito de temas como o perigo da transformação de médicos em funcionários públicos, a relação de profissionais da saúde com trabalhadores, interferência de voluntários acobertados por apoio governamental, delinquência, crime, TV patrocinada etc. Não se limita a criticar, mas também formula sugestões importantes. Enfatiza também em palestras radiofônicas sua preocupação com a democratização do conhecimento, tornando-o acessível a um público amplo.

Preocupado com a rigidez da psicanálise ortodoxa, alerta: “no todo, parece que não se disse aos estudantes que todos os analistas falham, que todos tem casos difíceis” (p. 155).

Este é Winnicott: analista criador de uma teoria que representa um marco fundamental no desenvolvimento da psicanálise.

Este é Winnicott: criativo, arrojado, franco, irreverente, humilde, sedento de reconhecimento, sensível, voltado para problemas sociais, libertário e sobretudo fiel a si mesmo.

A respeito desse autor e desse autor e dessa obra, poderíamos dizer, com Merleau-Ponty: “A verdade é que esta obra exigia esta vida” .

Penso que o texto acima descrito representa para mim uma experiência de “jogo do rabisco”, no qual as cartas de Winnicott se apresentaram como uma expressão autêntica e espontânea do seu ser. Através dessa correspondência e do meu olhar, acredito que fomos (as cartas e eu) desenhando, garatujando, e construindo um retrato dessa figura humana intensa na vida e na criação.

 

“Trata-se de um gesto criativo e não posso estabelecer relacionamento algum através desse gesto se ninguém vier ao meu encontro”

 

Leia o artigo na integra em

http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31062010000100010

Quem foi Victor Guerra

 

Por Carla Braz Metzner

 

O psicanalista Uruguaio Victor Guerra dedicou a sua vida ao estudo, pesquisa e atendimentos clínicos da relação mãe/ bebê, da primeira infância, adolescentes e adultos.

Ele realizou por mais de vinte anos consultas terapêuticas em um jardim da infância inspirado nas contribuições tão importantes de D. Winnicott .
Estava trabalhando na sua tese de doutorado em Paris, sobre o ritmo e os indicadores de intersubjetividade no processo de subjetivação do bebê. Mas seu falecimento precoce interrompeu seu percurso, o seu trabalho e suas contribuições continuam reverberando entre nós.
Sua tese de doutorado será publicada em Paris com um evento em sua homenagem no dia 12/1/2019. Seu trabalho trouxe grande contribuição ao pensamento psicanalítico.
No dia 22 e 23 de junho de 2018 ocorreu uma homenagem para Victor Guerra em Montevidéu. O tema era : o que  nos ensinam os bebês? – Prof psicanalista Victor Guerra.
Neste evento o mais marcante era a transmissão de uma forma, de uma ética psicanalítica  presente no respeito ao outro, aos profissionais  e pacientes.
Na sua disposição de mente para fazer dialogar os autores e as teorias, que como ele dizia ,trazia movimento, ritmo e abertura para ir em busca do sofrimento humano e poder através da arte, da literatura e da poesia encontrar o assombro,  e a capacidade negativa como elucida o escritor john Keats. A Capacidade para viver a incerteza, o não saber, para poder lidar com o lamentável  e o sublime da condição humana, como assinala o escritor Octavio Paz tão apreciado por ele.
Victor foi coordenador da Fepal da área de crianças e adolescentes e foi um dos idealizadores da carta de Cartagena. Nos  trazendo a contribuição de varias associações e sociedades de psicanálise, se posicionando favoráveis ao tratamento psicanalítico do transtorno do espectro autista, reconhecendo toda experiência dos profissionais e produção de conhecimento construído pela psicanálise.
Victor encontrava na poesia sua inspiração para a clínica e para a vida, sua lista de escritores e poetas preferidos é muito grande, mas o escritor Uruguaio Felizberto Hernandez que aparece no fundo desta fotografia do Victor exerceu grande influência. Sua descrição dos personagens humanos, do seu mundo interno e seus dilemas despertaram seu interesse pela psicologia e psicanálise na adolescência, assim como sua experiência de vida com os imigrantes que frequentavam o boliche de seu pai e contavam suas histórias e seus dramas.
Os escritores brasileiros Ferreira Gullar e Manoel de Barros também foram sempre muito citados em seus trabalhos e em sua tese. E para também homenagear Victor neste texto cito um poema de Ferreira Gullar que ele gostava muito.

Despedida
Eu deixarei o mundo com fúria.
Não importa o que aparentemente aconteça,
se docemente me retiro.
De fato,
neste momento estarão de mim arrebentando raízes tão fundas.
Quanto estes céus brasileiros.
Num alarido de gente e ventania
olhos que amei, rostos amigos
tardes e verões vividos
Estarão gritando ao meu ouvido
para que eu fique , para que eu fique.
Não chorarei
Não soluço maior do que despedir-se da vida.
Ferreira Gullar

Abrir a possibilidade para novas narrativas: um desafio. por Angela Hiluey.

http://pepsic.bvsalud.org/pdf/vinculo/v15n1/v15n1a02.pdf

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Abrir a possibilidade para novas narrativas: um desafio. Hiluey, A.

