A difícil arte da intimidade

E, no entanto, constroem-se pontes.

Antoine de Saint-Exupéry

( atenção: este relato contém spoilers– O filme DAY AFTER I`M GONE pode ser visto em https://mubi.com/pt/films/the-day-after-i-m-gone)

O filme israelense Day After I’m Gone ( O dia seguinte à minha partida) apresenta de forma dramática e intensa a tensão que pode estar presente entre um pai e uma filha que apresentam muitas dificuldades de comunicação.  Habitando o mesmo espaço físico, existe um abismo entre eles e uma impossibilidade de se construir uma ponte que possa criar um caminho de encontro.

O abismo entre eles nos é apresentado logo no início do filme. Yoram, que é veterinário, diz à sua colega de trabalho que se descobre que o filho entrou na adolescência quando se passa a odiá-lo. Após formular essa frase chocante e de impacto, conta do desaparecimento de sua filha adolescente há dois dias.  A amiga lhe interroga onde ela poderia estar e se a polícia ainda não foi acionada, provavelmente pensando que a garota poderia estar em apuros ou sofrido violência. Ele, apesar de preocupado e aflito, nega tal fato dizendo que ela já vai voltar, que é “coisa de adolescente”. Percebemos então que o pai também não está podendo acessar os próprios sentimentos de preocupação com a filha. Voltando para casa, porém, já sensibilizado pela conversa com a amiga, decide ir à delegacia. É repreendido pela delegada pela demora em comunicar o desaparecimento. A delegada lhe diz que a filha é criança, e ele não concorda, pois considera a filha responsável pelos próprios atos. A policial retruca que, por lei, por ter apenas 16 anos, ela ainda é uma criança. Para obter dados sobre a filha e poder iniciar uma busca começa a lhe fazer perguntas:  se tem a senha do celular da filha, se ela tem facebook ou instagram, etc. Ele não tem nenhuma dessas informações- o que já vai revelando a distância e o desconhecimento da vida e do cotidiano da filha.

 A questão da intimidade e de quem é o outro sempre foi um ponto que muito me intrigou e afligiu. Esse tema é intensamente tratado no livro de Josephine Hart “ Perdas e Danos”, que foi transformado em filme por Louis Malle ( 1992), baseado num caso verídico que aconteceu na Inglaterra :  um ministro da Alta Corte se envolve com a namorada do filho, que quando os flagra num encontro se joga pela janela. Enquanto o pai vai vive esse tórrido e proibido romance se pergunta como isso é possível:  como pode ele estar ali,  deitado ao lado de sua mulher, com quem é casado há tantos anos, como se nada estivesse acontecendo. E como é possível que a esposa sequer desconfie de qualquer coisa  enquanto ele vive essa paixão avassaladora e louca. Essa é uma situação que o angustia muito- essa situação de divisão e ambiguidade convivendo dentro de si, sem que o outro ao seu lado tenha sequer ideia.

Sempre me perguntei quem de fato é o outro–  o que sabemos das pessoas que convivem ao nosso lado. Essa é uma situação muito comum nos nossos dias, principalmente com filhos adolescentes:  por mais que os controlemos, o que sabemos de sua intimidade, de quem são eles?

Este pai, voltando para casa depois do desconcertante diálogo com a policial, permanece sentado, imóvel no sofá, olhando para o nada. Preocupado? Com raiva? Totalmente imóvel e com o olhar perdido. De repente a adolescente Roni abre a porta, entra, cumprimenta-o friamente e vai para seu quarto como se nada tivesse acontecido. Ele pergunta onde estava e ela responde um lacônico “por aí”.

Na noite seguinte o mesmo ritual frio e distante se repete : Roni chega, dá um “oi” e se dirige ao seu quarto. Na madrugada, enquanto dorme, Yoram  é acordado com batidas à sua porta – investigadores da polícia chegam dizendo que foi  identificado nas redes sociais uma comunicação dela de que iria se suicidar. Ele reage violentamente achando isso um absurdo, uma invasão, mas a polícia força a entrada e de fato a filha já estava desacordada após ter ingerido remédios para se matar. A moça é levada para o hospital.

Atordoado com tudo isso, no hospital , é abordado por um judeu ortodoxo que reza pela filha e lhe entrega um livro de rezas,  lhe dizendo que reze também por sua recuperação.

Depois do ocorrido retornam à casa e o mesmo clima de distância permanece sem que ele consiga se aproximar da moça, sem que possam conversar sobre o que aconteceu. O silêncio entre eles permanece inalterado, tenso. No decorrer do filme somos informados de sua esposa morreu recentemente, e de que antes deste fato , os três eram muito próximos e unidos.

Ele, sem saber de fato o que fazer, como se aproximar, conversar e acolher a filha, decide ir visitar a família da esposa que mora ao sul de Israel. Comunica-lhe sua decisão, a qual ela acha muito estranha porque parece que não tinha um bom relacionamento com a mesma. Partem em viagem no mesmo silêncio por todo longo trajeto, fluxo represado, denso e tenso.

Ao chegarem, encontram a família da mãe com todas as suas esquisitices. Vamos nos dando conta porém que esse foi um gesto desesperado , um pedido de socorro de um pai paralisado e impotente diante da impossibilidade de um gesto espontâneo em relação à dor e ao sofrimento da filha. Roni havia lhe pedido que não lhes contasse nada de sua tentativa de suicídio, mas ele o faz numa conversa particular com sua cunhada. Esta lhe pergunta se a moça queria de fato se matar e ele responde que não, que queria apenas lhe mandar uma mensagem, chamar sua atenção. E ele diz  que não faz ideia do que ela realmente  queria lhe comunicar. 

Diz Winnicott que quando a criança descobre que pode se esconder, que tem essa possibilidade, isso lhe dá a descoberta de um poder… mas se ao mesmo tempo  é uma glória poder se esconder, é uma tragédia não ser encontrado!  De certa forma a moça, neste filme,  não era encontrada pelo pai, que a via mas não a percebia, não a sentia:  ela lhe era uma estranha. Em seu trabalho sobre a tendência antissocial Winnicott diz que quando a criança ou adolescente apresentam comportamentos de agressividade, mentiras, roubos, rebeldia, estes comportamentos antissociais estão expressando um sentimento de que algo bom foi perdido por uma falha que é atribuída ao ambiente. Sabendo que a falha é do ambiente, estão vivendo uma deprivação afetiva e desejam resgatar o que tinham de bom e perderam. Endereçam então ao próprio ambiente esse protesto que ao mesmo tempo é um pedido de ajuda.  O momento do comportamento antissocial é justamente um momento de esperança: identificaram  em seu entorno algum sinal que lhes deu a esperança, ou a ilusão,  de que a falha pode ser  reconhecida de modo a se restabelecer a situação anterior.

A tia, ao se inteirar do fato, imediatamente diz que tem sim que contar à família, que seria absurdo não contar, que isso é muito sério – e a partir daí assume a administração da situação. Reúnem a família inteira em uma “roda de conversa”, chamam a menina para lhe dizer, cada um à seu modo, que reconhecem a dor da sua perda, da terrível vivência da doença e morte da mãe. Falam inclusive da própria dor relativa a esta morte, reiterando que Roni é membro da família e muito querida por todos ali. Cada um fala de seus sentimentos por ela, da importância que tem, reconstruindo sua história desde o nascimento, rememorando momentos significativos de sua vida.

