Os adolescentes estão se cortando

O índice de automutilação tem aumentado entre adolescentes . Estudos mostram que em mulheres de 16 a 24 anos, desde os anos 2000, os casos mais que triplicaram. Os números são alarmantes : atualmente, quase uma a cada cinco mulheres já teve algum comportamento de automutilação na vida.

Sabemos também que existe uma ligação entre machucar o próprio corpo e o suicídio. Um estudo da Inglaterra seguiu cerca de 9.000 pessoas que chegaram ao pronto socorro por alguma lesão auto-inflingida. Num intervalo de 3 anos , uma em cada cem morreu – mais da metade por suicídio. No caso do “cutting” – a prática de se cortar- sabemos que é raro os adolescentes de fato procurarem o pronto socorro por este sintoma . Ele pode variar da simples experimentação a um comportamento mais recorrente que envolve risco progressivo de vida. Apesar do índice de gravidade e sofrimento, os adolescentes geralmente tentam esconder as lesões e a prática do “cutting” . Somente 50% dos casos procura alguma ajuda. O cuidado e atenção na hora certa pode prevenir um destino fatal no futuro. Muitas vezes o comportamento auto-agressivo se cronifica e agrava, adquirindo uma característica compulsiva, e crianças e adolescentes que se machucam repetidamente são um grupo de maior risco para suicídio em fases tardias da vida. Há o risco de que as auto-agressões se tornem um modo costumeiro de lidar com a angústia, sendo levado para a vida adulta. Nos pacientes do sexo masculino, o risco de evolução para suicídio é maior.

É moda?

Na internet , há sites que ensinam, estimulam e compartilham comportamentos de restrições alimentares, autoagressões e até suicídio. O meio em que o adolescente está pode encorajar ou protegê-lo contra a auto-agressão. Há um efeito de contágio em grupos de meninas que começam a se cortar, e a internet potencializa esta influência. A desumanização a que muitos estão sujeitos no contexto do abuso, do descaso, do abandono, faz pensar e sentir que a vida vale pouco.

É um pedido de ajuda.

O comportamento pode ter uma finalidade paradoxal. Muitas vezes os adolescentes contam que não se cortam para morrer , até mesmo dizem que praticam o “cutting” para canalizar sua angústia e continuar vivendo. Mas, mesmo que não haja intenção suicida, este comportamento deve ser levado a sério. Por um lado, mesmo um comportamento tão chocante como este pode fazer parte de um desajustamento temporário de prognóstico melhor, que responde bem ao manejo ambiental e suporte. Por outro, experienciar uma doença mental é o maior fator de risco para o problema, ao mesmo tempo que indica sua gravidade.

Os fatores de risco para a automutilação são muito semelhantes aos fatores de risco para tentar o suicídio: sexo feminino, precariedade socio-econômica, ser minoria ou transgênero, ter uma orientação sexual diferente da maioria, sofrer bulling na escola, ter histórico de abuso sexual ou físico, uso de drogas, álcool e ter alguma doença mental ( principalmente depressão e transtorno de personalidade borderline). Quanto ao suicídio: embora os homens o completem mais, as mulheres tem um número muito maior de tentativas não sucedidas. De todo modo, em nosso meio, terceira causa de morte entre os jovens, o suicídio é morte que pode ser evitada se o tratamento e o cuidado for estabelecido a tempo.

Henri Matisse- 1943- The nightmare of the white elephant.

