Quando o sono da criança se torna pesadelo para os pais

( Artigo publicado na revista “Crianças”)

Por Cleyton Angelelli

Com grande frequência, pais chegam ao consultório pediátrico trazendo queixas de sono de seus bebês e crianças. Relatam buscas de um sem-número de tentativas de adaptações, receitas e técnicas, e muitos fracassos em “fazer” seu filho dormir. Muitos estampam desânimo e estresse no rosto, decorrentes de exaustão por semanas e até meses a fio.

Meu bebê tem algum problema? – é a questão que muitos nos fazem, especialmente quando se trata do primeiro filho do casal. Nós pediatras somos bastante mobilizados por essa queixa, e muitas vezes não encontramos nenhum fator clínico ou orgânico que justifique o problema do sono. Buscamos oferecer apoio, através de dicas, ideias e “jeitinhos” para “ensinar” a esses aflitos pais a lidar com a questão.

Como se tornar um novo pai/mãe afeta o sono?

O manejo do sono do filho, principalmente para os pais novatos, é desafiador. Mesmo sendo o foco desses pais o bem-estar de seus filhos, é necessário aconselhar que eles também prestem atenção às próprias necessidades e expectativas, especialmente quando os cuidadores estão operando com pouco tempo de descanso devido às mamadas noturnas e outras solicitações.

Esse impacto nas famílias é bastante significativo. Segundo os pesquisadores da área, enquanto pais perdem uma média de 13 minutos de sono por noite, as mães deixam de dormir por mais de uma hora por noite. E o sono dos pais não retorna aos níveis pré-gestacionais até que a criança atinja 6 anos de idade. Mães de recém-nascidos estão também sob risco de insônia, sonolência diurna, ansiedade, depressão, sono não repousante e fadiga. A privação de descanso pode aumentar os sintomas de depressão pós-parto, presente em 1 a cada 8 mães.

Ritmos diversos

 Dormir é universal, no entanto, sob o mesmo teto, podem conviver indivíduos com ritmos e necessidades diversas de dormir. Portanto, primeiro é necessário esclarecer para os pais alguns “mistérios” sobre diferenças entre o sono na infância e nos adultos. Um adulto saudável tem um sono consistente e previsível, que dura em torno de 7 horas por dia, na maioria das vezes ininterrupto. Já o recém-nascido pode passar 15 a 18 horas por dia dormindo, mas em períodos curtos, independentemente de ser dia ou noite e, não raro, com maior atividade acordado à noite, pontuam os especialistas.

O desenvolvimento de um ritmo do sono no bebê (o chamado ritmo circadiano, de aproximadamente 24 horas) começa a surgir na maioria das vezes entre 3 e 6 meses de vida, com a criança obtendo mais horas contínuas de sono noturno e menos horas de sono diurno. Porém, existe grande variabilidade individual e alguma imprevisibilidade nesse amadurecimento, e não é incomum que o bebê ainda tenha despertares durante a noite durante todo o primeiro ano de vida. A questão gera mais ansiedade nos pais quando esses se defrontam com um processo que pode ter muitos avanços e retrocessos, tanto por uma causa definida (como por eventuais doenças agudas, viagens, mudanças de endereço), como sem um motivo aparente.

Conforme a criança cresce, a arquitetura do sono vai se aproximando da do adulto, tanto na estruturação de um sono sem interrupções a noite, como diminuição da necessidade de dormir de dia. Perto dos 5 anos de idade, ela apresenta uma estrutura de sono semelhante ao adulto, conforme estudos com crianças de 2 a 8 anos.

Uma técnica de sono para chamar de sua

É típica a cena da criança surgindo – mais uma vez – no quarto do casal durante as madrugadas, em busca de proteção contra monstros que insistem em habitar sua mente infantil. Por sua vez, os pais não compreendem e se frustram por ela ainda ser incapaz de acomodar seus medos e sentimentos desconfortáveis à noite, em geral afetando seu descanso e tornando-se irritável também de dia. A continência parental é sufocada pelo cansaço, aumentando as tensões e conflitos familiares, em uma espiral de desamparo. Alguns pais relatam nervosismo ao final do dia, perto da hora da criança ir para a cama.

Não se pode culpar um pai e uma mãe exaustos por buscarem saídas. Muitas vezes os problemas de sono os afetam desde o período gestacional, ou mesmo antes, como aponta Genevieve DelRosario em seu artigo Moms need to sleep like a baby, too! (“Mães também precisam dormir como bebês!”, em tradução livre). A realidade do filho que não dorme contrasta com aquele bebê que um dia foi idealizado, e expõe muitos pais à insegurança de seu papel de cuidadores e às cobranças da cultura contemporânea, que almeja entregar resoluções rápidas e massificadas às várias questões parentais.

Assim, para equilibrar a complexa equação da privação de sono com a atenção ao filho, existem técnicas e experiências que os ensinam como “domar” o sono da criança e, de preferência, “sem traumas”. As opções são variadas, bem como seus resultados, uma vez que os pais esperam respostas e atitudes em relação ao sono dos filhos que talvez não estejam prontos para obter – deles e de si próprios.

Com isso, a chamada conquista da autonomia do sono pela criança é forjada por um infinito entra e sai dos pais no quarto do bebê, por noites seguidas, até que algum lado se renda. Dormir é “vitória” contra o oponente, e não dormir é “derrota” – sim, há uma guerra em curso! Uma guerra não poderia deixar de ser traumática para pais e filhos.

O ambiente de dormir para você não é o mesmo para um bebê e uma criança

O bebê percorre um caminho para amadurecer e adquirir um bom hábito de sono, de preferência em um meio (ambiente de dormir) e observando certa higiene do sono que o ajude a se desenvolver de forma adequada. É preciso investigar quais aspectos e hábitos propiciam a melhor qualidade do sono, incluindo a rotina criada para a hora de dormir, a duração do sono, a temperatura e luminosidade do ambiente e a presença de ruídos, entre outros. Essas variáveis são entendidas como facilitadoras – não necessariamente determinantes – para ajudar a iniciar e manter o sono durante a noite toda. Não é incomum o relato de que algo que pareceu ajudar em algum momento o bebê a dormir sem interrupções não parece ajudar em outro momento.