Ao partirem, ela está, obviamente, furiosa com o pai por ter violado o seu segredo. Pede à ele para voltar dirigindo o carro, pedido que já havia feito na ida mas ele não permitiu – e eis que dessa vez ela vem dirigindo no caminho de volta. O mesmo silêncio se mantém entre eles, apenas um pouco mais leve. No caminho, passam pelo túmulo da mãe e a filha chora: a situação do luto extremamente dolorosa já não é negada. Chegam em casa e num primeiro momento não parece haver qualquer mudança no relacionamento entre eles… Roni vai para seu quarto enquanto Yoram fica na varanda.

Porém, quando a moça vai à cozinha pegar um copo de água , logo em seguida, encontra o livro de rezas que o pai trouxera do hospital.  Olha, acha estranho e pergunta a ele o que é aquilo, ao que ele lhe responde: Rezei por você enquanto você estava no hospital… Ela sorri …e vem sentar no sofá da sala, ligando a televisão.

Através desse simples gesto a filha consegue se dar conta do amor do pai, da sua importância para ele, sua angústia e sofrimento com o que poderia ter lhe acontecido. Sendo o pai não religioso, ter rezado por ela e ter trazido o livro para casa era muito significativo, e assim finalmente ela conseguiu ser encontrada.

As vezes é muito difícil lidar com os adolescentes e saber exatamente qual seria a conduta mais acertada, e a medida adequada do limite. Apesar do seu pedido de não contar nada à família da mãe e da fúria pelo pai não ter atendido a este pedido, foi de extrema importância a família ter se encarregado do seu desespero e do sofrimento de Roni. A ação da família foi reconhecer e nomear sua angústia e sua perda, acolhendo esses dois seres atolados em si mesmos, sem conseguir compartilhar o sofrimento, por não poder elaborar o luto da mãe/esposa que funcionava como a ponte e o elo de comunicação da família.

Também foi um processo muito importante a possibilidade do pai  ter a humildade de reconhecer sua total impotência para lidar com a situação, se aproximar da filha e compreender o que se passava com ela.

O momento atual da humanidade é um momento de luto coletivo, onde estamos tendo que lidar com muitas perdas ao mesmo tempo, desde a morte física de pessoas próximas e queridas, como a nossa vida roubada- um momento em que como um todo estamos sofrendo uma deprivação. As crianças perderam os amigos, a escola. Os professores, suas atividades regulares, sua rotina, assim como adultos e adolescentes. A ideia da morte paira no ar como uma possibilidade real e concreta. Roubaram-nos a possibilidade de fazer planos e com isso os sonhos, os projetos…Estamos à deriva…. cada um de nós tendo que encontrar em sua história e circunstância a esperança de um porto onde atracar com segurança permanecer em espera. As relações de amor que cultivamos, agora, são o nosso porto seguro.


Aponte
Ê, a nuvem vai fazer chover
Lavar a terra maltratada
Sem teu amor, não sobra nada
A gota d’água pra viver
Tão seco assim não brota nada
És minha santa, és minha amada
Fui te encontrar pra me perder
Aponte que eu não enxergo quase nada
Nem assovio, nem um pio
Pode vir raio ou trovoada
Eu não arredo desse rio
Aponte onde dá o norte
Aponte onde leva o rio



Composição: Lan Lan / Nanda Costa / Sambê

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O filme DAY AFTER I`M GONE pode ser visto em https://mubi.com/pt/films/the-day-after-i-m-gone

Os adolescentes estão se cortando

O índice de automutilação tem aumentado entre adolescentes . Estudos mostram que em mulheres de 16 a 24 anos, desde os anos 2000, os casos mais que triplicaram. Os números são alarmantes : atualmente, quase uma a cada cinco mulheres já teve algum comportamento de automutilação na vida.

Sabemos também que existe uma ligação entre machucar o próprio corpo e o suicídio. Um estudo da Inglaterra seguiu cerca de 9.000 pessoas que chegaram ao pronto socorro por alguma lesão auto-inflingida. Num intervalo de 3 anos , uma em cada cem morreu – mais da metade por suicídio. No caso do “cutting” – a prática de se cortar- sabemos que é raro os adolescentes de fato procurarem o pronto socorro por este sintoma . Ele pode variar da simples experimentação a um comportamento mais recorrente que envolve risco progressivo de vida. Apesar do índice de gravidade e sofrimento, os adolescentes geralmente tentam esconder as lesões e a prática do “cutting” . Somente 50% dos casos procura alguma ajuda. O cuidado e atenção na hora certa pode prevenir um destino fatal no futuro. Muitas vezes o comportamento auto-agressivo se cronifica e agrava, adquirindo uma característica compulsiva, e crianças e adolescentes que se machucam repetidamente são um grupo de maior risco para suicídio em fases tardias da vida. Há o risco de que as auto-agressões se tornem um modo costumeiro de lidar com a angústia, sendo levado para a vida adulta. Nos pacientes do sexo masculino, o risco de evolução para suicídio é maior.

É moda?

Na internet , há sites que ensinam, estimulam e compartilham comportamentos de restrições alimentares, autoagressões e até suicídio. O meio em que o adolescente está pode encorajar ou protegê-lo contra a auto-agressão. Há um efeito de contágio em grupos de meninas que começam a se cortar, e a internet potencializa esta influência. A desumanização a que muitos estão sujeitos no contexto do abuso, do descaso, do abandono, faz pensar e sentir que a vida vale pouco.

É um pedido de ajuda.

O comportamento pode ter uma finalidade paradoxal. Muitas vezes os adolescentes contam que não se cortam para morrer , até mesmo dizem que praticam o “cutting” para canalizar sua angústia e continuar vivendo. Mas, mesmo que não haja intenção suicida, este comportamento deve ser levado a sério. Por um lado, mesmo um comportamento tão chocante como este pode fazer parte de um desajustamento temporário de prognóstico melhor, que responde bem ao manejo ambiental e suporte. Por outro, experienciar uma doença mental é o maior fator de risco para o problema, ao mesmo tempo que indica sua gravidade.

Os fatores de risco para a automutilação são muito semelhantes aos fatores de risco para tentar o suicídio: sexo feminino, precariedade socio-econômica, ser minoria ou transgênero, ter uma orientação sexual diferente da maioria, sofrer bulling na escola, ter histórico de abuso sexual ou físico, uso de drogas, álcool e ter alguma doença mental ( principalmente depressão e transtorno de personalidade borderline). Quanto ao suicídio: embora os homens o completem mais, as mulheres tem um número muito maior de tentativas não sucedidas. De todo modo, em nosso meio, terceira causa de morte entre os jovens, o suicídio é morte que pode ser evitada se o tratamento e o cuidado for estabelecido a tempo.

Henri Matisse- 1943- The nightmare of the white elephant.