ABRIR A POSSIBILIDADE PARA NOVAS NARRATIVAS: UM DESAFIO

Angela Hiluey

RESUMO

Uma diversidade de narrativas pode enriquecer a vida humana, dada a possibilidade de atribuir significado à experiência relacional desde a vida intrauterina até a morte, postula Linares (2003; 2014). Por outro lado, conta-se com a resistência do ser humano a rever suas visões. Dada tal resistência, neste trabalho tem-se como objetivo mostrar uma ferramenta para auxiliar na construção de novas narrativas: a atividade artística-lúdica no atendimento a casais e famílias sob a ótica da abordagem sistêmico-integrativa. Tal ferramenta tanto permite que o ser humano, sem se dar conta, expresse sua angústia, quanto permite ser uma intervenção terapêutica propriamente dita. Através de um caso clínico, será ilustrado o planejamento da atividade lúdica; o uso da atividade proposta; e seus resultados. Constatou-se que novas percepções puderam ser referidas, e as mesmas permitiram a construção de novas narrativas familiares.

Palavras-chave: narrativas familiares; atividade lúdica; atendimento a casais e famílias; abordagem sistêmico-integrativa.

OPEN THE POSSIBILITY FOR NEW NARRATIVES: A CHALLENGE ABSTRACTS

A variety of narratives can enrich human life, given the possibility of assigning meaning to the relational experience from intrauterine life until the death, postulates Linares (2003, 2014). On the other hand, there is the resistance of the human being to revise its visions. Given this resistance, this work aims to present a tool to assist in the construction of new narratives: the artistic-ludic activity to care for couples and families from the perspective of the systemic-integrative approach. Such a tool allows the human being, without realizing it, to expresses his anguish, as it allows to be a therapeutic intervention properly said. Through a clinical case, will be illustrated the planning of the ludic activity; the use of the proposed activity; and their results. It was observed that new perceptions could be referred to, and they allowed the construction of new family narratives.

Keywords: family narratives; ludic activity; care for couples and families; systemic- integrative approach.

ABRIR LA POSIBILIDAD PARA NUEVAS NARRATIVAS: UN DESAFIO RESÚMEN

Una diversidad de narrativas puede enriquecer la vida humana, dada la posibilidad de atribuir significado a la experiencia relacional desde la vida intrauterina hasta la muerte, postula Linares (2003; 2015). Por otro lado, se cuenta con la resistencia del ser humano a revisar sus visiones. Dada tal resistencia, en este trabajo se tiene como objetivo mostrar una herramienta para auxiliar en la construcción de nuevas narrativas: la actividad artística-lúdica en la atención a parejas y familias bajo la óptica del abordaje sistémico-integrativa. Tal herramienta permite tanto que el ser humano, sin darse cuenta, expresa su angustia, como permite ser una intervencion terapeutica propiamente dicha. A través de un caso clínico, se ilustra la planificación de la actividad lúdica; el uso de la actividad propuesta; y sus resultados. Se constató que nuevas percepciones pudieron ser referidas, y las mismas permitieron la construcción de nuevas narrativas familiares.

Palabras clave: narrativas familiares; actividad lúdica; atención a parejas y familias; enfoque sistémico-integrativo.

“O mundo não é o que penso, mas o que vivo, estou aberto ao mundo, comunico-me indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é inesgotável.”

(Merleau-Ponty, 1971, p.14)

Esta epígrafe nos oferece a oportunidade de nos apercebermos que enquanto tivermos vida teremos a possibilidade de aprender e assim poderemos tecer diferentes narrativas individuais e familiares.

Tais possibilidades podem nos estimular a enfrentar os desafios com os quais nos defrontamos na prática clínica. Temos uma vasta bibliografia na terapia familiar e em outros campos do conhecimento que são o nosso alicerce para seguirmos em frente. Tais pressupostos poderão auxiliar a autora a apresentar o objetivo desse trabalho.

Linares (2014) nos abre uma primeira porta para enfrentarmos tal desafio quando se refere ao sentido de sua expressão: Terapia Familiar Ultramoderna. O autor explicita que tem com essa terminologia o objetivo de estimular a abertura das janelas do território sistêmico para ares novos para que se alimente com aquilo que há de muito bom já presente na tradição psicoterapêutica.

No entanto estar aberto ao mundo, conforme a epígrafe permite vislumbrar, não é necessariamente uma possibilidade tão natural, e as palavras de Bion (1992, p.9-10) nos confirmam tal vislumbre:

(…) Mas todos nós odiamos a tempestade que implica o ato de rever nossas visões; é muito perturbador pensar que poderíamos chegar a mudar de parceiro, ou profissão, ou país, ou sociedade; assim, a pressão para dizer “daqui não passo” estabelece uma resistência ao aprendizado (…). (BION, 1992, p 9-10).

