O comportamento preconceituoso

Para além de uma questão racial, a gente está sofrendo uma questão de aniquilamento do humano.Você retira a humanidade das pessoas. Você retira do indivíduo a possibilidade de sentir, de pensar e de lidar com as adversidades. A vida- eu vou desapontar algumas pessoas agora- por si só é complexa e difícil ,ela não é facil, e ela não é simples. E nós precisamos entender que ela é difícil para todos nós, e precisamos um do outro para poder viver…porque… você pega lá um chicungunha, um zica virus, gripe asiática …que extermina a humanidade… acabou… a gente não tem o poder que a gente imagina que tem!

Por isso que a música é maravilhosa, a precisa sonhar mais, poder sonhar mais, a lua que eu imagino, pode ser a mesma lua que você vê e imagina diferente… a gente não pode ter medo de viver!

Claudinei Affonso

Este é um trecho da entrevista postada no link abaixo, do nosso querido psicanalista e professor Claudinei Affonso, um dos fundadores do blog Gesto Espontâneo.

O tema é racismo, mas vai além. A interdependência que temos uns dos outros e a dificuldade em aceitar o diferente, a questão da violência, aqui falada contra o negro e a mulher negra.

Interessante que no programa que aconteceu na radio há três anos, ele fala de algo que está acontecendo conosco agora, com a pandemia de COVID 19.

Gostaríamos de falar aqui sobre o estado de mente fascista: que assim como racismo e o preconceito, faz parte de todos nós. Um autor que estudou muito a obra de Winnicott, Christopher Bollas, tem um artigo intitulado ” O estado de mente fascista” em seu livro “Sendo Um Personagem”*. Ele é comentado pela professora doutora do Departamento de Antropologia da Unicamp, e também psicanalista, Amnéris Maroni:

A mente fascista não é parlamentar(com vários pontos de vista em confronto, em diálogo),

mas imperial: com um
único ponto de vista fixo.

Torna-se inumana. Para chegar a isso os fascistas
desencadeiam uma guerra permanente primeiro contra si – por meio de múltiplos assassinatos contra as partes de seu self amoroso, reparador, compassivo

– e depois contra os outros, eleitos para esse fim. Para eliminar toda a oposição interna, a mente fascista conta com a ideologia, crença, convicção – antídotos da dúvida, da hesitação –, convergindo para um campo de certezas.

Não existe espaço para a dúvida, para a alteridade, o diálogo.

Como é a mente fascista para a psicanálise? Quais defesas a constituem e,
particularmente, como se dá, nessa mente, o processo que a torna desumana? O Estado Fascista foi um movimento especial na história do mundo, com aspectos singulares e datado. Mas, como diz Bollas, fascista é agora uma metáfora no nosso mundo para tipos especiais de pessoas, e é possível reconhecer nelas um
determinado perfil psíquico.

Podemos observar uma polarização, uma simplificação do pensamento e o ódio ao outro aumentando no nosso país, carente de lideranças sensatas onde o vírus da incompreensão corre solto. Nada pode justificar a retomada de um governo autoritário, embora o medo possa gerar o desejo de uma ordem suprema que venha submeter a todos e todas , eliminando a possibilidade de contradição.

Para saber mais vale a pena ler o ótimo artigo de Amnéris Maroni:

http://pepsic.bvsalud.org/pdf/jp/v52n96/v52n96a07.pdf

*BOLLAS. Christopher. ¨O Estado da Mente Fascista¨. In: Sendo um Personagem. R.J. Ed. Revinter, 1998.

Um bate-bola com os adolescentes

Vozes em Debate: Adolescência

Gabriela Viana conversa com a especialista em psiquiatria da infância e adolescência pelo Hospital das Clínicas da USP, Arianne Angelelli, e os adolescentes Gustavo Polo, de 14 anos, e Beatriz Videira, de 17 anos.

Publicado em 17/07/2019•Duração: 52min

https://cbn.globoradio.globo.com/media/audio/267570/vozes-em-debate-adolescencia.htm

o pai no pós parto

A elaboração psíquica do processo gravídico puerperal e do fenômeno da parentalidade ocorre em homens e mulheres e o processo ocorrido com o pai tem sido menos documentado. A paternidade é um momento de crise para o homem, que, quando adoece, tende a apresentar mais sintomas externalizantes e ter sua depressão não reconhecida pelos profissionais de saúde.

Gesto espontâneo e interpretação criativa

https://www.metodista.br/revistas/revistas-metodista/index.php/MUD/article/view/831/846

Professora Doutora Ivonise Fernandes da Mota

O gesto espontâneo e a interpretação criativa

Ivonise Fernandes da Motta*

PARA SER GRANDE, sê inteiro: nada

 Teu exagera ou exclui

Sê todo em cada coisa.

 Põe quanto és

No mínimo que fazes.

Assim em cada lago a lua toda

Brilha, porque alta vive.

Pessoa, F. (1995/1993). Ficções do Interlúdio / Odes de Ricardo Reis, 414, 14- 2-1933. In Fernando Pessoa, Obra poética. Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar S.A., p. 289.

 Resumo

O presente artigo tece considerações sobre possíveis manifestações do “Verdadeiro Self” que podem ter ocorrência no processo psicanalítico. “Expressões”, “gestos” ou “atitudes” inesperados ou surpreendentes tanto por parte do terapeuta quanto por parte do paciente podem facilitar revivências do passado, da história psíquica do analisando, que podem ser extremamente valiosas para o trabalho psicoterápico em andamento. O termo “interpretação criativa” estaria incluído nessa categoria ou classificação. Descritores: psicoterapia; psicanálise; Donald W. Winnicott; gesto espontâneo; criatividade.