Mas o meio, para o bebê, tem mais dimensões e significados. Não só os desconfortos e ruídos ambientais, mas também os psíquicos, influenciam a dinâmica do sono da criança. O bebê e sua mãe têm um longo caminho unidos, mesmo após a separação provocada pelo parto. A mãe é o meio para o bebê. É através dela que o bebê se relaciona com o meio, usando o anteparo materno para lhe dar contorno e organizar sua rica sensorialidade. Ao funcionar em simbiose com ela, principalmente nos momentos iniciais, muitas vezes é o colo materno o melhor berço: nos primeiros meses de vida, muitos bebês dormem melhor e por mais tempo quando são aconchegados num colo.

O colo não disponível, como no caso da ausência física ou emocional parental, torna muitas vezes o sono do bebê tenso, curto, cheio de sobressaltos e interrupções. Nesse aspecto, a rede de apoio às mães e pais – como a ajuda de familiares, babás e outros “colos” – serve também para indiretamente suportar o bebê em sua necessidade de proteção.

Do mesmo modo, pode haver colo em excesso, na medida em que ao bebê não é dada a oportunidade de aprender a dormir sozinho se os cuidadores são excessivamente ansiosos ou superprotetores. Conforme vai crescendo, a maioria das crianças atinge a capacidade de integração que lhe permite dormir com independência – o colo vai sendo finalmente introjetado por elas. Outras, por sua vez, podem precisar por muito tempo do conforto no contato físico dos pais para poder se entregar ao sono.

Desconstruindo a “Torre de Babel ao pé do berço”

Para desfazer esse verdadeiro “diálogo sem legendas entre estrangeiros”, em que um não compreende o que o outro está tentando comunicar, com frequência é preciso buscar uma intermediação de um “tradutor” sensível ao peso que o tema tem em cada família.

Para além das dicas e técnicas, o profissional de saúde – seja o pediatra ou o psicólogo – pode oferecer escuta e apoio aos pais para que caminhem na compreensão da criança em sua reivindicação de colo e proteção, dando a ela o que necessita para suportar a ausência física dos pais, sem que isso coloque a todos em situação de desestruturação. Aqui há um cuidado necessário para ajudar os pais a entender que os fantasmas que assustam a criança podem estar ligados mais às suas próprias crianças interiores do que a questões do bebê.7

No atendimento, a conexão pais-filho, os personagens no entorno familiar e as histórias daquele núcleo são incluídos na avaliação e depurados. Desse entendimento sobre as relações é que surge o amparo para que novos estágios no amadurecimento do sono possam ser gradualmente alcançados, sinal de maturidade e independência da criança. Também há limites a serem confrontados e superados por ambos os lados, de forma segura e amorosa. É significativo lembrar: a criança estará pronta quando estiver pronta e o amadurecimento integral da criança, incluindo físico e psíquico, está intrinsecamente atrelado ao ciclo sono-vigília. A criança se desenvolve também durante o sono.

Foto do autor:

Cleyton Angelelli – Pediatra, com especialização e alergia-imunologia infantil e homeopatia. Membro do Departamento de Saúde Mental da Sociedade de Pediatria de São Paulo. Membro do Grupo de Desenvolvimento Emocional Infantil da Casa Curumim (São Paulo).

E-mail: agimedicina@gmail.com     tel: (11) 93404-6982


Birras!!!!

Alerta de spoiler: este não é mais um post que vai lhe dar dicas sobre como lidar com as birras dos seus filhos.

Terrible two

Dizem que esta é a fase dos terríveis dois anos. Se tudo correu bem, chegamos até aqui! Mas o que é tão terrível nestas birras e teimosias? Que grande desafio é esse? Como estes seres tão pequenininhos passam a ter tanto poder sobre nós? Na fase da birra, os pais são desafiados mais uma vez. Quando o bebê nasceu, o desafio foi aprender a cuidar de alguém tão dependente. Foi difícil. Foi maravilhoso. Mas agora… agora os sentimentos são outros.

Impotência, irritação, raiva. Tudo vira disputa e confusão. Os pais é que entram numa fase terrível. Serão testados em sua consistência, paciência, firmeza e convicção. E será necessário aos pais ter jogo de cintura e maleabilidade. Será necessário que repensem sobre o que é importante, em relação às regras e aos limites. Que pensem no que desejam transmitir para seu filho em sua trajetória dentro da sociedade humana. Divergências que eram antes desconhecidas entre o casal podem vir à tona no momento em que o filho chega à fase do “terrible two“. Como fazer? Como lidar? Vale ser severo, rígido? O que fazer quando o menino ou a menina se jogam no chão, aos berros? Vale ser paciencioso, condescendente? Dá para negociar com a criança? Ou é melhor ignorar a birra? Os pais se acusam mutuamente. A família vem para julgar. Cenas e “shows” acontecem diante da plateia familiar.

Primeiro os pais se sentiam julgados se o filho não mamava, não dormia ou não falava bem. Agora, são julgados pela impertinência e pelas “malcriações” do filho. Chovem palpites, recriminações. A criança que está se desenvolvendo bem aprende rapidamente quais são os pontos fracos dos seus pais. Por que ela faz isso? Só para chatear, para irritar, para testar?

"Mãe com crianças e laranjas”, Picasso, 1951
Mãe com crianças e laranjas”, Picasso, 1951

Na verdade, a criança que faz birras está construindo suas capacidades emocionais e para tal está recrutando seus pais. Ela os quer firmes e amorosos ao mesmo tempo, presentes , maleáveis e resistentes. A criança vai atacar os pais para que eles possam sobreviver aos seus ataques. Assim, poderá construir a ideia de ser separada deles, com uma mente própria. A raiva, o ciúme, a inveja, a disputa: todos estes afetos difíceis começam a aparecer no palco do drama familiar. A criança tenta adquirir um controle sobre sua vida e sobre as emoções dos seus pais. Se a criança ganhar este jogo, ficará desesperada! Pois os limites é que darão segurança à criança.