A presença da abordagem sistêmico integrativa por outro lado materializa o incentivo de Linares (2014) propiciando a integração das múltiplas escolas sistêmicas às contribuições de outras abordagens, dentre elas a psicanalítica, bem como de abordagens advindas de outros campos do conhecimento. Tal integração é fruto de uma postura aberta que favorece o nosso enriquecimento para nos ocuparmos das situações as quais a prática clínica nos apresenta, onde se constata que a mudança não é algo tão simples de ser conseguido.

Selvini, Sorrentino, Cirillo (2016) utilizam o termo pensamento sistêmico, complexo e integrado e, assim, revelam estarem intervindo, segundo uma postura integrativa.

Linares (2003; 2015) por sua vez ao escrever que narrativa é a atribuição de significado à experiência relacional, que ocorrerá desde a vida intrauterina até a morte, nos

mostra quão rica pode ser nossa vida com uma diversidade de narrativas. Essa narrativa, segundo Linares, é o ato de descrever a si mesmo e ao que lhe acontece, dando a isso uma coerência, o que por sua vez é cultural e pessoal.

Laso (2017) pode auxiliar a especificar o que favorece as mudanças. Laso (2017) discorre sobre como vem levando em conta e intervindo sobre o aspecto emocional na terapia familiar e de casal. Esse autor destaca dois princípios fundamentais para viabilizar a mudança emocional: (1) compreender o lugar onde se está e (2) ver ou ao menos vislumbrar o lugar para onde se dirigir. Compreensão e visualização são conquistas advindas da experiência emocional desses grupos, segundo o autor.

As considerações dos autores citados permitem evidenciar que o objetivo desse trabalho é mostrar uma ferramenta para auxiliar a construir novas narrativas dadas as dificuldades implicadas nesse processo. Tal ferramenta é constituída pelas expressões artísticas e o brincar, atividades descritas em outros campos do conhecimento e/ou modelos teóricos que podem ser integradas ao atendimento de casais e famílias.

Tornam-se importantes ferramentas uma vez que a possibilidade de escrever novas histórias é inesgotável. Por outro lado, já que sabemos que reavaliar nossas posições é assustador, que precisamos nos dar conta de nosso lugar na relação (o que ainda implica outras gerações) bem como visualizar novos caminhos antes de seguir adiante podemos perceber a complexidade do processo. Sendo assim, ter novas ferramentas que possam abrir possibilidades para novas narrativas pode nos ser útil na prática clínica.

Pereira (2010) ao discorrer sobre o tipo de intervenção para promover a Resiliência Familiar mostra que a mesma deve permitir que se reconheça na narrativa familiar o sofrimento, que dê sentido ao ocorrido e um significado que possa ser aceito por todos os membros da família. Ou seja, nesse contexto continente como recomenda Pereira (2010) uma tempestade emocional como postula Bion está vigente precisando ser nomeada. Esta afirmação permite o reforço da tese sobre a relevância de mecanismos para abrir possibilidades para construção de novas narrativas.

Nesse trabalho o objetivo é apresentar a atividade artística- lúdica como útil ferramenta para a terapia de casal e família ao mesmo tempo em que evidenciar tanto a relevância como o que está implicado no planejamento da mesma pelo terapeuta para se favorecer a possibilidade de conversar sobre as dificuldades vividas.

Fazem-se, então, necessárias algumas considerações sobre as possibilidades desse instrumental.

Kenzler (1995) escreveu que o ser humano se defende das emoções e para tanto utiliza mecanismos de defesa. Sendo assim, segundo Kenzler (1995) o uso de técnicas em que o ser humano expressa sua angústia, sem perceber o que está fazendo pode ser significativo. Aqui temos as artes e o brincar.

Fernandes (2003) por sua vez especifica diferentes linguagens que transmitem a informação tais como: as atitudes, a mímica, a palavra, a escrita, o desenho. A arte, segundo Fernandes (2003) em suas cores e sons, melodias, ritmos, compõe e expressa.

Dentre essas diferentes maneiras de comunicação está o brincar como escreve Winnicott (1971).

Green (2013) completa escrevendo que na realidade externa existe horror demais: guerra, delinquência, catástrofes naturais, epidemias, desemprego e terrorismo nesse nosso mundo.

Grenn (2013) pergunta-se como suportaríamos todos os traumas causados pela realidade sem o brincar onde no caso das crianças todos esses temas se encontram.

Andrade (1995) escreveu que nas diversas expressões artísticas o homem se coloca diante da realidade, ao expressar por meio de uma simbolização (a obra de arte) como estrutura seu mundo interior. A arte, pode, também, segundo ele, ser terapêutica, pois permite acessar a emoção tanto do criador como no público participante. O criador e o produto da criação são o porta-voz de como o homem aliou as sensações e percepções frutos de sua experiência pessoal e relacional. Através da arte forças oponentes podem ser integradas graças a sua qualidade integrativa.

Hiluey (2004; 2007; 2008) no contexto da investigação com alunos-médicos e famílias pode constatar a relevância de tal ferramenta para favorecer tanto o despontar do que angustia como para integrar percepções e informações. Novos caminhos podiam ser vislumbrados.

Para tanto uma ilustração prática parece ser oportuna e aqui se segue.