Introdução

               Gesto espontâneo foi um termo utilizado por D. W. Winnicott para designar uma das inúmeras maneiras pelas quais o verdadeiro self pode se expressar. Estaria relacionado ao cerne, ao centro do ser, representando o que há de mais autêntico, mais genuíno para aquela pessoa em especial. Nesse contexto, gostaria de empregar o termo “interpretação criativa” para algo semelhante que pode ter ocorrência no trabalho analítico. A partir do contato com o paciente, nós, psicoterapeutas, podemos nos surpreender com “expressões”, “gestos” ou “atitudes” que poderíamos denominar “inesperados” ou “surpreendentes”. Após muitos anos de trabalho com pacientes com as mais variadas dificuldades, queixas ou sintomas, por vezes algo que se poderia dizer dessa natureza, ocorria: uma palavra, uma atitude inesperada do terapeuta surpreendem o “par analítico” ao trazer à tona algo novo, algo novo para revelação. Por exemplo, dizer a um paciente a frase: “não admito isso em um homem”, após ouvir várias de suas associações, despertaria no mínimo “estranheza”, ou eu diria “surpresa”. À primeira vista, tal expressão poderia ser entendida como autoritária, disruptiva, invasora. Com a evolução ou experiência nos vários e diferentes setores do campo psicanalítico desde sua criação, vários aspectos, teóricos e técnicos, tiveram de ser gradativamente revistos e mudados. O trabalho com crianças e pais trouxe inúmeras contribuições e conhecimento tanto no que se refere ao desenvolvimento psíquico quanto à constituição e construção das bases fundamentais do psiquismo. De maneira semelhante, o trabalho com pacientes psicóticos ou com perturbações mais severas trouxe inúmeras contribuições sobre a importância do que se denomina “manejo de setting”. O “setting” clássico ou tradicional estabelecido por Freud tem suas bases na experiência principalmente com pacientes neuróticos. O trabalho com pacientes regredidos ou em regressão mostrou a necessidade de várias modificações: tempo das sessões, pertinência ou não de interpretações, tipos de interpretação condizentes com o material vivenciado, orientações ao ambiente do paciente (pais, parentes, instituições). Com esse tipo de pacientes, o que denominamos usualmente “neutralidade” do analista cede lugar ao que poderíamos chamar o surgimento da pessoa real do terapeuta. Ou seja, aparece a marca da falha do ambiente. Algo no desenvolvimento daquele indivíduo revela a presença de um aspecto do ambiente que dificultou o desenvolvimento psíquico ou mesmo “traumatizou” ou irrompeu ou interrompeu com invasões disruptivas. O conhecimento advindo do tratamento com pacientes regredidos ou em regressão (como gravidez, crises, por exemplo) nos aproxima da emergência de conhecimentos semelhantes com pacientes neuróticos. O acompanhamento de pacientes diagnosticados neuróticos irá, por vezes, de encontro a revivências primitivas, ao aparecimento de falhas ambientais significativas para o paciente, para sua constituição e desenvolvimento. Frases que à primeira vista parecem “destoantes” ou “estranhas”, como uma terapeuta dizer a um paciente “não admito isso em um homem”, podem ser um sinal da necessidade do encontro com algo do passado, uma falha ambiental do passado do paciente que emerge pelas palavras do terapeuta. Ao sublinhar a importância do ambiente no desenvolvimento psíquico, Winnicott vem ferir mais uma vez o narcisismo do ser humano: não podemos ter controle sobre muitos dos acontecimentos que ocorrem conosco. As pessoas que nos circundam invariavelmente irão limitar, influenciar e até definir situações que podemos até desconhecer, o que nos remete ao observado por Freud em relação à instintividade no ser humano: o homem mais uma vez não é senhor em sua própria morada. Os terapeutas de crianças e adolescentes costumam conhecer bem essas limitações. As dificuldades invariavelmente surgidas na psicoterapia quando do atendimento desse tipo de pacientes expõem os limites de nossa onipotência, de nosso trabalho, limites e alcance que sofrem repercussões de várias ordens envolvendo familiares. O papel materno no desenvolvimento humano é conhecido por vários e diferentes vértices, por pesquisas nas mais diversas áreas do conhecimento. Com os avanços nas pesquisas, o papel paterno tem se mostrado de igual importância para as possibilidades de desenvolvimento psíquico. Winnicott ressalta a importância da figura do pai tanto no que concerne em fornecer apoio para a mãe desempenhar suas funções maternas, quanto em favorecer as várias e sucessivas passagens desde o estágio de dependência absoluta (mãe-bebê) até o de dependência relativa. Para esse autor, o pai tem o lugar do indestrutível, o limite que não pode ser ultrapassado. Por isso mesmo, sua presença liberta o menino, o homem, para a instintividade. A possibilidade de “matar” o pai simbolicamente e não ter a concretização da “morte”, na medida que o pai mantém sua presença e lugar constantes, libera o menino para seus desejos instintivos. Desejar é distinto de concretizar, portanto não oferece ameaças reais ao menino, ao homem e à figura paterna. A rivalidade e a competição edípicas podem ser vivenciadas em tons e matizes ricos e presentes possibilitando o caminhar por esses conflitos sem a necessidade de defesas patológicas ou excessivas. No desenrolar do trabalho analítico, muitos aspectos do terapeuta são trazidos à revelação, além dos emergentes do próprio paciente. Levando-se em consideração que o terapeuta tem seus conflitos neuróticos devidamente analisados, além do conhecimento de vários ângulos de seu funcionamento mental mais primitivo, o surgimento de momentos do que se poderia denominar “expressão do verdadeiro self” pode trazer revelações significativas para o par analítico. A análise cuidadosa dessas expressões faz-se necessária para compreensão e possibilidades de sua utilização a favor do tratamento psicoterápico em andamento. É importante frisar que a presença desses momentos, ou o que eu chamaria “interpretação criativa”, ocupa um lugar diferenciado do que poderia ser facilmente confundido com “acting out” do terapeuta, ou seja, invasão no setting analítico de aspectos do self do terapeuta, que, de maneira intrusiva, pressionam o tratamento. Ao escrever sobre mudanças do setting, D. W. Winnicott delimitou as especificidades, limites e perigos de tais situações. Uma de suas recomendações era a de que o tratamento com pacientes regredidos ou em regressão deveria ser conduzido apenas e tão somente após dez anos de experiência analítica. A complexidade de tais ocorrências demandariam muito do psicoterapeuta tanto em termos psíquicos quanto em termos de conhecimento psicanalítico, daí a necessidade de, no mínimo, dez anos de trabalho com pacientes. Outeiral (2001), ao escrever sobre o tema ressalta: “A contribuição de D. W. Winnicott para ser compreendida requer um profundo aprendizado psicanalítico prévio (e neste ponto concordo plenamente com os padrões de formação da International PsychoAnalysis Association, baseados no “tripé” criado por Eitington: análise pessoal, supervisão e seminários teóricos) que nada tem a ver com superficialidade, ‘intuição pura’, empirismo ou ‘espontaneidade sem sentido’… A clínica que nos é permitida acompanhar é plena de sentido e intencionalidade” (p. 103). Outro aspecto relevante a ser considerado é a impossibilidade de comunicação. É trazido à revelação algo que estava bloqueado ou impedido de ser conhecido ou revelado. O contato cada vez maior e mais profundo com vários aspectos psíquicos do paciente e conseqüentemente do próprio terapeuta tem expressão por meio do surgimento do que denomino neste artigo “interpretação criativa”. Algo do ambiente constitutivo do paciente torna-se presente, possivelmente uma falha. Algo falhou e é revelado por algo que é dito pelo terapeuta e que pode surpreender o próprio terapeuta. Quando falhas foram significativas no desenvolvimento do paciente; a revivência do ocorrido no passado é invariavelmente acompanhada por sentimentos