Além dos sinais mais óbvios de destrutividade contra si mesmo como o “cutting” e as intoxicações, outros sinais mais silenciosos podem nos ajudar a precisar a gravidade de um quadro adolescente: mudanças drásticas de humor, padrão de sono ou alimentação, perda de interesse pelas atividades e divertimentos habituais, queda do rendimento escolar, isolamento. Sintomas físicos como dores abdominais e de cefaléia são comuns. Lavar suas roupas separadamente, usar roupas de manga comprida , pulseiras para esconder as cicatrizes e evitar expor o corpo para os pais, bem como inventar explicações estranhas para as injúrias em sua pele são comportamentos que frequentemente se associam à prática do “cutting”. Guardar ou esconder gilete, tesouras ou até a lâmina do apontador e compasso escolar com o intuito de se cortar também acontecem comumente. O uso de substâncias também é presente em muitos casos de adolescentes que se cortam: em nosso meio as meninas vem fazendo uso de álcool cada vez mais cedo e de modo intenso e alarmante.

O que fazer?

A empatia é a chave para se comunicar com o adolescente, para que sinta conforto em compartilhar o que sente e o que se lhe passa. Reações excessivas, tão comuns no entorno, podem fazer sentir-se ainda mais sozinho. A escuta deve ser ativa e livre de julgamentos- só assim um canal de comunicação pode se abrir com aquele que sofre.

A prevenção está ligada a tudo que promova o bem-estar psicológico, sejam intervenções familiares, na escola, e a psicoterapia. É preciso reestabelecer a confiança e ajudar o adolescente a conhecer os gatilhos para o desejo de se cortar, desenvolvendo maneiras novas de lidar com a dor psíquica. Se houver transtorno mental associado, os cortes podem ter sido o caminho mais visível para fazer o pedido de ajuda – e a medicação psicotrópica bem indicada faz-se necessária. Como ouvir estes adolescentes?

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Henri Matisse. The Clown 1943

O eu é corpo. Quem sou, o que sou, e me sinto sendo, começa com a representação psíquica de meu corpo.

A pele é um envelope, território de troca, de limite e de proteção. A pele delimita meu corpo e também delimita meu Eu.

Há dores da alma não consigo localizar, remediar tampouco. É angústia. Por vezes, um estado de não sentir-me real. Pode ser que então a dor me lembre que tenho um corpo – existo. Sou concreto, sou real.

Não se assuste comigo.

Eu escondo meus cortes, mas quero me comunicar. Estou desconfiado, mas espero que você me encontre. Não sei o que sinto, não tenha medo do meu silêncio.

O que há por trás destas feridas?

Podemos olhar para o que elas são em termos do Real, : excitação violenta e dor que toca o sensório do corpo. Há explicações biológicas para o alívio que trazem.

E, ao mesmo tempo, poder vê-las é ter algum controle sobre este intenso desprazer. Imaginariamente as feridas estão fora, a dor as localiza e delas emana. Posso ser as marcas, o sangue, posso ser o segredo.

Simbolicamente os cortes são Cortes, barram o sofrimento, marcam meu pertencimento, meu não pertencimento. Minha pele é minha boca e diz ao mundo o que não tenho palavras para dizer.

Um adendo: Em seu livro “Borderline: Uma Outra Normalidade” Nahman Armony traz a idéia de uma nova subjetividade: o borderline como paradigma do homem atual , “hipermoderno”, assim como o neurótico foi um dia o paradigma do homem freudiano, pautado pela repressão. O homem atual, com suas valências identificatórias em aberto, é um homem em devir, homem poroso, que se organiza, e (des)organiza à sua maneira.

Continuamos tentando ajudar nossos pacientes a simbolizar, achar palavras. Dizer-se. Mas os modos de dizer mudam com os tempos. Que possamos escutar sem preconceito as novas identidades que surgem na clínica. Alguns meninos e meninas e menines que permanecerão nesta outra normalidade e cujos cortes podemos ajudar que se transformem em tatuagens, mensagens, piercings, poemas ou gritos. E o que mais for possível. A música acima, de Paulinho Moska, fala deste ser hipermoderno, móbile no furacão. Vale ouvir, com toda atenção!!!

Pois, como sempre, os artistas saem na frente, captando o mundo.

(Obrigada, Maria Helena, a artista do nosso grupo, que me deu a idéia das pinturas de Henri Matisse).

Desejo de filho

O que leva um sujeito a desejar ser pai ou mãe? Nos filmes Juno ( Jason Reitman, 2007) e Mais uma chance (Tamara Jenkins , 2018) ; o tema se coloca.

São filmes diferentes mas seus enredos se tocam em alguns pontos. Em “Juno”, fala-se da gravidez na adolescência, seus dilemas. Quando a mocinha decide abortar, falta coragem. Ela decide doar o bebê. Encontra então um casal bacana que está à procura de um filho . Em “Mais uma chance”, há também um casal infértil que oscila entre a ideia de adoção e a busca de tratamentos para conceber. Este casal irá recorrer à ovodoação por conta da idade da mãe, e a doadora será uma sobrinha por quem sentem afinidade.

No primeiro filme, Juno vai escolher o casal que receberá seu bebê por meio de um anúncio. Ao conhecê-los se encanta : são a família que ela idealiza, ela que vive com pai e madrasta e se sente negligenciada pela mãe.

Já a ovodoadora do filme ” Mais uma chance ” é uma pessoa da família. Apesar dos contextos diferentes, ambos os filmes iluminam as triangulações que acontecem nestas situações peculiares. Quando o bebê que vai chegar promete vir por meios diferentes do convencional, a cegonha faz um pit stop que custa caro (literal e psiquicamente) para as pessoas envolvidas.

Escolho aqui falar dos personagens femininos dos filmes para iluminar aspectos das suas dificuldades e alegrias na relação com a maternidade.

Juno é a personagem principal do filme que leva seu nome. Tem 16 anos e engravida do namorado, num deslize. Descobre a gravidez num teste que faz no banheiro de um mercadinho. Nos seu livro “Adolescência em cartaz” Diana e Mario Corso falam sobre ela e especulam sobre a razão inconsciente que pode ter ocasionado este delize… uma tentativa de reparar em ato uma ferida aberta lá atrás, quando Juno foi abandonada pela mãe : ” em nosso entendimento, Juno repete sua história de rejeição e adoção por parte de outra mãe. Sua decisão foi a de manter a gravidez e encontrar alguém que deseje e receba este bebê. Pensa em doá-lo a uma mulher estéril ou a um casal de lésbicas. O desejo por um filho, tão importante para a descartada Juno, encontra, tanto na mulher que adota o recém-nascido quanto na atitude irrepreensivelmente materna da madrasta, uma acolhida que compensa a falta de sua própria mãe.”

E por sinal Bren, a madrasta de Juno, é uma mãe melhor que a encomenda! Amorosa e firme, consegue, ao lado do pai da adolescente, apoiá-la na decisão de entregar sua criança para adoção. Sem recriminações, sem exclusão, sem paternalismo- o que comumente encontramos nas famílias que se deparam com a gravidez indesejada nesta fase da vida. Bren, como madrasta, presentifica o aspecto simbólico da filiação que não precisa passar pela carne para se concretizar. Ela se responsabiliza pela adolescente e assume o cuidado dela junto ao pai, não sem sofrer junto com Juno o peso da difícil decisão.