Além dos sinais mais óbvios de destrutividade contra si mesmo como o “cutting” e as intoxicações, outros sinais mais silenciosos podem nos ajudar a precisar a gravidade de um quadro adolescente: mudanças drásticas de humor, padrão de sono ou alimentação, perda de interesse pelas atividades e divertimentos habituais, queda do rendimento escolar, isolamento. Sintomas físicos como dores abdominais e de cefaléia são comuns. Lavar suas roupas separadamente, usar roupas de manga comprida , pulseiras para esconder as cicatrizes e evitar expor o corpo para os pais, bem como inventar explicações estranhas para as injúrias em sua pele são comportamentos que frequentemente se associam à prática do “cutting”. Guardar ou esconder gilete, tesouras ou até a lâmina do apontador e compasso escolar com o intuito de se cortar também acontecem comumente. O uso de substâncias também é presente em muitos casos de adolescentes que se cortam: em nosso meio as meninas vem fazendo uso de álcool cada vez mais cedo e de modo intenso e alarmante.

O que fazer?

A empatia é a chave para se comunicar com o adolescente, para que sinta conforto em compartilhar o que sente e o que se lhe passa. Reações excessivas, tão comuns no entorno, podem fazer sentir-se ainda mais sozinho. A escuta deve ser ativa e livre de julgamentos- só assim um canal de comunicação pode se abrir com aquele que sofre.

A prevenção está ligada a tudo que promova o bem-estar psicológico, sejam intervenções familiares, na escola, e a psicoterapia. É preciso reestabelecer a confiança e ajudar o adolescente a conhecer os gatilhos para o desejo de se cortar, desenvolvendo maneiras novas de lidar com a dor psíquica. Se houver transtorno mental associado, os cortes podem ter sido o caminho mais visível para fazer o pedido de ajuda – e a medicação psicotrópica bem indicada faz-se necessária. Como ouvir estes adolescentes?

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Henri Matisse. The Clown 1943

O eu é corpo. Quem sou, o que sou, e me sinto sendo, começa com a representação psíquica de meu corpo.

A pele é um envelope, território de troca, de limite e de proteção. A pele delimita meu corpo e também delimita meu Eu.

Há dores da alma não consigo localizar, remediar tampouco. É angústia. Por vezes, um estado de não sentir-me real. Pode ser que então a dor me lembre que tenho um corpo – existo. Sou concreto, sou real.

Não se assuste comigo.

Eu escondo meus cortes, mas quero me comunicar. Estou desconfiado, mas espero que você me encontre. Não sei o que sinto, não tenha medo do meu silêncio.

O que há por trás destas feridas?

Podemos olhar para o que elas são em termos do Real, : excitação violenta e dor que toca o sensório do corpo. Há explicações biológicas para o alívio que trazem.

E, ao mesmo tempo, poder vê-las é ter algum controle sobre este intenso desprazer. Imaginariamente as feridas estão fora, a dor as localiza e delas emana. Posso ser as marcas, o sangue, posso ser o segredo.

Simbolicamente os cortes são Cortes, barram o sofrimento, marcam meu pertencimento, meu não pertencimento. Minha pele é minha boca e diz ao mundo o que não tenho palavras para dizer.

Um adendo: Em seu livro “Borderline: Uma Outra Normalidade” Nahman Armony traz a idéia de uma nova subjetividade: o borderline como paradigma do homem atual , “hipermoderno”, assim como o neurótico foi um dia o paradigma do homem freudiano, pautado pela repressão. O homem atual, com suas valências identificatórias em aberto, é um homem em devir, homem poroso, que se organiza, e (des)organiza à sua maneira.

Continuamos tentando ajudar nossos pacientes a simbolizar, achar palavras. Dizer-se. Mas os modos de dizer mudam com os tempos. Que possamos escutar sem preconceito as novas identidades que surgem na clínica. Alguns meninos e meninas e menines que permanecerão nesta outra normalidade e cujos cortes podemos ajudar que se transformem em tatuagens, mensagens, piercings, poemas ou gritos. E o que mais for possível. A música acima, de Paulinho Moska, fala deste ser hipermoderno, móbile no furacão. Vale ouvir, com toda atenção!!!

Pois, como sempre, os artistas saem na frente, captando o mundo.

(Obrigada, Maria Helena, a artista do nosso grupo, que me deu a idéia das pinturas de Henri Matisse).