hostis, por sentimentos raivosos. Para Winnicott, o encontro do paciente com as limitações ambientais traz à tona a hostilidade pelos prejuízos, entraves e conseqüências. Esse seria um aspecto relevante ao traduzir a diferenciação entre o mundo psíquico do paciente e o ambiente do qual fez ou faz parte: discriminação cada vez maior advinda do trabalho psicoterápico quanto a quem sou eu e quem é o outro; quem são ou quem foram os participantes do entorno do paciente e geradores das falhas por vezes disruptivas ou invasoras. Trazer à consciência os danos sofridos, suas repercussões e presença na vida do paciente é de vital importância para o reconhecimento do que foi vivido em épocas pretéritas e a possibilidade de, ao revê-las, estabelecer outras bases para o desenvolvimento psíquico. Ao escrever sobre o tema, Margaret Little (1992), psicanalista e paciente de D. W. Winnicott que pôde vivenciar um tratamento com bases na regressão, diz: “A regressão para a dependência é um ‘processo de cura’ (Winnicott 1954b) originado não no analista, mas naquela parte do analisando, seu “verdadeiro self” (Winnicott 1949a, 1960b), que ainda pode esperar uma reversão do fracasso original, encontrando no analista uma adaptação suficiente para as suas necessidades. É preciso haver um ‘tratamento’ em vez de uma ‘técnica’; e um comportamento intuitivo, não interpretação verbal. Mas isso não é fácil, porque envolve o analisando em uma volta assustadora ao primeiro estágio não integrado. Há o risco de aniquilação repetida pelos estímulos aos quais ele tem de reagir fisicamente (reflexo de choque), e com uma integração forçada, contra os quais ele não tem defesas e não pode compreender; de deixarem-no cair quando ele está indefeso, não havendo limites ou controle. O analista tem de ser capaz de renunciar às suas defesas contra a mesma ansiedade, o medo de aniquilação, da perda de identidade, tanto por si mesmo como pelo paciente. Ao mesmo tempo, sua própria identidade deve permanecer distinta, e seu sentido de realidade inalterado, mantendo a consciência em dois níveis extremos, o da realidade e o da ilusão. Ele está na posição de uma mãe vis-à-vis o filho, mas onde nem ele nem o paciente estão de fato nessa situação. Isso exige as mesmas qualidades de uma “mãe suficientemente boa” (Winnicott 1952b), empatia com a criança (Winnicott 1960 a) e capacidade de considerá-la uma pessoa separada. Não contar com a “atitude profissional” para aceitar um “relacionamento direto” com o paciente como distinto da imagem do espelho, e lembrar-se de que a sexualidade não tem qualquer sentido aqui; unir-se fisicamente a ele aceitando a ilusão de unidade; tolerar o ódio do paciente sem revidar quando os traumas originais são revividos (Winnicott 1947, 1960c) e suportar as suas próprias emoções quando elas são despertadas” (Little, 1992, p. 88). Muitos anos de trabalho com pacientes dão ao terapeuta maior segurança e confiança adquiridas gradativamente e que o possibilitam renunciar pouco a pouco a uma “técnica” para a emergência de vários aspectos de seu próprio self ou, dizendo melhor, de seu “verdadeiro self”, o que contribuiria para revelação de aspectos essenciais do self do paciente, tanto aspectos dissociados quanto aspectos não integrados. O surgimento dessas facetas do self no presente com tons e matizes vivos e atuais tornaria possível todo um trabalho de revivências e integração. Winnicott, ao escrever sobre “A interpretação na psicanálise” (1968), afirma: “O princípio que estou enunciando neste momento é que o analista reflete de volta o que o paciente comunicou. Este enunciado muito simples a respeito da interpretação pode ser importante pelo próprio fato de ser simples e evitar as tremendas complicações que surgem quando se pensa em todas as possibilidades que podem ser classificadas na premência interpretativa. Se este princípio muito simples é enunciado, ele imediatamente precisa de elaboração, e sugiro que necessita de elaboração do seguinte tipo: área limitada da transferência de hoje, o paciente tem um conhecimento exato de um detalhe ou de um conjunto de detalhes. É como se houvesse uma dissociação pertencente ao lugar a que a análise chegou hoje. É útil lembrar que, desta maneira limitada ou desta posição limitada, o paciente pode estar dando ao analista uma amostra da verdade, isto é, de algo que é absolutamente verdadeiro para o paciente, e que, quando o analista o devolve, a interpretação é recebida pelo paciente que já emergiu, até certo ponto, desta área limitada ou condição dissociada. Em outras palavras, a interpretação pode ser mesmo dada à pessoa total, enquanto que o material para interpretação derivou apenas de uma parte da pessoa total. Como pessoa total, o paciente não teria sido capaz de ter fornecido o material para a interpretação” (1994, p. 164). A possibilidade de acesso às falhas ambientais vividas pelo paciente tornam possível não apenas o conhecimento dessas vivências e seus efeitos, mas também a emergência de possibilidades do que denominaríamos reparação. A sobrevivência do analista, a sobrevivência do paciente, significando a manutenção da constância do tratamento, e a não retaliação por vivências do tipo aqui descritas – “Não admito isso em um homem” – podem significar um marco de mudança. Nessa situação clínica aqui utilizada para exemplificar o que denomino “interpretação criativa”, o marco presente foi a interdição paterna realizada pelas palavras da terapeuta “não admito isso em um homem”. Evidenciou falhas vividas pelo paciente quanto à função paterna e que, ao serem trabalhadas na psicoterapia, puderam ser conhecidas e re-significadas. Em seu trabalho “O ódio na contratransferência” (1947), Winnicott ressalta a importância de, em certo tipo de pacientes ou em certas situações clínicas, o paciente encontrar o ódio do terapeuta que possibilitaria o surgimento do ódio do paciente, aspecto dissociado e que necessitaria de integração. O ódio do terapeuta traria essa dissociação à revelação e expressaria a permissão do surgimento de aspectos hostis do paciente para o trabalho integrativo. A expressão “não admito isso em um homem” inclui uma carga inegável de sentimentos hostis. Inclui também a firmeza e a força por vezes necessárias para marcar o limite, o limite intransponível, marcar o lugar e a presença do pai, o indestrutível. Margaret Little (1992), no relato de sua análise com Winnicott, assinala a importância do reconhecimento do ambiente para a integração de aspectos dissociados de sua personalidade. Winnicott definia a mãe de Little da seguinte maneira: “Sua mãe é imprevisível, caótica, e estabelece o caos ao seu redor” (p. 50). A esse respeito, Little escreve: “É preciso fazer uma observação sobre a minha família; caso contrário, seria difícil acreditar em muitas coisas que digo, ou mesmo entendê-las. Fico surpresa ao constatar que apesar de na verdade ter dito muito pouco sobre isso verbalmente ao D. W., seu comentário sobre minha mãe foi como uma revelação (não uma interpretação analítica). Ele tornou possível e lícito para mim compreender muitas coisas que eu já sabia, havia observado ou que me disseram” (1992, p. 51). O reconhecimento da importância do ambiente no desenvolvimento psíquico levaria a situações nas quais “o manejo de setting” se faz imprescindível e também ao reconhecimento de momentos nos quais expressões do verdadeiro self tanto do paciente quanto do analista são vitais para a superação de impasses no processo analítico ou para o surgimento de novas facetas valiosas para a continuidade do trabalho desenvolvido. Ao escrever sobre a conceituação de elementos masculinos e femininos expelidos (split-off) encontrados em homens e mulheres, Winnicott relata passagem instigante vivida com um paciente. O paciente já havia realizado uma longa análise, mas apresentava dificuldades em terminá-la. Em determinada sessão, Winnicott relata a presença significativa do que usualmente denominamos “inveja do pênis”, algo incomum ao se pensar que o paciente em questão era um homem. A