Aqui Bren acompanha Juno no ultrassom gestacional

A outra personagem feminina do filme “Juno” é Vanessa, a mãe que ela escolhe para dar o seu bebê. É casada , organizada, bem sucedida- mas não consegue engravidar . Faz um casal bonito com Mark: casal que sucumbe ante à dificuldade encontrada no projeto de adoção . Apesar do perfeccionismo e da intensa projeção narcísica sobre a cobiçada criança, Vanessa sofre com o descompasso entre seu desejo de filho e a postura do marido. Ele parece ter fixações na adolescência e não se sente à altura do projeto “pai”. Quando vai receber o bebê de Juno, Vanessa já está sozinha. Recebe emocionada a criança em seus braços e pergunta à Bren, que a observa ternamente: ” Como pareço?”, ao que Bren responde: ” Como uma nova mãe apavorada!” Nesta cena o círculo se fecha: as duas mães adotivas se encontram por meio do ato de Juno de doar o bebê . Bebê gerado pelo desejo inconsciente de restaurar a união perdida com uma mãe que não há… Juno não tinha o desejo de cuidar de um filho , ela queria ser cuidada. Ao perceber isso pôde ter o apoio de sua família para lidar com a situação , aprender com a experiência.

Além da gestação como passagem ao ato, que foi o que aconteceu com Juno, uma gravidez pode ter muitos outros sentidos que não o desejo de cuidar de um filho. ” Para a psicanálise, uma passagem ao ato é algo que tem uma motivação inconsciente para acontecer”, dizem Mario e Diana Corso. Os autores falam também da consolidação da imagem feminina e do desejo de dar um bebê aos pais como motivações inconscientes para a gravidez. Todo desejo de filho é um amálgama de muitos outros desejos nem sempre compreendidos pelo sujeito.

Agora vamos falar de outras três mulheres, personagens do filme “Mais uma chance ” ( Private life ) . Rachel, escritora engajada, é a personagem que aqui sofre com a dificuldade de engravidar. Num diálogo que tem com o companheiro percebemos a culpa por ter adiado o projeto de ser mãe por conta da profissão – agora sente que é tarde demais. Ela vai se submeter ao processo desubjetivante dos tratamentos de fertilidade, nos quais percebemos o sofrimento psíquico que os procedimentos carregados de impessoalidade lhe trazem. Seu cabelo desalinhado, as cenas de nudez, as alterações de humor e o desconforto que parece sentir retratam o custo que o desejo de filho lhe traz. O seu corpo erótico reduzido a um corpo- coisa, máquina que teima em não funcionar. Ela oscila mas não desiste mesmo quando, no final de todo o processo, passa pelo luto do fracasso da inseminação artificial. A alegria de estar com a sobrinha e algumas falas do filme fazem pensar que Rachel e o esposo desejam uma criança como uma mudança em suas vidas e para renovar a própria vida. Aqui parece haver o desejo de cuidar de alguém. Porém, apesar do humor presente em muitas cenas, o patético da situação de reprodução assistida e da busca de um filho desnuda a fragilidade de Rachel e sua tristeza. Sua feminilidade e potência é posta à prova; ela que é uma pessoa criativa se sente desvitalizada e acuada diante da situação. Rachel também se encaixa na descrição que o casal Corso faz quando fala do problema de Vanessa :

Dos rivais que a libertação feminina tem enfrentado, os mais indomáveis parecem ser os ritmos biológicos. Ficamos prontas para engravidar, com a fertilidade a ponto de bala, o corpo viçoso e flexível, quando a cabeça ainda tem muitíssimas outras coisas com o que se ocupar. Depois, quando certas escolhas já foram feitas, e algumas garantias nos tranquilizam, aí já estamos fisicamente mais frágeis para conceber e parir. Se então quisermos ser mães, necessitaremos repouso e assistência médica.”*

Rachel, Sadie e Richard diante do médico especialista em reprodução humana

Sadie é a moça que tem o tal “corpo viçoso e flexível” e a “fertilidade a ponto de bala”, com a cabeça ainda cheia de projetos e coisas para resolver antes de ser mãe. Sobrinha do casal, deseja ser escritora como a tia e aceita doar-lhe seus óvulos . Embarca no projeto vivenciando-o como uma oportunidade de fazer algo de bom : e se perde no caminho pelo peso psíquico que toda a situação representa para ela . Há uma cena em que diz para Rachel que irão ter um bebê juntas- pois será seu óvulo a ser inseminado no ventre da outra. Esta cena é carregada de sensualidade e mostra a intimidade das duas mulheres como um casal e também como mãe e filha, numa perigosa realização imaginária dos desejos incestuosos de Sadie com esta figura materna e dupla de si que a tia parece representar. Para Freud, a descoberta da fase pré-edípica na menina equivale ao encontro de toda uma civilização soterrada sob a escolha heterossexual da mulher: pois o primeiro amor da menina, como no caso do menino, é a mãe. Dar um bebê à sua mãe é uma fantasia que Sadie parece estar próxima de realizar- e é neste momento que a moça se apaga diante do desejo da outra.

E se a tia Rachel permanece como figura idealizada e imitada pela Sadie, a mãe da moça, Cynthia, é por ela desqualificada. Cynthia é a terceira personagem do filme de que quero falar.

Ela está chegando à menopausa e se depara com a decisão da filha de doar seus óvulos. Ambas tem uma relação difícil, estão muito afastadas e com dificuldade de comunicação. Cynthia não valida a escolha profissional da filha que também a critica, que a confronta. Cynthia não compreende a obstinação de Rachel em seu desejo de engravidar, e tem muita dificuldade de aceitar o procedimento da ovodoação. Ficamos sabendo que ela teve a filha muito nova e isto acarretou-lhe muitos sacrifícios . Ela faz alguns movimentos para se aproximar mas o processo adolescente de Sadie dificulta o encontro das duas: a moça está buscando se diferenciar da sua mãe e a mãe também passa por um momento difícil, encarando o ninho vazio sem ter tido chance de outras realizações pessoais.

Outro círculo se fecha aqui: Sadie liga as duas mulheres e cada uma fez uma escolha na vida… ambas começam a envelhecer sentindo falta daquilo que não realizaram. Cynthia é o negativo de Rachel, Rachel é o negativo de Cynthia.

O que todas essa mulheres: Juno, Vanessa e Bren, Rachel, Sadie e Cynthia tem a nos ensinar? São mulheres do nosso tempo às voltas com o dilema da maternidade, e o que é ser mulher. Juno e Sadie passam pela adolescência, Rachel e Cynthia envelhecem, e tem de fazer lutos. Rachel está com dificuldade neste luto- está num impasse, congelada. É o que a cena final do filme deixa transparecer. Vanessa também passa pela crise no casamento que a injunção de se tornar pais representa. Vemos mulheres passando por processos de transformação . Juno recua diante da maternidade, Vanessa avança: ambas crescem no processo. Rachel ainda precisará de mais tempo para resolver o impasse em que se encontra. Sadie sai um pouco estropiada da experiência da ovodoação mas (com ajuda dos tios) prossegue em seu caminho criativo. A generosa Bren, avó por um segundo, transmite à outra mulher apoio e segurança.