Pode-se constatar que “enganar” era o termo que melhor exprimia aquilo que vivia a Família Silva com seu filho de 11 anos. Essa vivência de ser enganado, respaldada por situações concretas gerava um sentimento de falta de confiança dos pais para com seu filho. A terapeuta tinha dados que lhe permitiam pensar que para os pais se aperceberem de seu filho não era algo simples. Eles possuíam alguns princípios e formas de educar filhos alinhados com as gerações anteriores e sua própria vivência enquanto filhos para os guiarem. Isso interferia significativamente impedindo que pudesse circular reconhecimento, valorização e carinho entre eles, o que favoreceria a possibilidade de seu filho ter uma vivência de ser amado, como descreveu Linares (2014).

A terapeuta optou por algumas técnicas expressivas as quais permitiram que um espaço fosse aberto para gerar novas narrativas que propiciaram a Família Silva experimentar um clima de confiança. Algumas das técnicas foram:

1) genograma lúdico que favoreceu que conversassem sobre as características das figuras de animais escolhidas para representar alguns membros da família o que gerou novas ideias sobre o relacionamento entre eles. Por exemplo o leopardo como um animal solitário; o hipopótamo como um animal altamente violento apesar de seus olhos doces. O diálogo possibilitou o reconhecimento da dinâmica estabelecida entre eles.

2) cada um escolher miniaturas em madeira de personagens, pessoas, animais, aves, objetos. A seguir se propunha conseguir as miniaturas que quisesse solicitando ao outro. Alguns dos temas conversados nesse jogo foram: que percebiam que através de truques até mímicos se engana para conseguir o que se quer; se aperceberam que tem coisas que não se quer dar; quem é enganado fica triste e com raiva.

3) leitura de conto infantil. Por exemplo: A toupeira que queria ver o cometa, de Rubem Alves. Onde se pode conversar sobre a prisão decorrente das próprias convicções que impedem de ver o que está diante dos olhos.

4) Ouvir a música: “Apenas tenha certeza que nunca está sozinho” (93 Million Miles). Solicitou-se que com recursos não verbais mostrassem como lhes chegou essa música. Pode-se conversar tanto sobre o que cada um esperava dos outros membros da familia como foram constatando o que lhes era possivel.

Pode-se sinalizar que a confiança parecia estar vindo a ser uma experiência possível entre eles.

Em sessões com o casal parental, o casal pode rever suas convicções sobre como

deveriam se portar como pais, versus sobre o que lhes era possível ser. Também puderam se aperceber de novas características do filho, até então não percebidas. Diziam eles: como a toupeira (referindo-se à personagem do livro infantil).

E assim uma nova narrativa despontou. Nessa nova história pais e filho lutavam focando três instâncias: a do querer, poder e dever enquanto iam se transformando, em família. Não estavam sozinhos, percebiam que tinham com quem contar, podiam confiar.

Comentários: a atividade artística lúdica
1) permite que se trate de temas penosos com seriedade, firmeza e humor, sem

necessariamente deixar de chorar e/ou mesmo ficar bravo;
2) o terapeuta deve propor atividades que no seu entender propiciarão que surjam os

temas que segundo sua percepção estão circulando no grupo familiar;
3) deve-se levar em conta as características das pessoas da família para escolher a atividade lúdica que possa lhes ser possível. Nem todas as pessoas se dispõe a

brincar, mas dependendo da brincadeira até podem se dispor;
4) aqueles terapeutas que tenham uma experiência no trabalho com crianças e adolescentes, em especial em ludoterapia, terão um conhecimento relevante para

utilizarem essa ferramenta no atendimento de casais e famílias.
5) o terapeuta deve ser significativamente participativo e utilizar seus conhecimentos teórico-técnicos em terapia familiar para fazer alinhamentos ao longo da sessão a

partir das novas informações e percepções circulantes.

No entanto mesmo estimulados por novas ideias vale lembrarmo-nos da mensagem de Antonio Machado: Caminhante, não há caminho. O caminho se faz ao caminhar.

REFERENCIAS

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__________ O aprender do médico-obstetra em um serviço de medicina fetal. In: MASINI, E; MOREIRA, M.A et al. Aprendizagem Significativa- condições para a ocorrência e lacunas que levam a comprometimentos. São Paulo: Vetor. 2008. p. 255- 283.

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Abrir a possibilidade para novas narrativas: um desafio. Hiluey, A.