interpretação fornecida ao paciente foi: – “Estou ouvindo uma moça. Sei perfeitamente bem que você é homem, mas estou ouvindo e falando com uma moça. Estou dizendo a ela: você está falando sobre inveja do pênis”. Os efeitos da interpretação confirmaram sua pertinência. O paciente responde: “Se eu falasse a alguém sobre essa moça, seria chamado de louco”. Winnicott prosseguiu: “Não é que você tenha contado isso a alguém; sou eu que vejo a moça e ouço uma moça falar, quando na realidade, em meu divã achase um homem. O louco sou eu”. E em seguida afirma: “Não tive de elaborar esse ponto, porque a chave era aquela. O paciente disse que agora se sentia são, num ambiente louco. Em outras palavras, achava-se agora liberto de um dilema” (1975, pp. 105-106). Winnicott conclui: “Esse complexo estado de coisas apresentava uma realidade especial para esse homem, porque ele e eu fomos impulsionados à conclusão (embora incapazes de prová-la) de que sua mãe (que já não está viva) viu uma menina quando o viu como bebê, antes de passar a aceitá-lo como menino. Em outras palavras, esse homem teve de ajustar-se àquela idéia da mãe de que seu bebê, seria e era uma menina… mas a loucura da mãe, que viu uma menina onde existia um menino, fora trazida diretamente ao presente através de minha afirmativa: ‘Sou eu que estou louco’. (1975, p. 106). O trabalho psicoterápico teve continuidade nas sessões seguintes, e outra das conclusões de Winnicott foi: “Quando me concedi tempo para refletir sobre o que acontecera, fiquei intrigado. Não havia aqui qualquer conceito teórico novo, nenhum novo princípio de técnica. Na realidade, eu e meu paciente já havíamos percorrido antes esse campo. Entretanto, tivéramos, aqui algo de novo, novo em minha própria atitude e novo em sua capacidade de fazer uso de meu trabalho interpretativo” (1975, p. 108). À medida que o trabalho psicoterápico prossegue e ganha profundidade, surgem possibilidades de acontecimentos dessa ordem, semelhantes ao descrito por Winnicott em “O brincar e a realidade” (1975). Algo bastante diferente, inesperado surge para o par analítico trazendo à luz aspectos importantíssimos do passado do paciente e que, até então, não foram revelados. Em “Holding e interpretação” (1991), Winnicott relata a análise com um paciente homem, por meio da qual podemos acompanhar suas interpretações de angústias e conflitos edípicos. Em “Relato do tratamento psicanalítico de uma menina ‘Piggle’” (1979), Winnicott narra o trabalho realizado em 16 consultas terapêuticas – trabalho que ele denomina tratamento segundo a demanda. Ou seja, a menina comunicava a necessidade da realização de uma consulta, a qual era aceita por Winnicott. Angústias e conflitos edípicos foram profundamente trabalhados. Mais uma vez, ao lermos esses tratamentos conduzidos por Winnicott, torna-se presente a importância do ambiente e das figuras materna e paterna para a constituição e desenvolvimento psíquicos. O tratamento realizado por Winnicott com Gabrielle (Piggle) teve início quando a paciente contava com a idade de dois anos e cinco meses e finalizou quando tinha cinco anos e dois meses de idade. O posfácio do livro que relata a evolução de Gabrielle, após a conclusão do tratamento, dá-nos a confirmação de que as consultas realizadas possibilitaram trabalho integrativo imprescindível ao favorável desenvolvimento psíquico da menina. Esse tipo de tratamento, segundo a demanda, foi possível pelas boas condições ambientais presentes no caso de Gabrielle. Os pais e mesmo a menina tinham condições psíquicas favoráveis ao trabalho psicanalítico necessário para a superação dos sintomas e o movimento integrativo e evolutivo que foi realizado. Uma das conclusões sobre esse tipo de tratamento trazidas no posfácio do livro é: “O fato de os pais poderem participar de um processo de crescimento e reparação foi-lhes de grande valor. Tal participação evitou o que se pode freqüentemente observar: os pais sentem que foram ignorados e, dessa forma, talvez se predisponham a sentimentos de rivalidade e competição com o terapeuta; talvez tenham inveja do terapeuta e da criança, ou, alternadamente, para evitar tais sentimentos penosos, assim como para evitar a conduta obstrutiva insidiosa que pode deles resultar, os pais se retraem, saindo do campo de influências de um relacionamento vivo com a criança, simplesmente entregando-a a um profissional com mais conhecimento e prática” (1979, p. 173). Mais uma vez fica evidenciada a importância em se considerar a participação do ambiente em qualquer tratamento psicanalítico, tanto por seus fatores benéficos quanto pelos impeditivos. A inclusão da participação das falhas ambientais que foram significativas para o paciente nos remete ao surgimento de acontecimentos reveladores dessas falhas e que podem surgir por meio de expressões do verdadeiro self tanto do terapeuta quanto do paciente. Nesse âmbito, incluiria o que denominamos segundo uma visão winnicottiana “o gesto espontâneo” e a denominação que estou utilizando nesse artigo de “interpretação criativa”. Ao usar a expressão “não admito isso em um homem”, aspectos fundamentais do desenvolvimento psíquico do paciente puderam ser trazidos à revelação incluindo falhas de seu próprio ambiente. Ao dizer ao seu paciente “sou eu que estou louco”, Winnicott pôde trazer à tona aspectos essenciais do ambiente do paciente, decisivos para os processos integrativos necessários à finalização de sua análise. Rodman, na introdução do livro “O gesto espontâneo” (1990), compilação de inúmeras cartas escritas por D. W. Winnicott, ao abordar o tema aqui proposto, escreve: “Os que dizem que Winnicott colocou o valor terapêutico da relação com o analista acima do processo interpretativo compreendem mal e trivializam seu parecer, bem mais complexo. Seu trabalho sobrevive e continua sendo fecundamente citado em trabalhos sobre técnica precisamente porque seus textos, de aplicação ampla, não se conformam a tal classificação. Ele permaneceu firme como leitor do inconsciente e acreditando nas interpretações precisas, feitas no momento certo, como sendo o principal instrumento de mudança. Foi apenas no tratamento de pacientes profundamente perturbados que julgou ser indispensável uma fase de manejo (management). Tais pacientes, ao regressar ao ponto em que haviam falhado na primeira infância, exigiam um ambiente de apoio como um corretivo de onde poderia ser retomado o desenvolvimento. Uma versão da psicanálise como bondade profissionalizada, a psicanálise reduzida à empatia, ou a um longo processo cujo desfecho é a confirmação de que a vida do paciente foi realmente arruinada pelos pais, era algo inteiramente estranho a Winnicott. Ele disse que a “psicose é uma doença de carência”, mas sabia que chegar ao ponto de carência exigia um longo período de interpretação psicanalítica” (Rodman, 1990, pp. XXIX e XXX). E ao final da introdução de “O gesto espontâneo” (1990) Rodman conclui: “Ele procurava proteger ações delicadas, transitórias, do peso esmagador da classificação formal. Ele queria engendrar em outros o gosto pela ação experimental, a qual era, a seu ver, pensamento inspirado manifesto na segurança de uma relação. Ele trabalha, portanto, pela criação de condições que encorajariam a disposição de pacientes, analistas e cidadãos comuns a produzir contribuições únicas, a arriscar o gesto espontâneo. Ele celebrou o emergir do mundo interno em formas que outros pudessem contemplar. Ao dar ao conceito de associação livre de Freud uma definição ampla e harmonizada, ele promoveu o espírito psicanalítico a novas estruturas de relevância” (Rodman, 1990, pp. XXX e XXXI). Gostaria de concluir este artigo referendando a importância dos vários e diferentes “gestos espontâneos” e “interpretações criativas” invariavelmente presentes no dia-a-dia de nosso trabalho clínico. O aprendizado resultante, quer dos nossos acertos, quer dos nossos erros, poderá trazer contribuições valiosas nesse complexo caminho do gradativo aumento do conhecimento da natureza humana.