Cada uma se vira como pode.

Eu já tinha comprado o livro de Contardo Caligaris e Maria Homem “Coisa de menina” mas não havia lido. Com a morte dele, corri para abrir o livro, ainda dentro do plástico- pequenas alegrias de sábado à noite na pandemia. É bom poder escutar a voz de Contardo e Maria falando que não nascemos mulher, nos tornamos mulheres. E por não sermos somente bichos fêmeas reprodutoras, por termos de significar para nós o que significa ser -ou não ser- mulher e mãe, sempre haverá muitas viscissitudes neste processo. A origem da vida e a diferença entre os sexos permanecem sendo grandes mistérios para nós.

Diante do mistério, toda ciência será sempre pouca- e sempre um pouco louca.

* Juno | Mario & Diana – Psicanálise na vida cotidiana (marioedianacorso.com)

Uma das musicas mais lindas sobre adoção… desejo de filho!!!

Meninas e o Álcool

Não há um consumo seguro de álcool na adolescência.

A cura da adolescência é a passagem do tempo. ” nos diz  Winnicott.

Sabemos que eles e elas vão testar nossos limites, mas temos de nos posicionar firmemente : “Onde houver o desafio do rapaz ou da moça em crescimento, que haja um adulto para aceitar o desafio.” 

CONFIAR : A INTERNET, O SEGREDO, E A VULNERABILIDADE ADOLESCENTE

Por Cleyton Angelelli e Arianne Angelelli

“onde houver um desafio do rapaz e da moça em crescimento, que haja um adulto para aceitar o desafio “

Winnicott.

Nos dias de hoje ,com a internet, encontramos jovens plugados durante o dia todo, conectados em um espaço virtual, que não permite o acesso dos pais. Ao mesmo tempo as famílias estão reduzidas e cada vez mais isoladas em seus espaços de comunicação. Hoje vemos crianças muito pequenas com tablets e adolescentes 24h ligados em seus computadores e I phones. Os pais , que vieram de outra geração , não sabem colocar limites e carecem de parâmetros diante da realidade cada vez mais virtual desta geração. Muitas vezes não estão familiarizados com a tecnologia da mesma forma que os filhos e se sentem desorientados ao perceber que o mundo virtual adolescente é um campo desconhecido. Alguns pais tentam exercer controle sobre os acessos e o tempo nas telas , outros são excessivamente permissivos com os filhos . Todavia, não há uma fórmula mágica para fornecer parâmetros 100% seguros quando se trata do processo de ganho de autonomia que a adolescência representa. Os adolescentes vão se expor a perigos mas estarão esperando que os pais possam estar atentos a eles. O processo de crescer envolve muitos lutos e reviravoltas – e os pais precisam estar dispostos a “topar a parada”.

A proposta deste trabalho é a análise do filme ” Confiar ( Trust) ” do diretor David Scwhimmer ( 2010). No enredo, uma garota de 14 anos que vive com os pais e o irmão, numa família estável, aparentemente saudável, envolve-se na internet com um pedófilo. Ele se faz passar por um rapaz mais novo e abusa sexualmente dela.

O pai, publicitário, ele mesmo veiculando na mídia imagens sensuais de meninas muito jovens , ao ver a filha conversando com o desconhecido , não imagina o risco que ela corre . Confiante na sua capacidade de discernimento e na sua “inocência”, se surpreende quando comunicado, por terceiros, de que a moça sofreu abuso num primeiro encontro com o pedófilo. As fraturas na comunicação intrafamiliar se evidenciam. Os pais , envolvidos com a saída do filho mais velho de casa, deixaram de notar o perigo que a filha estava correndo. Percebe-se que nesta família a chegada dos filhos à adolescência encontra os pais de certa forma despreparados para lidar com o luto e a transformação . Eis o que acontece: desponta a sexualidade da filha , que vive o apaixonamento em segredo- mas os pais não estão atentos aos sinais de que ela precisa de orientação.

A retomada da comunicação familiar se faz por meio de muita dor .Todos terão de elaborar o luto pela infância perdida e pela família idealizada que parece desmoronar neste momento. Após vários desdobramentos do ocorrido, a adolescente, sem condições de elaborar o trauma, faz uma tentativa de suicídio. Os pais, avisados por uma amiga, conseguem encontrá-la a tempo.

Existe um paradoxo na comunicação adolescente. Parafraseando Winnicott, neste momento da vida há
“um sofisticado jogo de esconder, em que é uma alegria estar escondido, mas um desastre não ser achado”.

Winnicott conta o caso de uma mocinha que tinha um diário secreto, que era deixado de modo a ser encontrado pela mãe, que deveria ficar ciente dele, mas sem comentar com a filha. O paradoxo está no fato de que o adolescente quer privacidade e quer se arriscar, mas deseja que os pais estejam sempre atentos e dispostos a protegê-los , percebendo os sinais de que algo anda errado e colocando limites em sua onipotência. É um jogo de esconder muito sofisticado, pois a criança que cresceu precisa agora de um espaço para si, mas não quer ser abandonada à própria sorte.

No filme, o namoro virtual é o “diário secreto” que não foi encontrado pelos pais, quando a comunicação falhou. Ao tentar suicídio, enviando uma foto de si pela rede, a mocinha tenta de novo enviar um recado os pais …

( Trabalho apresentado no décimo terceiro congresso brasileiro de adolescência )

Na cena acima, a adolescente conversa com Charlie, que usa de uma falsa identidade para se aproximar dela por um chat online.

O mínimo para viver

O mínimo para viver To the bone, filme de Marti Noxon (2017)

“Você parece um fantasma” diz a mãe de Ellen, assustada, quando a vê durante a internação.

Ellen, uma jovem com anorexia grave, inicia um tratamento em uma clínica alternativa. Lá, conhece outros pacientes que enfrentam distúrbios alimentares e, através dessa convivência em grupo e com o terapeuta, entra em contato consigo mesma, com seu transtorno e história.

Um fantasma é um espírito sem corpo, etéreo. Anoréxica, Ellen some até os ossos. Quase um sopro do que poderia ser. Tem repulsa aos alimentos, sente-se gorda, faz exercícios para eliminar qualquer possibilidade de caloria acumulada.

Na reunião com a família na clínica, Ellen desaparece no turbilhão das relações familiares. Um pai ausente, três mães e nenhum colo, um abraço da irmã.

No decorrer do seu tratamento, Ellen parece ganhar forma ao assumir um outro nome: “Eli” – escolhido como seu, e não mais o de sua avó. Gradativamente, começa a interagir com as outras pessoas. Quando se decepciona, Eli ganha corpo, expressa sua raiva ao psicólogo e deixa a clínica. Vai em busca da mãe.

Nesse encontro, embalado pelas lembranças e culpas maternas (“estava em depressão após o parto, creio que não te segurei e alimentei como poderia”), vai se formando uma permissão. Eli pode não comer, pode morrer, se quiser, se esse for o seu desejo. É como se a mãe dissesse: pode viver a sua angústia, estou mais forte agora.