Angela Hiluey – Psicóloga; Doutora em Educação pela FE/USP; Pós-Doutora em Terapia Familiar pela Universidade Autônoma de Barcelona/Espanha; Diretora e Docente do CEF-Centro de Estudos da Família Itupeva – escola associada a RELATES-Rede Européia e Latino-americana de Escolas Sistêmicas; Member of the EFTA – European Family Therapy Association; membro titular da ABRATEF e da APTF. angelahiluey@yahoo.com.br

As Aventuras do Avião Vermelho: Um Sonho de Potência e Reparação

Foto da copa do livro  de Erico Verissimo editada pela Companhia das letrinhas- Ilustrações de Eva Furnari

Artigo publicado e apresentado no II Colóquio de Psicanálise com Crianças  realizado no instituto Sedes Sapientiae em  10 e 11 outubro de 2014
Onde está o pai? Desafios da atualidade na clínica com Crianças
As Aventuras do Avião Vermelho: Um Sonho de Potência e Reparação 
Por Arianne Monteiro Melo Angelelli

Resumo – Por meio de uma análise do texto de Erico Veríssimo, mergulhamos nas fantasias inconscientes de uma criança cujo comportamento é agitado e desafiador. O pai deste menino o presenteia com um livro na tentativa de auxilia-lo em suas dificuldades, e através da vivência de um sonho com os elementos da história, a persecutoriedade e voracidade desta criança encontram um canal para a simbolização. A hiperatividade nas crianças é um sintoma pouco específico e somente a observação aprofundada pode auxiliar na compreensão das raízes do comportamento; sendo possível que a agitação configure defesa contra ansiedades depressivas decorrentes de dificuldades iniciais da vida. O pai, mais do que aquele que introduz a “lei” e insere a criança na triangulação edípica, também pode ser aquele que fornece o holding necessário para o desenvolvimento. Palavras-chave: hiperatividade, voracidade, holding, pai