Referências

Abram, J. (2000) A Linguagem de winnicott. (M. da Silva, trad.) Rio de Janeiro, RJ: Revinter.

 Laplanche, J & Pontalis J.B. (1983) Vocabulário de psicanálise. (P. Tamen, trad.) São Paulo, SP: Martins Fontes.

Little, M. (1992) Ansiedades psicóticas e prevenção. (M. Fernandes, trad.) Rio de Janeiro, RJ: Imago.

Outeiral, J., Hisada, S., Gabriades, R. (Orgs.) (2001) Winnicott seminários paulistas. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.

Rodman, R. (1990) O gesto espontâneo – cartas selecionadas de D. W. Winnicott. (L. Borges, trad.) São Paulo, SP: Martins Fontes.

Winnicott, D. W. (1968) A interpretação na psicanálise. In Winnicott, C., Shepherd, R., Davis, M. (orgs., 1994). Explorações psicanalíticas D. W. Winnicott. (pp.163-166) (J. Aguiar Abreu, trad.) Porto Alegre, RS: Artes Médicas.

Winnicott, D. W. (1975) O brincar e a realidade. (J. Aguiar Abreu e V. Nobre, trad.) Rio de Janeiro, RJ: Imago.

Winnicott, D. W. (1978) O ódio na contratransferência. In: Da pediatria à psicanálise. (J. Russo, trad.) Rio de Janeiro, RJ: Francisco Alves (Original de 1947).

Winnicott, D. W. (1979) The piggle relato do tratamento psicanalítico de uma menina. (E. Vieira & R. Martins, trads.) Rio de Janeiro, RJ: Imago. Winnicott, D. W. (1991). Holding e interpretação.

O analista no campo analisante: dos impasses às transformações possíveis.

https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/15302/1/Gina%20Tamburrino.pdf

Grupo de estudos: Indicadores de intersubjetividade

Carla Braz Metzner

https://www.entrelacer.com.br/event-details/grupo-de-estudos-indicadores-de-intersubjetividade-com-carla-braz

Indicadores de intersubjetividade: Do encontro de olhares ao prazer de brincar juntos – Victor Guerra | Com a psicóloga e psicanalista pelo Sedes Sapientiae, Membro do Dpto de psicanalise do Sedes Sapientiae. Mestranda da PUC de São Paulo, Carla Braz Metzner.

https://www.entrelacer.com.br/agenda

Captando algo humano

http://revistapercurso.uol.com.br/index.php?apg=artigo_view&ida=1108&ori=edicao&id_edicao=52

LEITURA

Rêverie e interpretação: captando algo humano [Rêverie e Interpretação]

Rêverie and interpretation: capturing something human

Gina Tamburrino
Marina F. R. Ribeiro Ribeiro

Rêverie e interpretação. Captando algo humano é um dos primeiros lançamentos da coleção Kultur da Editora Escuta. A coleção tem como principal objetivo a apresentação de temas que refletem sobre a “natureza e a cultura humana”. Não se trata de uma coleção versada apenas em autores psicanalíticos. Entretanto, é Thomas Ogden, um psicanalista norte-americano, o primeiro autor convidado a apresentar seu pensamento.

Rêverie e interpretação apresenta o conceito de rêverie com a profundidade esperada pelos clínicos da atualidade. É um livro que trata o tema de forma clara, sincera e sensível. É um verdadeiro presente para o clínico da atualidade.

Ogden prima por uma escrita lapidada; se autodenomina um “escritor analítico”, e faz jus a esta designação. O texto é claro, vivo, interessante, bem cuidado. Os capítulos do livro têm como origem artigos publicados na década de 1990. Há um prefácio para a edição portuguesa, de outubro de 2013, do qual destacamos três pontos. O primeiro é a liberdade de pensamento a partir da qual o autor se expressa: “Um tema que trespassa subliminarmente pelo livro é a ideia de que precisamos criar a psicanálise para cada paciente” (p. 15). Uma psicanálise viva é criada a cada sessão, com cada paciente. O setting é a moldura que permite o enquadre para dupla analítica criar. O segundo ponto é o desapego a dogmas: “Ao ler os artigos neste volume, artigos que escrevi há mais de quinze anos, espanta-me que, em sentido relevante, compreendia então um bocado de coisas que hoje luto para compreender”. O terceiro aspecto, importantíssimo, é quando ele escreve: “o papel indispensável dos ‘fracassos’ do analista em se concentrar naquilo que o paciente está dizendo (porque tais ‘fracassos’ constituem o lugar de nascimento da rêverie)”. Ou seja, onde o analista se percebe fracassando, aí está o nascimento da rêverie. Ideia que Ogden desenvolve no capítulo seis que honrosamente leva o nome do livro, rêverie e interpretação, e que constitui o capolavoro do texto.

O primeiro capítulo, Sobre a arte da psicanálise, é uma visão atual de como Ogden pensa o trabalho analítico. Assemelha-se e complementa o capítulo dois (Do que eu não abria mão) de outro livro do autor também publicado no Brasil: Esta arte da psicanálise. Sonhando sonhos não sonhados e gritos interrompidos (Artmed, 2010). Ambos os capítulos apresentam uma visão humanista da psicanálise e da vida: “[…] creio que a tarefa analítica envolva mais profundamente o esforço do par analítico para ajudar o analisando a se tornar humano em um sentido mais amplo do que o que ele conseguiu até o momento” (p. 30). E, mais à frente, Ogden também desilude o leitor: “a incapacidade de ser plenamente humano é um aspecto do ‘destino de toda a humanidade'” (p. 32). E loca a análise aí: “é nesse esforço de sermos plenamente humanos que estamos vivos enquanto analista e analisando; é nesse experimento que vive a arte da psicanálise” (p. 34).