Como ajudar nosso filho a lidar com o NÃO?

Para isso, precisamos rever aspectos profundos de nós mesmos . Como você lida com os limites? Você se resigna, se revolta, ou você sabe negociar com as dificuldades da vida? Como você faz para viver em sociedade, seguir as regras da boa convivência, do respeito ao outro, sem que por isso se sinta submetido, ressentido e amargo? Como abrir mão da onipotência infantil e achar gosto na vida real, onde sempre falta algo ou alguém para nossa felicidade ser completa?
Adultos também fazem birras. Alguns se mantém vivos por meio dos embates que travam com a vida. Esses embates podem estar encobrindo uma real dificuldade de se adaptar, pensar, abdicar da condição de estar no controle, ter poder sobre o outro.

Entendamos então, a importância da fase das birras, que vai dos 2 aos 3 anos de idade mais ou menos. Para Winnicott ” é no entremeio que talvez resida a coisa mais difícil no desenvolvimento humano, ou talvez a mais penosa de reparar, de todas as falhas iniciais que ocorrem. O que existe no meio…é o fato de o sujeito colocar o objeto fora da sua área de controle onipotente; isto é, o sujeito perceber que o objeto é um fenômeno externo, não uma entidade projetiva, na verdade, o reconhecimento de que o objeto é uma entidade autônoma.” É a fase importante da birra que traz para a criança, por meio dos embates com o adulto, a noção firme de aonde ela começa e termina, de aonde o pai começa e termina, de onde a mãe começa e termina. Há um triângulo, e em seus vértices estão o bebê, a mamãe e o papai. Ao perceber que os pais tem uma vida própria, e se amam, e vivem sua vidas independentemente do desejo da criança, ela perde e ganha. Perde a ilusão da onipotência, sofre o ciúme, a inveja e o limite! Mas ganha a possibilidade de estar só, ganha a possibilidade de perceber que também ela pode se ligar a outras pessoas: os primos, a vovó, os amiguinhos da escola. O NÃO é uma estrada com duas direções: ajuda a criança a se definir, se reconhecer, se direcionar . O pai que diz não à criança está também dizendo a ela que é bom crescer, e que ela também poderá dizer não ao outros, aprendendo a reconhecer seus desejos verdadeiros.

É verdade que Winnicott também fala do amor primitivo, referindo-se aos estados excitados do bebê, carregados de tensão instintual, mas este “amor” é feito de necessidade, e nada sabe sobre a existência externa de um outro. O amor do objeto que sobrevive à destruição é toda uma outra coisa; trata-se agora do sentimento de um eu – que, embora incipiente é inteiro e separadodirigido para um outro, como pessoa inteira e separada. O pré-requisito para este amor é o mesmo que para o exercício da genitalidade que se quer madura, e que não é apenas um exercício solitário; também nesta é preciso que o objeto seja percebido como externo e separado do indivíduo. Ou seja, o amor é constituído no interior do processo de amadurecimento.” *

É a face mais dura do amor. Onde eu termino, você começa.

Amor é o que se aprende no limite, como dizia Drummond : amor começa tarde. O amor está ligado à maturidade. Sem passar pelo “terrible two” a criança estará paralisada no seu desenvolvimento. Terrível , mesmo, é descobrir que mais que dois existem mais. Mas sem esta constatação estaremos presos num mundo de onipotência, desespero e solidão.

  • Elsa Oliveira Dias- A teoria do amadurecimento de D.W.Winnicott, 4 ed, 2017, pag 224.

Ciranda, do Palavra Cantada!!!

Ritmo: um organizador do psiquismo

                           

 

                         “Eu quero a revolução

                    mas antes quero um  ritmo”

                                                        Adelia Prado

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Conheci um menino que acaba de ganhar um irmãozinho , ainda antes de desmamar.

Perto de fazer 2 anos , mama antes de dormir, já come bem e vai a escola, brinca e fala. Mas, com essa novidade tremenda na sua casa, agora reluta em dormir. A mãe, cansada, que amamenta o dia todo o menorzinho, precisa que ele compreenda esse novo limite. Conta que agora ele não quer deixar de sugar, fica por muito tempo “grudado” no peito. Conheci também uma mocinha que só  consegue dormir com o celular do lado, vendo sua série favorita. Acorda cedo para a escola e sente sono nas duas primeiras aulas. Os pais  pensaram em alguma maneira de desconectar a internet dela depois das 22h. Mas ela , esperta, usa a rede da vizinha. E tem o jovem que combina de jogar video game on line com os amigos e passa da meia noite facilmente- inclusive descobriu um jeito de fingir dormir para depois levantar na calada da noite para voltar ao jogo. Numa noite o pai acordou indisposto e foi aquele Deus-nos-Acuda. Quanto mais limites ao jogo os pais colocam, mais aumenta seu desejo de jogar… Por outro lado, a mãe de um mocinho muito parecido com este outro dorme somente com o seu “Stilnox”. Como ela, outros tantos vem desaprendendo a dormir e se descuidando dos rituais saudáveis que o dormir pede ao corpo: não precisa diminuir o ritmo, se tem um indutor de sono a disposição. Voce  pode estar “à mil” e daí BUM : basta tomar o remedinho, para dormir em cinco minutos.