Como dizia Freud, “é muito difícil formar uma opinião sobre se, e em que grau, os homens de épocas anteriores se sentiram mais felizes»(1), e isso é verdadeiro quando pensamos sobre as crianças de hoje. Fala-se muito sobre o declínio do poder paterno (2), e o afrouxamento nos laços humanos, nestes nossos tempos líquidos (3) : a família em crise. Mas quando recebemos um certo tipo de crianças, aquelas agitadas, hiperativas, sem limites, as dicotomias que separam o paterno e materno, a mente e o cérebro, não parecem trazer ajuda. O que está mesmo acontecendo com as crianças da pós-modernidade? Estão sem Pai, são porta vozes de doença social e familiar, da falta de limites generalizada, do furo do pacto edípico (4)? Ou estão sem Mãe, na medida em que seu comportamento disfuncional expressa deprivações, perdas precoces? Seriam estas crianças: neurologicamente deficitárias, incapazes da atenção sem ajuda de medicamentos ou ansiosas e deprimidas, encontrando na agitação equivalentes maníacos de defesa? Na aparente desorganização familiar atual, em que antigos papéis se intercambiam, há muita instabilidade, mas a chance de trazer o pai para mais perto, com suas valências femininas e masculinas, pode ser um dos ganhos dos novos tempos. A proposta deste trabalho é uma leitura reflexiva sobre um conto de Érico Veríssimo, “ As Aventuras do Avião Vermelho”(5). Uma criança com problemas de comportamento ganha do pai um livro e um brinquedo que a ajudam a elaborar uma rica fantasia onde ansiedades são elaboradas. O conto pode ser dividido em três partes. Na primeira, o pai interage com o filho e apresenta a ele os objetos de que fará uso na sua fantasia, ou sonho; um livro de histórias, um avião de brinquedo e uma lupa de diminuir, usada para que o menino possa encolher, entrar dentro do avião e partir em viagem. Na segunda parte, ocorre a aventura: o menino e dois companheiros, voando no avião de brinquedo, pousam na lua feita de gelo, e a seguir iniciam uma série de viagens, perseguições e fugas: permeadas pela ameaça constante de serem devorados: pela cobra, pelo porco e pelos canibais que encontram pelo caminho. Na terceira parte, dois acidentes: o avião cai no mar e logo depois cai de novo por causa de uma ventania, sofrendo um tombo “horrível” (o nascimento?) quando passa pela chaminé e desperta no escritório do pai, onde precisa crescer novamente. Vejamos o que nos diz a história: “ Chamava-se Fernando. Era um menino muito gordo. Gordo e travesso. Travesso e brigão. Um dia papai viu Fernando sentado num canto da varanda e perguntou: “ Meu filho, por que é que tu és tão travesso, brigão, malcriado? “ – Porque sou valente!” – rosnou como um leão que está começando a ficar zangado.” Compreendendo quanto de tormenta e medo existe na valentia de Fernando, o pai escolhe o livro certo, a história do “Capitão Tormenta” , e presenteia o menino, expressando seu desejo de que haja uma mudança no filho. O herói, com quem Fernando se identifica imediatamente, é aviador e viaja pelo mundo enfrentando todo o tipo de perigos. Então o menino pede ao pai também um avião, e ganha o aviãozinho de brinquedo. Ao trazer para o filho a escuta, a compreensão, livro e brinquedo, o pai exerce uma função dupla. Ele é aquele que traz a palavra, o limite. Mas também fornece holding e apresenta ao menino o objeto que será de uso transicional, senão vejamos: Fernando, com o avião, “ foi para o quarto e começou a brincar. brincou muito tempo”. O pai também nomeia a “Tormenta” que é o filho: tormenta em casa, a fazer estripulias, tormenta que agita o ambiente, como uma tempestade, e mais além, criança atormentada, amedrontada, que se diz valente (6). E a interação entre pai e filho continua. Fernando conta ao pai que quer viajar como o capitão Tormenta. “– Papai – disse Fernandinho com voz tremida eu também tenho vontade de viajar de avião. – Pois sim, meu querido, quando ficares grande poderás entrar num avião. – Não, papai, eu acho que só posso entrar num avião quando ficar pequeno.” Enquanto o pai entende que o desejo do filho é ser grande, para poder penetrar no avião (sexualidade adulta ?), Fernando pensa em como ficar pequeno para pode entrar no avião de brinquedo , e ficar pequeno de novo é regredir, para retomar o desenvolvimento. Senão vejamos: “O pai … era engenheiro. tinha um escritório cheio de máquinas, réguas, compassos… – Como é o nome daquilo, pai? – Aquilo se chama lente. – Para que serve? – Para aumentar as coisas. – E aquela? – Aquela, ao invés de aumentar as coisas, diminui. “quando a gente bota esse vidro em cima duma coisa, essa coisa fica pequena, não fica? pois então vou botar esse vidro em cima de mim e vou ficando pequeno, pequeno, até poder entrar no avião.” Como a Alice de Lewis Carroll, Fernando ora é grande, ora pequeno, menino medroso que aterroriza os demais, mas a descoberta da lente do pai permite a formulação de uma ideia de relatividade, além da possibilidade, da oportunidade de regredir (colocar-se sob a lente de diminuir). Ele observa as coisas ficarem grandes ou pequenas sob as lentes, entende que não é adulto ainda. Mas para o menino, importa menos ser grande e ter um pênis como o do pai, já que o que ele precisa é voltar a ser o bebê que entra, ou é contido, pelo pai avião, para elaborar uma fantasia de cura. (7). Na segunda parte da história, já Capitão Tormenta, depois de ser reduzido ao tamanho do seu avião, Fernando viaja à Lua, e “lá tudo era de gelo”. O aspecto inóspito da lua é negado. O herói usa uma “casacão de pelo” e não sente o frio. (Uma referência à obesidade?). Descobre que na lua tudo acontece “ao contrário” mas não sente perplexidade, aproveita para tomar sorvete de graça, comendo estrelas ainda vivas: “O empregado tirou sorvetes de uma lata; depois espichou o braço, furou o teto da casa e apanhou lá no alto três estrelinhas, que soltaram gritos de susto.” Temos aí a infeliz combinação da mãe deprimida (Lua fria) com a criança voraz, que encontramos na clínica com frequência . Ainda incapaz de concernimento, o menino e o avião quase atropelam uma estrela ao partirem “A estrela, muito delicada, pediu desculpas…o avião voltou a cabeça para ela e botou a língua para fora. Que mal-educado!” Começa agora a segunda parte da viagem, passando por uma cidade esquisita, pela China e pela África, pelo encontro com um zepelim e o mergulho no mar. Nessa jornada, repetidas vezes a fantasia de devorar e ser devorado se corporifica: “De repente viram um monstro. Era uma cobra enorme. Preta e amarela. A cobra abriu a boca…e segurou com os dentes o rabo do aparelho, que soltou um grito: – Ai! vou morrer envenenado!” Ou ainda: “de repente apareceu um porco gordo, abriu a boca e os engoliu.” E na África: “Desceram na África, mas foram muito sem sorte. Caíram bem no meio de uma aldeia de selvagens. Ficaram prisioneiros dentro de um porongo. O porongo era muito escuro. Os exploradores compreenderam que iam ser queimados.” Sempre salvos pelo avião vermelho, o menino e seus amigos são quase devorados por três vezes. Por fim passam a ser os devoradores: encontram um zepelim, feito de marmelada, chocolate… e começam a comê-lo. Então: “o comandante do dirigível estava naquele momento examinando a barriga do seu navio aéreo, que se queixava de dores muito fortes. Viu os aventureiros: – Piratas” Comeram um pedaço do meu zepelim!” Outra perseguição acontece, ocasionando a queda do avião no mar , quando se transforma num submarino. O surgimento de um clima depressivo introduz a passagem para a terceira parte do conto. “a água estava fria. ficaram muito assustados.” “e agora, o que vamos comer?” Mesmo depois da tempestade, de novo no céu, não demora muito para o avião cair outra vez: “e o avião vermelho foi arrastado para a terra.” “o tombo foi horrível”. E a catastrofe continua: caem dentro de uma chaminé, e dentro dela, se machucam: “o avião ficou com um olho preto. O ursinho perdeu muitos pelos…Fernandinho ficou com um galo na cabeça” Os machucados dos amigos na passagem pela chaminé podem ser interpretadas como reminiscências do trauma do nascimento, mas também como a falência das defesas maníacas, simbolizada pela queda, o frio, os machucados, o medo. Seria um momento depressivo que ocorre após o ataque sádico ao corpo da mãe, quando comem o zepelim? O medo do colapso já vivido? Pois aqui elementos semelhantes em sua forma e função, quais sejam: zepelim e porco, em cujas “barrigas” Fernando se aloja, primeiro engolido, e depois ativo devorador, além de representarem fantasias primitivas relativas ao engravidamento e ao nascer, correlacionam-se com a figura da Lua inicial, todas representativas do feminino e carregadas de ambivalência. Enfim, a figura do pai reaparece quando despertam contentes em seu escritório (mesmo que machucados pelo tombo): “– Agora precisamos crescer de novo!” O desfecho da aventura é a retomada da realidade, incluindo o sermão do pai que encontra o avião “espatifado” na lareira. Mas a criança, agora apaziguada, já de posse de novos recursos, não mais atua a angústia no comportamento; “ Fernandinho compreendeu tudo. Papai não sabia da aventura… quando a gente é pequeno, do tamanho de um dedo mindinho, cada dia dos homens vale cinco dos nossos. Foi uma aventura muito engraçada…Fernadinho até hoje fala nela” Neste conto, a profusão de elementos : lua fria, agua fria, perseguidores devoradores e a dinâmica maníaca da criança podem nos fazer supor alguma falha inicial dificultando a integração das ansiedades primitivas, de modo que apesar de ter havido desenvolvimento, permaneceu uma tendência à agitação, à dissociação , à voracidade e ao comportamento disruptivo, desafiador, expressão última da angústia e temor sentidos. A natureza maníaca da defesa esconde ansiedades depressivas: “arrastado para a terra. o tombo foi horrível”. Aqui vale o comentário de Winnicott “ as fantasias onipotentes não são tanto a realidade interna propriamente dita quanto uma defesa…nos tão frequentes livros de aventuras .. o autor…não tem consciência das ansiedades depressivas das quais fugiu. Sua vida foi cheia de incidentes e aventuras… baseado… na negação da sua realidade interna pessoal ” …(10) Podemos pensar o Capitão Tormenta como um menino a- atormentado pelo próprio sadismo oral projetado nos objetos (8). Gordo, travesso, e brigão, defende-se como pode das ansiedades depressivas e da mãe- morta, Lua “gelada”, que não acolhe(u). Quando o pai oferece livro (com as palavras certas), brinquedo e instrumentos, estes funcionam como um objeto criado-encontrado (9), seio que nutre e falo gerador de potência, elementos que o menino utiliza na construção de uma fantasia de cura (7), que é o re-nascimento. O pai da história apresenta vivacidade, ao lidar com o menino diretamente em suas questões edípicas, sob a lógica fálica, e tem boa capacidade feminina, ao se permitir penetrar por este filho (“papai, eu acho que só posso entrar num avião quando ficar pequeno”). É o holding paterno que propicia a Fernando a possibilidade de relaxar e brincar.
referências bibliográficas
1- Freud, Sigmund. O mal-estar na civilização [1929/1930]. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 2006, v. XXI
2- 2-Neder Bacha, Marcia. Déspotas mirins: o poder nas novas famílias. São Paulo: Zagodoni Editora, 2012
3- 3-Bauman, Zigmunt. Amor liquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
4- 4-Pellegrino, Hélio. Pacto Edípico e Pacto Social (Da Gramática do Desejo à semvergonhice Brasílica). In: Folhetim da Folha de São .Paulo, setembro, 1983.
5- Veríssimo, Erico. As aventuras do Aviao Vermelho. Sao Paulo: Companhia das letrinhas, 2003.
6- Di Loreto , O . Argumentando a favor de posições tardias. In Posições tardias. Contribuições ao estudo do segundo ano de vida. São Paulo. Casa do psicólogo,2007.
7- 7-Aberastury, A. Psicanálise da criança. Teoria e técnica. 8. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992
8- 8-Klein, M (1996) Estágios iniciais do conflito edipiano. In: Amor, culpa e reparacão e outros trabalhos- 1921-1925. Trad. A. Cardoso Rio de janeiro: Imago
9- 9-Winnicott, D. W. (1975) Objetos transicionais e fenômenos transicionais (1951) In Da Pediatria à Psicanalise :obras escolhidas. Trad. Davi Bogomeletz. Rio de Janeiro: Imago, 2000.
10- 10- Winnicott, D.W ( 1975) A defesa maníaca ( 1935) in Da pediatria á psicanalise: obras escolhidas. Trad. Davi Bogomeletz. Rio de Janeiro: Imago, 2000.