Nesse momento, com cuidado, a mãe a aconchega ao colo e Eli aceita uma mamadeira.

“Deveríamos poder deixar essas crianças irem até o fim” diz o psicólogo depois que ela vai embora. Eli vai até o fim, até os ossos. Poderia se dizer até a medula, para descobrir, após se deixar alimentar pela mãe, que quer viver, que pode perder o controle da sua alimentação para “o outro”, que pode se deixar envolver pelo colo de outrem.

Esse filme nos faz lembrar dos conceitos de Winnicott:

“Quando uma mãe, através da identificação com seu bebê (isto é, por saber o que o bebê está sentindo), é capaz de sustentá-lo de maneira natural, o bebê não tem de saber que é constituído de uma coleção de partes separadas. O bebê é uma barriga unida a um dorso, tem membros soltos e, particularmente, uma cabeça solta: todas estas partes são reunidas pela mãe que segura a criança e, em suas mãos, elas se tornam uma só”. (Winnicott, Explorações psicanalíticas, 1969g/1994, p. 432)

 “A mãe sabe por empatia que quando se pega um bebê é preciso levar um certo tempo nesse processo. O bebê deve receber um aviso, as várias partes devem ser seguradas em conjunto; finalmente, no momento certo, a criança é levantada; além disso, o gesto da mãe começa, continua e termina, pois o bebê está sendo levantado de um lugar para outro, talvez do berço para o ombro da mãe”. (Winnicott, Natureza humana, 1988, p. 137)

A mãe de Eli, deprimida, sem o suporte do pai, sempre ausente, conta que não pode segurar direito o seu bebê.

“No início há o soma [o corpo], e então a psique, que na saúde vai gradualmente ancorando-se ao soma. Cedo ou tarde aparece um terceiro fenômeno, chamado intelecto ou mente”. (Winnicott, Natureza humana, 1988, p. 161)

“A integração também é estimulada pelo cuidado ambiental. Em psicologia, é preciso dizer que o bebê se desmancha em pedaços a não ser que alguém o mantenha inteiro. Nestes estágios o cuidado físico é um cuidado psicológico” (Natureza humana, 1988, p. 137)

Conforme as ideias de Winnicott, podemos entender que, na saúde, a mente tem sua origem num momento específico do percurso de amadurecimento. Ela surge como um ramo da psique na sua integração com o soma. Isso se inicia na fase de desilusão – quando, por qualquer aspecto da realidade, as necessidades do bebê não são atendidas – e segue como uma linha presente ao longo de toda a existência do indivíduo.

“Se tomarmos agora o caso de um bebê cujo fracasso da mãe em adaptar-se é rápido demais, podemos descobrir que ele sobrevive por meio da mente. A mãe explora o poder que o bebê tem de refletir, de comparar e de entender…. Este pensar transforma-se num substituto para o cuidado e adaptação maternas. O bebê “serve de mãe” para si mesmo através da compreensão, compreendendo demais”. (Winnicott, Explorações psicanalíticas, 1965/1994, p.122)

A desconexão entre o corpo e sua imagem e necessidades, aspecto da anorexia, pode se entender como vestígio de alguma não integração psique-soma. A sobrevivência através da atividade mental poderia explicar a recusa ao alimento como uma teoria primitiva para controlar a fome, a vida, a morte, a necessidade e a ausência do outro. No entanto, os sintomas psicossomáticos seriam ainda, de alguma forma, expressão da busca de interação psique-soma, através da tendência inata à integração.

O convívio a que Eli se permite na clínica e a possibilidade experimentada no encontro com o terapeuta e com sua mãe proporcionam a renovação da expressão de suas necessidades, no embate da sua satisfação/frustração com a realidade possível.

Nesse sentido, Eli precisa ir “até os ossos” para encontrar o seu corpo, as suas emoções, a integração perdida e para poder se deixar permear pelo alimento, pelo sol, pela vida.

Um bate-bola com os adolescentes

Vozes em Debate: Adolescência

Gabriela Viana conversa com a especialista em psiquiatria da infância e adolescência pelo Hospital das Clínicas da USP, Arianne Angelelli, e os adolescentes Gustavo Polo, de 14 anos, e Beatriz Videira, de 17 anos.

Publicado em 17/07/2019•Duração: 52min

https://cbn.globoradio.globo.com/media/audio/267570/vozes-em-debate-adolescencia.htm

Benzinho: a nossa pietá brasileira.

Benzinho – A nossa pietá brasileira
Sobre a relação do homem com sua mãe, a nossa blogueira do Gesto Espontaneo , Cecilia Hirchzon escreve *:
“O homem, para ser “si mesmo” e para constituir a sua identidade masculina, terá de se separar desta Mulher, de quem dependeu totalmente. Já a mulher, para se constituir como tal, não precisa estabelecer necessariamente a separação – pode manter-se identificada com essa Mulher. Observamos, portanto, duas direções distintas: enquanto a mulher lida com a Mulher dentro de si através da identificação, o homem tem que se separar, tornar-se único, o que se constitui em uma urgência no desenvolvimento da sua identidade. A especificidade da identidade feminina caracteriza-se por ser geracional e infinita, isto é, podendo manter dentro de si três mulheres: o bebê menina, a mãe e a mãe da mãe. Essa condição possibilita à mulher o desempenho de diferentes funções sem violar a sua natureza. Pode ocupar posições diversas nas brincadeiras, onde ora é mãe, ora é filha, alternando papéis. Ou, ainda, na idade adulta, exercendo a sua feminilidade, ocupando o lugar de mãe e/ou mulher sedutora. Enquanto isso, o homem não se funde nessa linhagem – sua condição básica é a de ser um”.
No belíssimo Benzinho, de Gustavo Pizzi, que está em cartaz nos cinemas, o primogenito de Irene, mulher brasileira , mãe de quatro filhos, vai embora para a Alemanha a convite de uma universidade que está interessada no seu talento esportivo. O adolescente vibra enquanto a mãe se quebra, assustada com a partida súbita, fora de hora, do filho muito jovem. A história de Benzinho é o processo que se desencadeia com a chegada da noticia, suas idas e vindas , focado aqui no ponto de vista da mãe que vai tentando aceitar o momento que é de alegria e tristeza. Porque Irene é Pietá não vou contar aqui, para não dar um “spoiler” do filme. A interpretação de karine Teles é magistral. O amor materno aqui se desdobra em suas mais variadas possibilidades ( como diz a Adelia Prado, mulher é desdobrável) . A mãe suficiente boa, por sua saúde e sua capacidade de lidar com a perda e a separação, aparece na interpretação de Irene. Mãe suficientemente boa que se atrapalha, fica brava, dá chilique, chora, pira, respira, mas, enfim, ama. A gente fica apaixonada pela Irene. O longa foi escolhido como o filme brasileiro que vai disputar uma vaga entre os quatro finalistas ao Prêmio Goya de Melhor Filme Ibero-americano, considerado o Oscar espanhol.
E , para terminar, um poema, uma musica.