Conheço também um cara muito bacana, pai de dois filhos, que não almoça nem toma café  da manha. Até as duas, três da tarde, passa com café e cigarro, não sente fome. De noite faz uma lauta refeição. Ele é magrinho, mas um outro senhor que conheci teve de fazer cirurgia bariátrica, aquela da redução de estômago. Tinha os hábitos semelhantes,estava muito obeso e comia somente de manha e muito tarde a noite; pois passava o dia na sua loja dentro da estação do trem  sem nenhuma pausa para lanchar ou descansar. Tudo que é  simples ( ou deveria ser) no corpo, depende de um certo ritmo. Dormir e acordar. Comer, trabalhar, descansar. Ir ao banheiro todos os dias. Uma amiga começa sua segunda graduação. Sente que perdeu muito tempo, por isso estuda todos os dias, inclusive sábado, domingo. Muitas horas seguidas. Não percebe que sua capacidade de concentração flutua, e sem fazer as devidas pausas acaba por gastar parte do seu tempo de forma contraproducente. Se sente muito cansada, ansiosa.

Ritmos. Pausas. Cadências. Cada pessoa tem a sua necessidade de sono, de sexo, sua fome, sua capacidade de concentração. Alguns se sentem muito mais espertos de noite, outros se irritam muito quando passa a hora de comer, ou tem enxaquecas. No filme ” O Novíssimo Testamento” a menina divina escuta o coração de cada pessoa e diz a musica que ouve em cada um. Cada um de nós teria um ritmo , uma melodia particular. Mesmo no jeito de falar diferem as pessoas. Nas pausas para respirar. No fluxo do pensamento. E os bebês ja tem seus ritmos dentro do ventre materno. Bebês e mães podem ter os seus ritmos semelhantes, sincronizando facilmente, ou nem tanto. Existem bebês que adoram barulho, passear. Outros tem um temperamento mais arredio. As sensibilidades também variam, muitíssimo. ao som, ao calor, aos estímulos do ambiente. Mas a descontinuidade e as mudanças de estado sempre incomodam os bebês. Quando são trocados, quando são despidos, quando são despertados. Um pouco como nós…quem nunca sentiu um desprazer quando o despertador toca, quando o feriado  acaba, quando esfria de repente.

Quanto mais imatura a pessoa, mais difícil para ela  lidar com as mudanças, as imposições do meio e dos outros, as mil interrupções da vida . Um bebê precisa de outro alguém a lhe garantir um ambiente reassegurador, tranquilo, e esta tranquilidade advém de muitos fatores: um deles o ritmo.

Cedo a mente humana aprende a perceber os padrões ritmicos do ambiente; e dentro do corpo somos também ritmo: respiração e coração. Mas o que é o ritmo? Ritmo é o contraste entre presença e ausência, continuidade e descontinuidade, na presença de certo padrão, no tempo. O que marca um ritmo é a repetição. A compreensão de padrões, mesmo que de forma intuitiva- ou principalmente desta forma-torna possível suportar a ausência e a falta, preencher as lacunas e as esperas; e é por isso que no cuidado com os bebês pequenos a rotina é algo tão importante. O balançar acalma, o ninar é ritmico, a fala humana ao se dirigir a um bebê adquire uma tonalidade especial. Ao longo dos dias e do seu desenvolvimento , a criança, apoiada na previsibilidade dos ritmos maternos e do ambiente, aprende em pouco e pouco a tolerar e a esperar.

” No inicio o ritmo é um recurso para superar a violência da descontinuidade acalmando o bebe por meio da pluralidade de atividades ritmicas ( balanço, sucção, canto de ninar,etc). As experiências do bebê fazem-no confrontar-se com rupturas, descontinuidades, momentos de presença dos objetos que se alternam com ausências. Para evitar que isto  se revele traumático, é a ritmicidade da alternância presença/ausência  que vai  sustentar o crescimento mental”.  Para Vitor Guerra, autor da citação acima, a ritmicidade promove uma ilusão de permanência e continuidade verdadeiramente estruturantes para o psiquismo inicial.

Aquele menino se apega ao seio pois não está suportando agora, com a chegada do irmão, uma dose extra de descontinuidade em sua vida. Adolescentes tem dificuldade em deslogar, desligar, e se desorganizam facilmente. Adultos, também. Estamos demasiado acostumados com as máquinas. Comer, dormir, defecar, descansar: o corpo nos exige essas pausas que o ambiente moderno, que não pára de funcionar, nos nega. O Unibanco já era de 30 horas, antes de ser comprado pelo Itaú, imagina agora. E ninguém escuta mais o Adoniran que não quer perder o trem das onze. O trem das onze é o trem do sono: passou, perdeu, perdeu o sono. Não são apenas  os bebezinhos que precisam do ritmo e da rotina para se organizarem. Num nível profundo e  possivelmente  relacionado ao próprio desenvolvimento da mente, o ritmo aparece com elemento estruturante e organizador. Na vida adulta, ainda precisamos do ritmo e o buscamos para atingir estados mentais mais tranquilos, respirando, aprendendo a esperar e acolhendo os limites do nosso corpo , das nossas necessidades mais profundas , da finitude e da falta que nos constitui , humanos.

Para saber mais sobre o pensamento de Victor Guerra:

https://scholar.google.com.br/scholar?hl=pt-BR&as_sdt=0%2C5&q=el+ritmo+en+la+dimension+victor+guerra&btnG       

 

E aqui uma cena do filme ” o Novissimo Testamento”, filme belga de 2016. Recomendamos muito!

https://youtu.be/7LC0pTOQA4I?list=PLObaNLA3v3VwAnJxQlhbud-1-P5CsxX7B

A mãe suficientemente má

“Esse problema…se torna gradativamente um problema óbvio, devido ao fato que a principal tarefa da mãe ( além de fornecer a oportunidade da ilusão) é a desilusão. Isso antecede a tarefa do desmame e também continua a ser uma das tarefas dos pais e educadores.”

Winnicott ( em “o brincar e a realidade”)

Pensando por aqui… uma pergunta às mães… você é uma mãe suficientemente má? O que Winnicott quer dizer quando diz que a principal tarefa da mãe, além de permitir ao bebê a ilusão de que ele cria o mundo, nos estágios iniciais, é justamente desiludi-lo em seguida?