O autor abre o primeiro capítulo do livro com uma frase interessantíssima: “A palavras e frase, bem como a pessoas, deve-se facultar certa imprecisão” (p. 21), “pois estão em constante movimento” (p. 23). “A imaginação”, afirma ele, “depende de um jogo de possibilidades” (p. 21). Aquilo que é vivo é fluido e impreciso; a experiência analítica é dessa ordem, um desapego difícil de significados fixos; ao texto psicanalítico criativo também se deve facultar certa imprecisão.

É de grande beleza a aproximação que Ogden faz, também no capítulo um, da experiência humana de encontro entre o escritor analítico e o leitor e o analista e o analisando. O escritor analítico “deve” ser capaz de criar uma linguagem da experiência de vitalidade e/ou desvitalização humanas para si e para o leitor. Falar sobre vitalidade e desvitalização humanas não leva “ao aprender da experiência” (Bion, 1962) humana. É preciso criar sentido para poder transmiti-lo. E isto apenas se torna possível diante de uma fala dramática que comporta intimidade e pessoalidade. Ambos, escritor e leitor, precisam ter uma experiência de estar vivo e presente. “Para estar vivo e presente na própria linguagem, para ter ‘o próprio tom de voz da fala um pouco… emaranhado nas palavras’, a pessoa que fala pede que um aspecto seu seja reconhecido pelo ‘ouvido da imaginação’ (do ouvinte)” (p. 29).

Ogden, assim como Winnicott (um dos autores que o inspira, além de Bion, entre outros), consegue expressar o complexo com frases aparentemente simples. Não nos enganemos, Ogden escreve sobre a complexidade da interação humana, especificamente a analítica, de forma sofisticadamente simples, o que faz dele um dos destacados autores da psicanálise contemporânea.

Os capítulos dois e três são eminentemente clínicos, nos quais a bússola de Ogden é a análise de formas de vitalidade e desvitalização no processo analítico. A presença do conceito do terceiro analítico norteia o pensamento clínico do autor: “[…] compreendo o terceiro analítico intersubjetivo como um sujeito criado pela interpretação inconsciente analista e analisando” (p. 42). O autor trabalha com a concepção de Winnicott sobre “o lugar em que vivemos” (uma terceira área da experiência entre realidade e fantasia), e com a ideia de Bion de que o analista mantém vivos e traz à vida aspectos do paciente, através de uma continência bem-sucedida. Ogden dá especial relevo à espontaneidade do analista que o salva de uma neutralidade caricaturesca. A contratransferêcia é compreendida dentro da unidade transferência-contratransferência e “refere-se a uma construção inconsciente intersubjetiva” (p. 39). Há uma importante preocupação com as formas de manejo e com a técnica analítica para lidar com os sentimentos de vitalidade e desvitalização que emergem na experiência analítica.

O terceiro capítulo apresenta a análise da perversão através da “análise da transferência-contratransferência perversa tal como se desenrola na relação analítica” (p. 71). É uma visão ímpar o modo como Ogden dá a ver de que maneira “a cena analítica perversa e o sujeito perverso da análise são construídos […] pela dupla analítica com o objetivo de evitar [a dolorosa] experiência de morte psíquica […]” (p. 73). No caso clínico trazido pelo autor, vemos uma interessante discussão clínica sobre um caso de perversão e o uso da técnica: “Um elemento da técnica que se reflete na análise descrita é o uso que o analista faz de seus pensamentos, sentimentos, sensações, fantasias, devaneios, ruminações e outros, mundanos, reservados e cotidianos, no processo de tentar entender a rede de significados intersubjetivamente gerados que constituem a transferência-contratransferência” (p. 95). O que é um grande desafio em um caso de perversão que implica uma erotização defensiva, além de encenações (enactments) sexualizadas.

No capítulo quatro – Privacidade, rêverie e técnica analítica – Ogden retoma o papel do uso do divã enquanto dispositivo do processo analítico; o analista fora do campo visual do analisando possibilita “estados sobrepostos de rêverie”. O divã favorece a privacidade da dupla para entrar em contato com seus estados de rêverie; mas isso não significa que o analista deve “insistir (de forma explícita ou implícita) que todo paciente de análise use sempre o divã”. Discute a relação entre o número de sessões semanais com o uso do divã: deveria o analista usar o divã quando o número de sessões é menor do que a ideal? Nesse capítulo o autor também renuncia à regra fundamental da análise de que o paciente deve dizer tudo o que lhe vier à mente. Aborda o fato de que a “técnica deve facilitar o processo” (p. 114), e que tanto o paciente como o analista devem ter a liberdade de falar e de silenciar. Tanto a comunicação quanto a privacidade devem ser consideradas para preservar a vitalidade do processo analítico. Ogden apoia-se na concepção de Winnicott de que no âmago de todos nós há um elemento sagrado, isolado e não comunicável.

No capítulo cinco, o autor discute as associações de sonhos no contexto da sessão como um evento intersubjetivo, aliás, como tudo na sessão. Considerando sempre a intersubjetividade do terceiro analítico: […] “Visto que as associações do analista com a experiência do sonho são extraídas da experiência do sonho no e do terceiro analítico, elas não são menos importantes, enquanto fonte de significado analítico em relação ao sonho, do que as associações do paciente” (p. 131). Entretanto, reconhecer o terceiro analítico intersubjetivo e tecer elaborações a partir dele não é tarefa fácil, o analista precisa dar tempo para que o paciente “responda ao seu próprio sonho, pois isso pode dar margem a uma forma de encenação transferencial-contratransferencial (enactment) em que o analista se serve dos sonhos do analisando e lhe oferece uma invenção narcisista” (p. 139). A experiência de sonhar é uma “experiência humana que não pode ser traduzida em uma narrativa linear, verbal, simbólica, sem perder a sintonia com o efeito criado pela própria experiência de sonhar…”; essa experiência se opõe ao significado do sonho, e, portanto, à sua compreensão (p. 139). Ao final do capítulo, retoma que a técnica analítica deve “servir ao processo analítico”, e não engessar o analista em dogmas desvitalizantes para o processo, ou seja, a técnica deve favorecer o processo e não emperrá-lo!