A obra de Erico Verissimo foi transformada em animação em 2104 Frederico Pinto e José Maia

http://www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise_crianca/coloquio2014/images/Anais_IIIColoquio_2014.pdf

As treze Razoes de Merli

As treze razões de Merli

AS TREZE RAZÕES DE MERLI
Arianne Angelelli*

Nas últimas semanas falou-se muito de suicídio adolescente. Um seriado da Netflix, “13 reasons why” ou “os 13 porquês” estreou na provedora causando grande reação da mídia. Ao mesmo tempo, um suposto jogo online chamado Baleia Azul, foi noticiado tratando do mesmo tema. Nos grupos de WhatsApp, pais aconselhando uns aos outros a impedir seus filhos de assistir ao seriado. Uma reportagem sobre o jogo da Baleia Azul no YouTube, com quase 500.000 visualizações… A TV está cheia de morte. Fascina. O apocalíptico “Walking Dead”, série sobre zumbis está entre as três séries mais vistas em 2016. E tem para todos os gostos – em “Breaking Bad” um professor de química se transforma em traficante de metanfetamina e morre de forma apoteótica, com uma chacina. Afinal, do que estamos falando? Em “13 reasons why ”, Hannah, uma bela jovem americana, vítima de bullying, estuprada, se suicida e narra sua história postumamente. Está difícil viver?