Aqui faço uma brincadeira, porque pensando por este prisma a mãe suficientemente má… é boa. E a mãe boa-demais-da-conta: é má !!! Isso pode parecer um jogo bobo de palavras mas na dialética do processo de ilusão- desilusão a dança entre a mãe e o bebê muda de ritmo conforme ele pode acompanhar, cada vez mais veloz , cada vez mais capaz, as variações do mundo. A desilusão é parte do crescimento . A diferenciação entre o Si mesmo e o outro, tão dolorosa, mas tão vital para o convívio em sociedade, deriva do amor parental . Em algum momento você dirá para seu filho: Alto lá!!! Tem mais alguém aqui! E a criança cairá do seu pedestal. Ser uma mãe suficientemente má é deixar o bebê dormir sozinho, ter outros interesses, permitir que ele desmame, trazer e facilitar a entrada de outras pessoas na vida dele… e curtir aquele gostinho amargo de descobrir que ele já não precisa tanto de você, porque cresceu. Doce amargo gosto de permitir-se ser desnecessária.

Quando a mamãe sai de cena coisas boas podem acontecer.

O mundo em pequenas doses… assim o bebê vai sendo apresentado à vida até que seja capaz de reagir ao mundo, negociar com ele, deixar-se enlaçar pela realidade. Em um dado momento sabemo-nos separados e únicos. Não é fácil. Embora dentro de cada um de nós haja ainda uma criança que busca meios de controlar, negar ou modificar a realidade, a desilusão inicial que nos fez enxergar mamãe como uma pessoa inteira e fora da área de nosso controle onipotente nos tornou mais humanos.

” presumimos que a aceitação da realidade é uma tarefa que nunca é completada, pois nenhum ser humano está livre da tensão causada pela relação entre as realidades interna e externa.!”

Pois sim. Nascer é muito comprido?

Essa frase do poeta me inspira a pensar no contínuo processo de constituir um Si mesmo, dependente e solitário ao mesmo tempo, à medida que as desilusões da vida vão se acumulando como pedras no caminho. Com a imagem de um caminho pavimentado por essas pedras , podemos pensar a jornada da criança que teve a sorte de ter uma mãe imperfeita.

Outro dia numa live com os pais falávamos da diferença entre traumatizar a criança e frustrá-la. Há hoje em dia um certo medo de traumatizar o filho que deixa muito pai e mãe perdidos e confusos, esquecendo que a tarefa de desiludir é tão importante quanto a de gratificar a criança.

E o pulo do gato é conseguir, como na dança, pegar o ritmo, mudar de ritmo, conforme pode a criança suportar as frustrações . Quando se está na área da NECESSIDADE, quando se ainda é frágil para lidar com o mundo sem o anteparo materno, não podemos falar de frustração, e sim de privação. No início a adaptação da mãe ao bebê é quase total. Adivinha se ele tem frio, fome, cuida dele e o alimenta. Mas se tudo corre bem, o bebê cresce. A mãe ou o pai bons demais da conta subestimam a capacidade de seu filho de se firmar sobre as próprias pedras. Sobre as próprias pernas.

Se te parece que o amor é só bondade e ternura, solicitude e gratificação sem limites…isso não existe nem mais nos filmes da Disney! Toda mãe pode enjoar um pouco do seu bebê, desejar seu espaço, dizer não a ele e “dividi-lo” com as outras pessoas amorosas que os cercam; papai, vovôs, a escola…

E você? Considera-se uma mãe suficientemente má?

Sia – Courage To Change | Malévola (Tradução / Legendado) – YouTube

Em “Malévola” a fada das trevas acaba por se revelar não tão malvada assim… Uma história bonita para assistir e pensar.

Ser e Ter


Como toda a criança, o meu imaginário era povoado por personagens e histórias imaginadas que muito me atraiam e, ao mesmo tempo, provocavam fascínio e medo.

A minha casa era muito grande e tinha dois quintais, um de cimento e outro de terra. O quintal que mais me fascinava era o de terra. Lá havia muitas árvores, pássaros, insetos e junto com os meus irmãos e primas mais velhas imaginávamos histórias que por vezes eram carregadas de mistérios e que me davam muito medo mas, ao mesmo tempo, me encantavam.

Fazíamos tudo juntos e misturados. Esse convívio era muito divertido e prazeroso.

Ao ver o filme Ser e Ter (2002) do diretor, Nicolas Philibert revivi aqueles momentos da minha infância onde aprendemos juntos o que é cooperar, competir e respeitar o outro.

É um filme que fala sobre o amadurecimento humano e o processo de crescimento e aprendizagem.

O professor é um personagem muito interessante e me atrevo-me a dizer que ele é um professor “suficientemente bom”. Não é extremamente acolhedor, mas, corresponde com interesse ao que as crianças necessitam para aprender.

Segundo Winnicott, pediatra e psicanalista inglês, o ser humano traz em si as potencialidades do viver e do amadurecer. O professor respeita o espaço e o ritmo de cada criança, facilitando a compreensão do que está sendo ensinado.

Por outro lado a aprendizagem é partilhada, não importa a idade das crianças, elas aprendem juntas habilidades emocionais como empatia e flexibilidade- tão necessárias para se viver cooperativamente em uma sociedade.

As habilidades emocionais são tão relevantes quanto as cognitivas.

No cotidiano das aulas aparece o aluno Jojo que demonstra certa indisciplina e isso provoca nas crianças reações mais diversas como rigidez, cooperação ou indiferença.

Uma das belezas do filme, é a determinação do professor em ser assertivo com as crianças, ele é tolerante e não fornece as respostas das perguntas que ele faz sobre as disciplinas que está ensinando. Mas orienta o caminho que a criança pode percorrer para chegar na resposta certa.

Este filme é um bom disparador para repensarmos a educação, que, ao longo dos anos, tem dado primazia para o controle dos espaços de convivência nas escolas deixando de aproveitar esses mesmos espaços para desenvolver habilidades sócio educativas.