Consideramos que o capolavoro do livro é o capítulo seis, pois traz uma lapidada descrição de rêverie: “[…] Trata-se de uma experiência primorosamente privada que envolve os mais constrangedores aspectos cotidianos (e ainda assim tão importantes) de nossas vidas. Os pensamentos e sentimentos que a constituem são raramente discutidos com nossos colegas” (p. 146). E, mais à frente: “Paradoxalmente, apesar de o analista sentir suas rêveries como privadas e pessoais, é enganoso vê-las como ‘suas’ criações próprias, já que são, ao mesmo tempo, construções intersubjetivas inconscientes criadas em conjunto (embora assimetricamente), que chamei de ‘o terceiro analítico intersubjetivo'” (p. 147).

Ogden considera que o analista precisa tolerar “a experiência de estar à deriva” (p. 148), de ser levado pelas correntes inconscientes presentes na sala de análise. Entende que o movimento analítico é mais um estado de “deslizando em direção a” do que “chegando a” (p. 148).

A rêverie gera um desequilíbrio emocional no analista. “Os distúrbios emocionais associados com a rêverie geralmente são sentidos pelo analista como produto da interferência de suas preocupações do momento, de excessiva autoabsorção narcísica, imaturidade, inexperiência, fadiga, treino inadequado, conflitos emocionais não resolvidos, etc. A dificuldade de usar as rêveries no exercício da análise é facilmente compreendida, uma vez que tal experiência é tão próxima, tão imediata, que é difícil de ser vista: ela é, nas palavras de Frost (1942), ‘presente demais para se imaginar'” (p. 150).

A experiência de rêverie é sempre um elemento desorganizador para o analista, que ele tende a descartar, a se envergonhar, a considerar uma inabilidade, uma falha técnica. E, ao mesmo tempo, é a bússola emocional do analista, se ele tiver a condição e a liberdade psíquica de considerá-la; não é uma tarefa fácil. “Não há como ‘pular fora’ dos problemas ao se fazer o esforço de utilizar analiticamente a rêverie” (p. 150).

Após a apresentação de um interessantíssimo caso clínico, o autor concebe “o processo analítico envolvendo a criação de novos eventos intersubjetivos inconscientes que nunca antes existiram na vida afetiva, seja do analista seja do analisando” (p. 174). Ogden evidencia, em sua apresentação clínica, como suas rêveries e os sonhos da paciente “são criados no ‘mesmo espaço onírico analítico intersubjetivo'” (p. 175). A análise é um processo transformador tanto para o analista quanto para o paciente, ou seja, o analista está completamente implicado no processo, sempre considerando a assimetria da dupla. Lembramo-nos da metáfora de Bion sobre o processo analítico: o analista está no campo de batalha; assim como o analisando, pode matar ou morrer, mas tem a responsabilidade de o comando, no caso da análise, manter-se pensante.

Ogden termina o capítulo escrevendo que considera o uso das rêveries no trabalho analítico como um componente fundamental da técnica analítica. As rêveries nascem “da complexidade infinita do interjogo da vida inconsciente do analisando e do analista e das sempre mutantes construções inconscientes geradas pela ‘sobreposição’ dos dois” (p. 180).

No capítulo sete, Ogden discorre sobre o uso da linguagem em psicanálise, tanto a linguagem na sala de análise como a linguagem escrita. “O experimento de escrever, ler e escutar […] tem muito em comun com o experimento de pensar, sentir e comunicar que está no cerne da experiência analítica” (p. 186). A linguagem que comunica a experiência inconsciente precisaria ser insaturada nos termos de Bion, ou seja, quando uma linguagem sempre aberta a novos significados se fixa em um sentido, esse é provisório. Essa é a linguagem viva, sempre aberta a novos sentidos: “é essencial que o analista use linguagem que aspire a uma forma específica de imprecisão evocativa, às vezes enlouquecedora, quase sempre perturbadora” (p. 196). De forma delicada, Ogden aproxima o leitor da riqueza que existe em compreender menos e experimentar mais a/na experiência analítica: como é escutar esse paciente? como é estar com esse paciente? Não se trata de compreensão, mas de um processo de não “saber demais” (Winnicott, 1971). Ou, trata-se da prática da “arte de nãochegar (ao significado exato)” (Poirier, 1992).

O capítulo oito é um interessante exercício analítico literário; Ogden inicia o texto assim: “[…] Acrescentaria que a poesia é um grande disciplinador para a escuta analítica” (p. 211). Analisa três poemas de Frost e, ao final, escreve: “o poema não é sobre uma experiência; a vida do poema é a experiência” (p. 236). Diríamos que a vida, a vitalidade de uma sessão é a experiência transformadora que pode ocorrer através da e para a dupla analítica, mas para que isso ocorra precisamos estar à deriva das emoções inconscientes que circulam na sala de análise.

Ler Ogden é uma experiência transformadora, para aqueles que ousam se destituir da ilusão do conhecimento, e ficar à deriva.

A palavras e frases, bem como a pessoas, deve-se facultar certa imprecisão.

Boa leitura!

O Psicólogo e a Medicação Psiquiátrica: Informações necessárias para acompanhar seu paciente

Objetivo: Introdução aos conceitos básicos da psicofarmacologia abordando os psicofármacos mais comumente usados em psiquiatria para atualização de psicólogos e psicoterapeutas que trabalham com clínica.

https://institutogerar.com.br/cursos/o-psicologo-e-a-medicacao-psiquiatrica/

Data mudada para 27/11/2020

Instituto gerar de psicanalise

O poeta da psicanálise: Victor Guerra.

Extravio

Ferreira Gular

“Onde começo, onde acabo,

se o que está fora está dentro

como num círculo

cuja periferia é o centro?

Estou disperso nas coisas,

nas pessoas, nas gavetas:

de repente encontro ali partes de mim:

risos, vértebras.

Estou desfeito nas nuvens:

vejo do alto a cidade

e em cada esquina um menino,

que sou eu mesmo, a chamar-me.

Extraviei-me no tempo.

Onde estarão meus pedaços?

Muito se foi com os amigos

que já não ouvem nem falam.

Estou disperso nos vivos,

em seu corpo, em seu olfato,

onde durmo feito aroma

ou voz que também não fala.

Ah, ser somente o presente:

esta manhã, esta sala”

Eu escolhi o poema extravio de Ferreira Gullar para homenagear hoje o psicanalista Víctor Guerra . O poeta Ferreira Gullar era um dos seus amigos imaginários como Víctor gostava de dizer !!!
A sua ausência/presença se faz sentir desde 27/6/2017
E Víctor nos deixa a sua poética teoria para continuar ecoando em nossa clínica.

https://www.psynem.org/Perinatalite/Personnes_pratiques_lieux/Victor_Guerra_Rythme_intersubjectivite_bebe

Que jogo é esse?