O gato andaluz*
(Rosa Alice Branco)
O meu filho caminha por aí. Já não sei
se é o Douro ou o Darro que lhe embala o sono.
Nem onde guardei as datas e o nome das ruas
ou se vou te encontrar logo à tardinha.
Deixei-me de saber e de pensar que sei.
Um gato arranha à minha porta a miar em andaluz.
Eu arranho a porta a dois dias daqui, duas horas
De avião. É proibido miar nos voos europeus.
Engulo a saliva do dia e assim se faz noite.
E não há gaivotas a gritar por mim. Por mim
estou eu à janela do avião. As malas
com que hei de dizer-te: cheguei. O teu abraço
como um rio qualquer onde corra água.
Esquecer o que ficou para trás e a língua que me fala.
Levar o copo à boca onde nasce a boca,
A fonte do quintal, a nascente do mar. O meu filho
Voa como se caminhasse descalço. Cruzamo-nos
no horizonte sobre a linha do rio onde deságua a luz.
E as palavras aquietam-se no seu nada.

( do livro Soletrar o dia, Ed escrituras, 2004)

* este artigo está postado em nosso blog na seção artigos e notícias ( “Os elementos masculino e feminino puro na clínica”).

O gesto espontâneo de Francis Há

O filme Francis Há, do diretor Noah Baumbach (2013) está no netflix.

Para quem não assistiu no cinema, é uma boa opção. O filme narra as aventuras (e desventuras) de Francis, tentando achar o seu lugar ao sol em Nova York, e também no mundo adulto, em que parece não se encaixar. Grandona, desengonçada, espontânea, Francis e seus amigos são adolescentes tardios. Geração mimimi, geração nutela, geração nem-nem (nem trabalha, nem estuda)… Quem não escutou um destes termos e a explicação jocosa de que estes jovens estão se jogando da caixa d’água ou morrendo de propósito,  “feito passarinhos, avoando de edifícios” porque não querem crescer, ou não aguentam as frustrações? Não querem trabalhar, não querem dificuldades: “dá seis da tarde, largam a caneta”… ou: “foram criados na internet, tudo na mão, tudo fácil, não querem nada com a dureza”.

Hummmm… Ponho-me a pensar.

 

Na clínica dos tempos atuais constatamos um prolongamento da adolescência, toda uma geração de adultos jovens que não está conseguindo amadurecer. No entanto, amar e trabalhar, sair de casa, fazer parcerias e escolher uma maneira de ser autônomo é um desafio que enfrentam com dificuldade, nem sempre com essa placidez que aqueles termos pejorativos evocam. A geração mimimi está sofrendo de verdade.  Para Freud o trabalho pode “tornar possível o uso de inclinações pré-eexistentes, de impulsos pulsionais” a serviço da realização pessoal e da vida em comunidade. Winnicott diz: “se o que se pretende é que a vida instintual tenha liberdade de expressão...” haveria um equilíbrio que tem que ser obtido sempre de novo, em cada fase: “considerem um médico e suas necessidades. Privem-no de seu trabalho, e o que será dele? Ele necessita de seus pacientes e da oportunidade de usar suas aptidões, como qualquer outro profissional.”.

Privem o jovem adulto de usar suas aptidões… o que será dele?

Para estes jovens, estamos falhando em ser o ambiente que permite a realização: há os trabalhos criativos, e há os ofícios insanamente alienantes, e aqui eu não estou falando da alienação de Marx; eu estou falando da alienação do verdadeiro self. A morte psíquica é um desfecho possível, e quem viu o filme Arábia (Afonso Uchoa e João Dumas-2017) se entristeceu com a história do Cristiano, que escreve um diário, se apaixona, mas no final sucumbe, vira “coisa”, deixa de sonhar.

Francis sonha. E podemos sonhar este filme, como nos propõe Nino Ferro: Francis e seus amigos representando, cada um, uma parte do seu self (como no enredo de um sonho ou de uma sessão). O filme é uma fábula moderna sobre as vicissitudes da bailarina meio gauche, desengonçada, Francis, que com 27 anos enfrenta dificuldades para manter-se economicamente. Não  selecionada para o espetáculo de natal, ainda é uma adolescente: tem sonhos grandiosos de realizar-se como artista,  mas  não encontra reconhecimento no trabalho.Também não se acerta com o namorado :  “sou alta demais para casar” , e fala de si mesma  ” eu ainda não sou uma pessoa real, de verdade” . Da dificuldade de passar pela fase da adolescência diz ” sou uma pessoa que tem dificuldade em deixar os lugares” quando se demora no camarim, tentando organizar suas coisas após um ensaio, quando todos já foram embora.

 

Em várias de suas falas e no enquadramento do filme, quando dança, por exemplo, partes de seu corpo são deixadas fora da cena, e diz de si ” Nunca consigo saber como fiz meus machucados”. Esse corpo grandão e que escapa do esquema é tão próprio da adolescência, período de crescimento rápido, em que o corpo passa na frente e a mente corre atrás, atabalhoadamente, tentando dar conta do recado! Francis dança, mas é mesmo meio desastrada, como uma adolescente que cresceu rápido demais. Quando Sophie,  melhor amiga,  que pode ser sonhada como o seu duplo, de quem   diz “somos a mesma pessoa, com cabelos diferentes”, vai embora, inaugura-se  em Francis um período de solidão e busca de sentido,  marcado pela instabilidade: constantes mudanças de endereço  e viagens – a fuga para Paris, o retorno à universidade, à casa dos pais.  Outros personagens que vão aparecendo, todos na casa dos 30,e parecem encarnar os falsos-selves que Francis vai rejeitando em sua busca por autonomia e realização; os jovens ricos dependentes dos pais,  artistas que  nada produzem, a colega da companhia de dança que a acolhe em sua casa,  mas não sabe brincar. Francis, perto dos 30 e temendo parecer mais velha ( pois não se sente adulta), parece ser a pessoa mais desajustada, mas na verdade  é aquela que mais traz a marca da autenticidade e da alegria. Nem sempre estar bem ajustado significa saúde mental…se isso se faz às custas do estrangulamento do gesto espontâneo.

Podemos entender o tempo do filme como o tempo da adolescência,  tempo de estar sempre um pouco à deriva, sem respostas, de inquietude. Mas também tempo de rejeitar as falsas soluções. O que nós “adultos” ( rssss) gostamos de chamar de preguiça ou rebeldia ou aborrescência. ( É que a gente gosta de esquecer que já sentiu isso um dia – e vai sentir de novo: na menopausa, na hora de ter o ninho vazio, ao se aposentar, ao fazer o implante dentário, ao envelhecer…).

A cura da adolescência é a passagem do tempo. ” nos diz  Winnicott. Nós, terapeutas, vivemos com Francis, como expectadores, este marasmo que caracteriza tantos  momentos da análise dos adolescentes.

Enfim, nossa heroína consegue fazer a sua  passagem. No final do filme, tem a oferta de um trabalho de secretária ( aceito com  relutância), e se  reconcilia com a amiga que regressa do outro lado do mundo  ( simbolizando a integração dela mesma). Por fim alcançada alguma estabilidade,  inicia o trabalho como coreógrafa, inventando uma dança. Ela assim descreve sua coreografia       “gosto das coisas que parecem erradas”.