Em tempos de pandemia, neste momento, os pais podem considerar estas mesmas habilidades no dia a dia em casa solicitando a cooperação das crianças nas tarefas mais simples e estimulando sua curiosidade. Infelizmente para os muito pequenos e mesmo para alguns maiorzinhos o ensino online parece não estar funcionando bem, pois, como bem mostra o filme Ser e Ter, a presença do mestre e o fazer junto é essencial. Por outro lado, talvez não tenhamos outra oportunidade para estar tão perto deles, compartilhando, ensinando e aprendendo juntos o que é mais importante: Ser!

No link abaixo você pode ver o filme todo, disponível no youtube.

Aspectos da experiência do Self

Brincava a criança 
Com um carro de bois. 
Sentiu-se brincado 
E disse, eu sou dois ! 

Há um brincar  
E há outro a saber, 
Um vê-me a brincar 
E outro vê-me a ver. 

No livro “Sendo um Personagem” ( Being a character- de Cristopher Bollas-1992) encontramos a definição do Self como um idioma pessoal, que busca os objetos do mundo para se expressar. Assim, os objetos e as escolhas de uma pessoa falam muito sobre ela. De certa forma, pessoas e coisas, atividades e entretenimentos com os quais nos ocupamos são receptáculos de partes de nós mesmos na busca por ressonância para a expressão de nosso Self mais profundo.

Os objetos do mundo nos modificam, também, ao evocar sentido para nós, principalmente no caso dos encontros com as pessoas que nos cercam. No encontro das subjetividades, em sua maravilhosa diferença, modificamo-nos mutuamente. A diferença é maravilhosa e é uma parte notável da nossa vida: na problemática do encontros e desencontros é que o des-envolvimento ocorre.

Saint Exupéry diz, em ” Terra dos Homens” que a verdade da laranjeira é o solo onde ela frutifica e lança sólidas raízes. Se neste solo, e não em outro, a laranjeira floresce, este solo é a sua Verdade. A busca pelo desenvolvimento , presente em todo ser vivo, está em nós e nos direciona para o mundo no sentido da busca dos objetos, que são como as teclas de um piano a tocar nossas cordas internas. A alegria do encontro é uma bem aventurança se libera o nosso idioma e produz frases musicais que nos ajudam a ouvir a nós mesmos.

Além disso, é da condição humana o refletir sobre si mesmo, poder pensar-se. Em processos psicoterápicos, muitas vezes, ao ouvir a própria voz narrando fatos, ou percepções, o eu se surpreende com uma descoberta sobre si mesmo. Mas o interessante é que o falar para alguém tem uma qualidade diferente do falar sozinho. Quando alguém nos escuta, desta maneira especial, novos caminhos se abrem para o auto-conhecimento.

Brincava a criança 
Com um carro de bois. 
Sentiu-se brincado 
E disse, eu sou dois ! 

Há um brincar  
E há outro a saber, 
Um vê-me a brincar 
E outro vê-me a ver. 

Estou atrás de mim 
Mas se volto a cabeça 
Não era o que eu qu’ria 
A volta só é essa…

É próprio do ser humano pensante e falante o reflexionar-se sobre si mesmo. Quando estamos mergulhados numa experiência, ou mesmo num sonho, por vezes deixamos de funcionar nesta irônica cisão que nos constitui, e sentimos , no aqui e no agora , estar totalmente presentes. Mas logo este outro EU observador é percebido como que nos vendo de fora, a narrar o que se passa.

Brincava a criança 
Com um carro de bois. 
Sentiu-se brincado 
E disse, eu sou dois ! 

Há um brincar  
E há outro a saber, 
Um vê-me a brincar 
E outro vê-me a ver. 

Estou atrás de mim 
Mas se volto a cabeça 
Não era o que eu qu’ria 
A volta só é essa…

O outro menino 
Não tem pés nem mãos 
Nem é pequenino 
Não tem mãe ou irmãos.  

E havia comigo 
Por trás de onde eu estou, 
Mas se volto a cabeça 
Já não sei o que sou. 

E se os deuses são deuses porque não se pensam, somos humanos porque nos narramos continuamente. No atendimento aos adolescentes, que estão passando pelo momento da busca e confirmação da identidade, é comum notar o júbilo com que apresentam para nós as histórias, séries e jogos preferidos, ávidos por falar de si desta maneira especial, revelando-se sem romper a privacidade do Self. Contam-nos detalhes das histórias e desta maneira nos deixam entrever quem são, o que fantasiam, o que temem, o que desejam. Perguntamos sobre os amigos, como são, e que fazem, e assim passamos a saber um pouco mais sobre o nosso adolescente em questão.

O relacionamento com os objetos do mundo também é sujeito a um tanto de acaso… A capacidade de ser poroso à experiência tem a ver com conceito winnicottiano de terceira área. No interjogo entre o eu e o outro, seja este outro um alguém ou um objeto material, busco a mim mesmo mas ao mesmo tempo me deparo com a alteridade do outro, com a natureza da coisa ou objeto. Em dado momento eu leio o objeto com as lentes do meu pensamento, em dado momento sou influenciado por ele, e enfim em algum nível nos encontramos numa rede de significações que é ao mesmo tempo dele, e nossa: a terceira área. A conquista deste espaço potencial não é sempre garantida. Na melancolia, na ansiedade extrema , o eu não pode se permitir estar neste espaço que representa, de certa forma, uma perda de controle. Ao atravessar a ponte que liga o eu e os objetos do mundo, posso aventurar perder-me, para depois voltar, enriquecido pela experiência.

E o tal que eu cá tenho 
E sente comigo, 
Nem pai, nem padrinho, 
Nem corpo ou amigo, 

Tem alma cá dentro 
‘Stá a ver-me sem ver, 
E o carro de bois 
Começa a parecer. 

Fernando Pessoa

Os deuses são deuses porque não se pensam…porque não se pensam

Abaixo o link de spotfy de vários poemas musicados de Pessoa… é necessário estar logado no Spotfy.