Ou ver? Pois, no seriado, a jovem Hannah, como o palíndromo no seu nome, parece correr em círculos sem saída, entrando num estado de desesperança que somente a morte pode remediar. Na medida em que ouvimos as gravações que fez explicando as razões do próprio suicídio (uma sequência de abusos que inicia com a divulgação de fotos suas na internet), o ato extremo passa a comunicar o que não pode ser comunicado em vida. Não parece haver a possibilidade de encontrar no mundo dos adultos ou em algum outro canto a consistência, a segurança, a proteção, durante a vida. Do lado de cá da tela, uma verdadeira paixão pelo Real nos escraviza, e assistimos passivamente a cena em que ela corta seus pulsos (didática, da maneira mais certeira para se morrer).

Todos os dias uma profusão de imagens, sem filtro, invade nosso celular e telas, num excesso que nos faz cegar. (Será preciso diminuir a sensibilidade para lidar com tantas informações simultâneas, a morte exposta sem pudor, a violência crua?). São excessos. A sociedade do espetáculo precisa do sangue e do exagero, e o “sou visto, logo existo” substitui o velho axioma de Descartes. Pensamento simbólico é um processo lento demais para este nosso tempo rápido, líquido. Um snap chat dura alguns segundos, a imagem se esvai (conseguiu fazer um print? Não?) e são tantas as mensagens que apreendemos de forma quase fotográfica, sem uma pausa para a reflexão, que pensar se torna um luxo raro, e o “déficit de atenção” quase uma defesa.

Já em “Merli”, que conta a história do professor de filosofia catalão, o pensar ganha novo status para o grupo de adolescentes a quem ensina. Trata-se de um seriado, também disponível na provedora Netflix, em que cada episódio se intitula com o nome de alguma corrente da filosofia. O tema costura as reflexões em aula com os dramas cotidianos dos alunos, que estão lidando com as primeiras experiências sexuais, os embates familiares, o luto. A amorosa Monica de Vilamore, que vem de outra escola, tem a privacidade devassada pela divulgação na internet de um vídeo íntimo. Neste ponto sua história se assemelha com a de Hannah (em um episódio de “13 reasons“) – ambas alunas novas, sofrem um ataque virtual. Mas aqui, Merli, atento, vem em auxílio da moça, e contra-ataca fazendo os rapazes refletirem sobre a própria responsabilidade na propagação deste vídeo. O filósofo do dia é Guy Debord. No aqui-agora da sala de aula, refletem sobre a exposição que inadvertidamente fazem da colega, sobre a falta de ética da atitude, enquanto discutem as idéias do pensador que escreveu “A Sociedade do Espetáculo” na década de 60. Para ele, o “ser” se transmuta em “ter”, e, cada vez mais, em “parecer”. O grupo se dá conta do ataque feito à colega e a resgata, em atitude amorosa, de forma muito criativa.

Em “Três ensaios sobre juventude e violência” (1), Rose Gusrski pergunta: “será que a dimensão do espetáculo, ao instalar a saturação de imagens como paradigma do sentido, penetra no sujeito de modo a criar uma relação literal demais para o homem?”

Literal demais, sim, em “13 reasons”: a morte, o suicídio, a indiferença. O ato violento como única possibilidade de se fazer escutar. Se a protagonista Hannah foi vítima do mesmo assédio que Monica, ao ter fotos comprometedoras divulgadas de forma maliciosa, só no caso desta última a intervenção pensante do mestre reverte o destino da jovem. Mesmo crime, dois destinos; destino de morte, destino de vida.

Merli” e “13 reasons ” estão disponíveis, ao mesmo tempo, na mesma provedora, Netflix. Todos nos assustamos com a impulsividade da adolescência, com a rapidez do mundo virtual, e o primado do Real que parece ter vindo para ficar… Mas, como nos diz Winnicott (2) “Onde houver o desafio do rapaz ou da moça em crescimento, que haja um adulto para aceitar o desafio.” Merli aceitou.

Referências

1) GURSKI, R. R. Três ensaios sobre juventude e violência. São Paulo: Escuta, 2012. 174p.

2) Winnicott, D. W. (1975). Morte e assassinato no processo do adolescente. In: O brincar & a realidade (pp. 194-203). Rio de Janeiro: Imago.

*Arianne Angelelli: Médica psiquiatra formada pela USP, residência em Psiquiatria Infantil, formação pelo IPPIA – Instituto de Psiquiatria da Infância e Adolescência, membro do departamento de saúde mental da sociedade paulista de pediatria.