Três cenas finais indicam a elaboração da passagem da adolescência em Francis, de maneira muito poética. Na primeira,  orienta os bailarinos que vão ao palco encenar sua coreografia, mostrando a capacidade de estar na coordenação de um projeto original, autoral: a capacidade de trabalhar criativamente. Na segunda, o belo encontro de olhares de Sophie e Francis, ao fim da peça, que pode ser visto como o olhar amoroso, e também o espelho, o reconhecimento no olhar do outro, tão buscado pelo artista. E, enfim, a adequação ao princípio de realidade quando finalmente tem uma casa que é sua, e precisa cortar um pedaço de seu nome para que ele possa caber no  espaço da caixa de correio. É a aceitação da castração, como limite-borda definidora, parte do amadurecimento. Como nos diz Winnicott; “Ser, antes de fazer”. “O ser tem de se desenvolver antes do fazer…  finalmente a criança domina até mesmo os instintos sem a perda da identidade do self”. O nome comprido que pode ser cortado agora é Francis amadurecida, ajustando-se, sem deixar sua dança, sem perder a felicidade, o senso de identidade e a capacidade criativa. De uma forma dialética, e poética, o fazer também alimenta o Ser; assim acontece com Francis, que amadurece tarde, mas no seu próprio tempo.

para meu sobrinho, Thales Augusto.

 

As treze Razoes de Merli

As treze razões de Merli

AS TREZE RAZÕES DE MERLI
Arianne Angelelli*

Nas últimas semanas falou-se muito de suicídio adolescente. Um seriado da Netflix, “13 reasons why” ou “os 13 porquês” estreou na provedora causando grande reação da mídia. Ao mesmo tempo, um suposto jogo online chamado Baleia Azul, foi noticiado tratando do mesmo tema. Nos grupos de WhatsApp, pais aconselhando uns aos outros a impedir seus filhos de assistir ao seriado. Uma reportagem sobre o jogo da Baleia Azul no YouTube, com quase 500.000 visualizações… A TV está cheia de morte. Fascina. O apocalíptico “Walking Dead”, série sobre zumbis está entre as três séries mais vistas em 2016. E tem para todos os gostos – em “Breaking Bad” um professor de química se transforma em traficante de metanfetamina e morre de forma apoteótica, com uma chacina. Afinal, do que estamos falando? Em “13 reasons why ”, Hannah, uma bela jovem americana, vítima de bullying, estuprada, se suicida e narra sua história postumamente. Está difícil viver?

Ou ver? Pois, no seriado, a jovem Hannah, como o palíndromo no seu nome, parece correr em círculos sem saída, entrando num estado de desesperança que somente a morte pode remediar. Na medida em que ouvimos as gravações que fez explicando as razões do próprio suicídio (uma sequência de abusos que inicia com a divulgação de fotos suas na internet), o ato extremo passa a comunicar o que não pode ser comunicado em vida. Não parece haver a possibilidade de encontrar no mundo dos adultos ou em algum outro canto a consistência, a segurança, a proteção, durante a vida. Do lado de cá da tela, uma verdadeira paixão pelo Real nos escraviza, e assistimos passivamente a cena em que ela corta seus pulsos (didática, da maneira mais certeira para se morrer).

Todos os dias uma profusão de imagens, sem filtro, invade nosso celular e telas, num excesso que nos faz cegar. (Será preciso diminuir a sensibilidade para lidar com tantas informações simultâneas, a morte exposta sem pudor, a violência crua?). São excessos. A sociedade do espetáculo precisa do sangue e do exagero, e o “sou visto, logo existo” substitui o velho axioma de Descartes. Pensamento simbólico é um processo lento demais para este nosso tempo rápido, líquido. Um snap chat dura alguns segundos, a imagem se esvai (conseguiu fazer um print? Não?) e são tantas as mensagens que apreendemos de forma quase fotográfica, sem uma pausa para a reflexão, que pensar se torna um luxo raro, e o “déficit de atenção” quase uma defesa.

Já em “Merli”, que conta a história do professor de filosofia catalão, o pensar ganha novo status para o grupo de adolescentes a quem ensina. Trata-se de um seriado, também disponível na provedora Netflix, em que cada episódio se intitula com o nome de alguma corrente da filosofia. O tema costura as reflexões em aula com os dramas cotidianos dos alunos, que estão lidando com as primeiras experiências sexuais, os embates familiares, o luto. A amorosa Monica de Vilamore, que vem de outra escola, tem a privacidade devassada pela divulgação na internet de um vídeo íntimo. Neste ponto sua história se assemelha com a de Hannah (em um episódio de “13 reasons“) – ambas alunas novas, sofrem um ataque virtual. Mas aqui, Merli, atento, vem em auxílio da moça, e contra-ataca fazendo os rapazes refletirem sobre a própria responsabilidade na propagação deste vídeo. O filósofo do dia é Guy Debord. No aqui-agora da sala de aula, refletem sobre a exposição que inadvertidamente fazem da colega, sobre a falta de ética da atitude, enquanto discutem as idéias do pensador que escreveu “A Sociedade do Espetáculo” na década de 60. Para ele, o “ser” se transmuta em “ter”, e, cada vez mais, em “parecer”. O grupo se dá conta do ataque feito à colega e a resgata, em atitude amorosa, de forma muito criativa.

Em “Três ensaios sobre juventude e violência” (1), Rose Gusrski pergunta: “será que a dimensão do espetáculo, ao instalar a saturação de imagens como paradigma do sentido, penetra no sujeito de modo a criar uma relação literal demais para o homem?”

Literal demais, sim, em “13 reasons”: a morte, o suicídio, a indiferença. O ato violento como única possibilidade de se fazer escutar. Se a protagonista Hannah foi vítima do mesmo assédio que Monica, ao ter fotos comprometedoras divulgadas de forma maliciosa, só no caso desta última a intervenção pensante do mestre reverte o destino da jovem. Mesmo crime, dois destinos; destino de morte, destino de vida.

Merli” e “13 reasons ” estão disponíveis, ao mesmo tempo, na mesma provedora, Netflix. Todos nos assustamos com a impulsividade da adolescência, com a rapidez do mundo virtual, e o primado do Real que parece ter vindo para ficar… Mas, como nos diz Winnicott (2) “Onde houver o desafio do rapaz ou da moça em crescimento, que haja um adulto para aceitar o desafio.” Merli aceitou.

Referências

1) GURSKI, R. R. Três ensaios sobre juventude e violência. São Paulo: Escuta, 2012. 174p.

2) Winnicott, D. W. (1975). Morte e assassinato no processo do adolescente. In: O brincar & a realidade (pp. 194-203). Rio de Janeiro: Imago.

*Arianne Angelelli: Médica psiquiatra formada pela USP, residência em Psiquiatria Infantil, formação pelo IPPIA – Instituto de Psiquiatria da Infância e Adolescência, membro do departamento de saúde mental da sociedade paulista de pediatria.

Gravidez na adolecência – PGM 20

O Programa semanal de debates onde os temas são selecionados a partir de fatos que ocorrem no cotidiano da sociedade.

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