Manoel poeta

Feliz dia da criança. Vou pegar aqui umas ideias do nosso saudoso Victor Guerra, para falar de poesia. Em um belo artigo falando sobre ritmo e subjetivação, um dos seus temas preferidos, Victor retoma os primórdios da linguagem. Para ele, a linguagem antes da linguagem categorial (adquirida como uma primeira castração) é rica em sons de todos os tipos e polissensorial. Quando um bebê cresce e aprende a falar, a tirania da linguagem exercida sobre o mundo sensível dos sentidos (visão, audição, olfato, tato, paladar) com suas regras lógicas , sintáticas, gramaticais, de separação sujeito-objeto com privilégio dado ao verbo (ação) vem para subordinar em nós o infantil, este infantil que alguns poetas resgatam justamente ao desconstruir as palavras em suas invencionices. Os ritmos, as pausas, a sonoridade ocupam a poesia além do sentido comum das palavras. Nosso poeta brasileiro , Manoel de Barros, era um dos preferidos de Victor Guerra . Trabalhava “a infância da língua”, ou seja, a experiência de polissensorialidade “ em que havia “uma correspondência e uma passagem de um canal sensorial a outro, com valor metafórico e poético“. Manoel de Barros, que viveu a maior parte da sua vida no pantanal perguntava: “se o lagarto pode lamber o lado azul do silêncio “.

Nós podemos?

Para Victor, o infantil e o “arcaico” não devem se referir

” apenas ao eixo temporal, o que começou primeiro” , mas seu aspecto fundamental talvez seja “dar forma a um “originário incessante”, fonte de criação e de descoberta do mundo e da novidade para um bebê“- maravilhamento do mundo.

Maravilhamento?

Para o ofício da psicanálise é preciso ter o pasmo essencial, a possibilidade de ouvir- através- de, e aprender de novo a cada momento a musiquinha do inconsciente que é um rio profundo e cantante , às vezes difícil de ouvir. Lamber o azul do silêncio?

Dia da criança: vamos ler poesia.

E o que vejo a cada momento

É aquilo que nunca antes eu tinha visto,

E eu sei dar por isso muito bem…

Sei ter o pasmo essencial

Que tem uma criança se, ao nascer,

Reparasse que nascera deveras…

Sinto-me nascido a cada momento

Para a eterna novidade do Mundo.

(Aberto Caieiro)

http://pepsic.bvsalud.org/pdf/ide/v40n64/v40n64a04.pdf

( Dedico este post à minha querida amiga Carla , que foi quem me apresentou o poeta Manoel de Barros).

O sono dos bebês

por Gilca Zlochevsky

  Os bebês acordam muitas vezes ao longo da noite, sobretudo, no primeiro ano de vida. Os conceitos de Donald Winnicott de integração e não-integração me pareceram interessantes para nos aproximar desse fenômeno. A integração surge gradualmente a partir de um estado primário não integrado. O repouso representa um retorno ao estado não integrado. Esta volta não é necessariamente assustadora para o bebê se a mãe lhe assegura um sentimento de segurança principalmente na maneira que o bebê é acolhido. A integração parece relacionada às experiências emocionais ou afetivas mais definidas tais como a raiva ou excitação ligada à amamentação. Muitos bebês acordam, precisam do colo e também do seio para se sentirem novamente integrados, voltarem a dormir e retornar ao estado não-integrado. Os pais ficam aflitos uma vez que são crianças espertas, estão se desenvolvendo muito bem mas  evidenciam nestes movimentos que são bebês e necessitam serem vistos como tal. Estas oscilações variam muito de um bebê para outro. A posssibilidade da mãe poder reconhecer esses estados, tolerá-los e atender ao bebê, apesar do cansaço que isso representa, ajuda a criança aos poucos ir se reassegurando que ela não vai cair num abismo, nem mesmo se desintegrar. 

Quando estamos na área da necessidade, não se tem tempo de esperar a hora

Grupo de estudos: Indicadores de intersubjetividade

Carla Braz Metzner

https://www.entrelacer.com.br/event-details/grupo-de-estudos-indicadores-de-intersubjetividade-com-carla-braz

Indicadores de intersubjetividade: Do encontro de olhares ao prazer de brincar juntos – Victor Guerra | Com a psicóloga e psicanalista pelo Sedes Sapientiae, Membro do Dpto de psicanalise do Sedes Sapientiae. Mestranda da PUC de São Paulo, Carla Braz Metzner.

https://www.entrelacer.com.br/agenda

CAPRICHOS…

Caprichos – Adília Lopes

Conheci uma menina
muito caprichosa a comer
tinha dias que só comia chocolate
ou então ovos mexidos
diziam dela está a chocolate
como se diz de Picasso
que teve uma fase azul
de uma vez gritou
que tinha fome de queijadas de Sintra
e de mais nada
partiu brinquedos
até que mandaram uma criada á periquita
comprar-lhe queijadas
amigos da família notavam
que uma criança tem de se habituar
a comer de tudo
não porque se seja a rainha Isabel
que por uma questão de cortesia diplomática
teve de comer ratos no Punjab
nem porque esteja próximo de um período de racionamento
mas porque é a comer do que não se gosta
que se aprende a saber do que se gosta
as crianças mimadas
acabam por escrever gostava de gostar de gostar
e contraem doenças infecciosas
com muita facilidade
esta apanhou tosse convulsa
e enquanto teve tosse convulsa
só comeu pombinhas de pão
um dia a padeira enganou-se
em vez de pombinhas trouxe vianinhas
e a mãe da menina
ao vê-la chorar como uma possessa
despediu a padeira
a menina durante a convalescença
refinou
tinha ódio ao pão com manteiga
todos estavam a par deste seu ódio
pois em casa da tia Balbina
só aceitava comer pão com manteiga
dizia pão têga
o que já não era próprio da sua idade
acontecia que se recusava a pronunciar
certos sons
está em não dizer man nem ei
murmuravam na sala de visitas da tia Balbina
mas como quem fala de um prodígio
e não como quem diz coitadinha
depois de sete criadas terem sido despedidas
por não saberem cozinhar a preceito
pudim de beiço de vaca
apresentou-se uma que era extraordinária
a menina passou a tratá-la por Predilecta
a Predilecta compreendeu tão bem a menina
que no dia em que preparou com mais esmero
o prato preferido da menina
pudim de pardais assados em água
deitou no pudim um punhado quase mortal de arsénico.