“Ao pensar sobre a possibilidade do casamento cada um deveria se fazer a seguinte pergunta: “Você crê que seria capaz de conversar com prazer com esta pessoa até a sua velhice?”. Tudo o mais no casamento é transitório, mas as relações que desafiam o tempo são aquelas construídas sobre a arte de conversar.” Rubem Braga

Está difícil essa quarentena. Para quem está em casa, para quem está doente, para os idosos com medo, para as crianças sem escola. Para quem não está doente, para os que se alienam numa casa na praia da Baleia com três babás- sim, alienar-se traz um custo também. O mundo não vai parar de bater na nossa porta mesmo que ela não seja ela um barracão de zinco sem janela e sem trinco. Uma gaiola de ouro ainda é gaiola, e todo ensimesmamento cobra um preço, empobrece a alma, endurece o coração. Os otimistas esperam e os desesperados tem seus temores confirmados; para eles o mundo não será como antes, agora o medo tem nome .

Mas este recado aqui vai para os casais. Àqueles que estão se fazendo companhia neste momento particular, fora do combinado, não estando de férias, nem em recesso, não sabendo quando vai terminar. Aos que se encontram sob a luz fria da solidão à dois.

Gostaríamos de dizer algumas coisas. O amor é coisa difícil. Amor começa tarde e felicidade não é obrigação. E, como dizia o meu dentista Carlão lá de Guaxupé, casamento é coisa de profissional, não é para amador, não. Para Winnicott, ter concernimento, cuidar de um outro, reconhecer mesmo o outro, é processo de amadurecimento e nunca termina de acontecer na nossa vida. A vida toda, nos relacionamos com o outro e com a idéia que fazemos dele, negamos e aceitamos a sua alteridade, focando e desfocando a sua imagem conforme a nossa cegueira particular. É possível enxergar o outro, ou mesmo a nós mesmos? Quanto dói perder a ilusão… pode-se viver sem ilusões?

Talvez essas perguntas não tenham mesmo resposta ou morem na filosofia. Amor rima com dor – diz o poeta. Mas sempre podemos conversar. A arte de conversar, que pode ser aprendida, que a psicanálise preza, é metaforizada por Rubem Braga como um jogo de frescobol. Rubem Braga, capixaba, grande cronista, sensível artista. Vejamos o que ele diz:

“Depois de muito meditar sobre o assunto concluí que os casamentos são de dois tipos: há os casamentos do tipo tênis e há os casamentos do tipo frescobol. Os casamentos do tipo tênis são uma fonte de raiva e ressentimentos e terminam sempre mal. Os casamentos do tipo frescobol são uma fonte de alegria e têm a chance de ter vida longa. Explico-me. Para começar, uma afirmação de Nietzsche, com a qual concordo inteiramente. Dizia ele:

Xerazade sabia disso. Sabia que os casamentos baseados nos prazeres da cama são sempre decapitados pela manhã, terminam em separação, pois os prazeres do sexo se esgotam rapidamente, terminam na morte, como no filme O império dos sentidos. Por isso, quando o sexo já estava morto na cama, e o amor não mais se podia dizer através dele, ela o ressuscitava pela magia da palavra: começava uma longa conversa, conversa sem fim, que deveria durar mil e uma noites. O sultão se calava e escutava as suas palavras como se fossem música. A música dos sons ou da palavra – é a sexualidade sob a forma da eternidade: é o amor que ressuscita sempre, depois de morrer. Há os carinhos que se fazem com o corpo e há os carinhos que se fazem com as palavras. E contrariamente ao que pensam os amantes inexperientes, fazer carinho com as palavras não é ficar repetindo o tempo todo: “Eu te amo, eu te amo…”. Barthes advertia: “Passada a primeira confissão, ‘eu te amo’ não quer dizer mais nada”. É na conversa que o nosso verdadeiro corpo se mostra, não em sua nudez anatômica, mas em sua nudez poética. Recordo a sabedoria de Adélia Prado: “Erótica é a alma”.

O tênis é um jogo feroz. O seu objetivo é derrotar o adversário. E a sua derrota se revela no seu erro: o outro foi incapaz de devolver a bola. Joga-se tênis para fazer o outro errar. O bom jogador é aquele que tem a exata noção do ponto fraco do seu adversário, e é justamente para aí que ele vai dirigir a sua cortada – palavra muito sugestiva, que indica o seu objetivo sádico, que é o de cortar, interromper, derrotar. O prazer do tênis se encontra, portanto, justamente no momento em que o jogo não pode mais continuar porque o adversário foi colocado fora de jogo. Termina sempre com a alegria de um e a tristeza de outro. O frescobol se parece muito com o tênis: dois jogadores, duas raquetes e uma bola. Só que, para o jogo ser bom, é preciso que nenhum dos dois perca. Se a bola veio meio torta, a gente sabe que não foi de propósito e faz o maior esforço do mundo para devolvê-la gostosa, no lugar certo, para que o outro possa pegá-la. Não existe adversário porque não há ninguém a ser derrotado. Aqui ou os dois ganham ou ninguém ganha. E ninguém fica feliz quando o outro erra – pois o que se deseja é que ninguém erre. O erro de um, no frescobol, é como ejaculação precoce: um acidente lamentável que não deveria ter acontecido, pois o gostoso mesmo é aquele ir e vir, ir e vir, ir e vir… E o que errou pede desculpas, e o que provocou o erro se sente culpado. Mas não tem importância: começa-se de novo este delicioso jogo em que ninguém marca pontos…

A bola: são as nossas fantasias, irrealidades, sonhos sob a forma de palavras. Conversar é ficar batendo sonho pra lá, sonho pra cá…”

Esta metáfora do jogo de frescobol é útil para pensar também a psicanálise, na sua vertente intersubjetiva. Muita gente boa na psicanálise vem falando sobre este frescobol que acontece numa sessão, a possibilidade de brincar de verdade com os sentidos que envolvem as palavras que dizemos. Reconhecer que entre dois existe sempre um terceiro : o entre-dois, aquele que criamos juntos, na relação. Somos nós e os nós que se formam nesse laço que tecemos a dois.

A experiência do frescobol, numa análise ou numa conversa boa, é proveitosa e inesquecível. Pode ser rara no casamento, que (penso diferente do Rubem Braga) tende a ter seus momentos de frescobol entremeados entre as ferozes cortadas do tênis jogado a dois, em diferentes medidas conforme o momento e a constituição de cada casal. Criar e destruir o outro faz parte da experiência.

Tênis é assim: recebe-se o sonho do outro para destruí-lo, arrebentá-lo, como bolha de sabão… O que se busca é ter razão e o que se ganha é o distanciamento. Aqui, quem ganha sempre perde.

Já no frescobol é diferente: o sonho do outro é um brinquedo que deve ser preservado, pois se sabe que, se é sonho, é coisa delicada, do coração. O bom ouvinte é aquele que, ao falar, abre espaços para que as bolhas de sabão do outro voem livres. Bola vai, bola vem – cresce o amor… Ninguém ganha para que os dois ganhem. E se deseja então que o outro viva sempre, eternamente, para que o jogo nunca tenha fim…

Parece que na quarentena precisamos mais do que alcool gel e máscaras, precisamos do cuidado com as nossas relações, e jogar frescobol com o sol na cara, na areia quente. Paciência. Tolerância. Se a bola vier meio torta, pense um segundo: que jogo é esse?