Para os familiarizados com a psiquiatria infantil ensinada em São Paulo e no interior, neste e no século passado, dois nomes importantes de formadores nos vem logo à mente: Amelia de Vasconcelos e Di Loreto, psiquiatra que deu cursos de formação e supervisão a muitos dos aspirantes à especialização do atendimento de crianças. Quando a psicanálise ainda conversava mais com a psiquiatria (por que razão estão de mal, agora, não se sabe…); ainda mais no atendimento das crianças, todo médico que se especializasse na área, pediatra ou psiquiatra, estudava as teorias do desenvolvimento e aprendia que não se pode aplicar os conceitos da psicopatologia do adulto aos pequenos; que passam por doenças “normais” durante todo o seu período de maturação . Estas não devem e não merecem ser “patologizadas” e entendidas superficialmente, fora do seu contexto bio-psico-social. Amelia costumava advogar que o pediatra, habituado à clinica e ao atendimento de crianças fora do âmbito da psiquiatria, seria o mais indicado a se especializar na área, por ter uma visão mais integral da criança, enquanto que os psiquiatras partiriam sempre de um viés patologizante no seu processo de diagnóstico infantil. Embora a medicina baseada em evidências de hoje reconheça muito pouco o valor da psicanálise, na formação de muitos de nós a contribuição de psicanalistas como Winnicott e Melanie Klein trouxe a possibilidade de um pensar muito mais abrangente, profundo e perguntador. Aprendi a perguntar foi mesmo com a psicanálise. Lendo Winnicott, a presença do paradoxo constante e do pensamento perguntador me trouxeram para mais perto do que me parece ser o verdadeiro curiosear científico do que a psiquiatria biológica. Esta, como bem explica um psiquiatra amigo meu, entrou em mania e hoje em dia quer explicar tudo a partir do cérebro.

Porque que é que a simplicidade da linguagem é tão importante para os pensadores iluministas? Porque o verdadeiro pensador iluminista, o verdadeiro racionalista, nunca pretende convencer ninguém a fazer nada. Não, nem sequer deseja convencer ninguém: tem permanentemente consciência de que pode estar errado. Acima de tudo, valoriza demasiado a independência intelectual dos outros para querer convencê-los em questões importantes. Prefere provocar a contradição, preferivelmente sob a forma de crítica racional e disciplinada. Não procura convencer mas despertar – desafiar os outros a formarem opiniões livres.(…) . Ele sabe que, fora do estreito campo da lógica, e talvez da matemática, nada pode ser provado.” Karl Popper

Esta frase de Popper- um dos críticos da psicanálise- serve bem aqui para advogar em favor dela. A boa psicanálise, a psicanálise “da gema” se faz por meio das perguntas e das dúvidas e do reconhecimento de que muito pouco sabemos. Inclusive, para o Di Loreto, nós -os psis- somos poetas pouco competentes . Nossa teorias tentam explicar o que os poetas sabem muito melhor … e quando estamos no lugar de ser aquele- que-cuida, temos de tomar todo dia um chá de humildade , exercitando a tolerância diante do não-saber , é o que de mais precioso temos a oferecer aos nossos pacientes. E eu estava caçando um tema para escrever quando este poema poisou na minha janela – é dele que quero falar.

Conheci uma menina
muito caprichosa a comer…

tinha ódio ao pão com manteiga
todos estavam a par deste seu ódio

dizia pão têga
o que já não era próprio da sua idade
acontecia que se recusava a pronunciar
certos sons

No seu livro “Posições Tardias” ( ed casa do psicologo, 2007), Di Loreto traz importantes contribuições para um entendimento das crianças “mimadas”, “birrentas” e “mandonas”. Considera este comportamento normal, não patológico, numa certa fase. Mas a partir de certo tempo sua persistência indica que algo não vai bem.

Não sei como o leitor do ramo, que trabalha com a mente de crianças, compreende a birra. Para mim, ficou por duas décadas vagamente colocada como distúrbio de conduta , o que significa em termos de compreensão da mente, rigorosamente nada. Ganharia localização útil e compreensível,se entendida como uma das alterações do desenvolvimento da potência. Mas, o que é mais importante para a prática, é a seguinte constatação: quer sob a forma de crises escandalosas, quer como oposição surda e sistemática, a birra é, na cultura psi, uma patologia menor, quando não é vista apenas como “manha” e “mimo”, acompanhando a cultura popular.E, como tal, permite manejos fáceis, simples e lineares, ( “colocar limites”), aconselhado tanto por leigos quanto por profissionais. ( A irresistível atração exercida pelo conselho óbvio).

Isso não “bate” com minha experiência clínica, que me ensina que a birra é uma patologia maior, porque evidencia a permanências de grandes cisões na mente .Crianças acima de 4 anos que reagem com birra às frustrações razoáveis e realistas, demonstram que estão se organizando de modo defeituoso, um grande aspecto da personalidade, a potência. Porém, muito mais sério é o indicativo da ausência de birra, principalmente da sua ausência no segundo ano,e que tende, no entanto, a passar despercebida…

Para Di Loreto, no desenvolvimento, o bebê dependente do primeiro ano , ao crescer, aprende a falar e andar e correr, e com a potência motora recém-adquirida,aliada ao pensamento mágico caracteristico da fase, está pronto a ganhar o mundo. Crianças entre 2 e 4 anos experimentam a onipotência, como parte do seu processo de crescimento. São hipertímicas, tirânicas, fazem birra, testam os limites.Nesta fase, uma grande questão enfrentada pela criança pequena é o destino a ser dado ao seu medo. Porque algo acontece no processo do crescer: o medo surge e a onipotência se quebra. O que acontece nesse processo depende da sua maturação, do ambiente e da tomada de uma posição mais depressiva, em que começa a tomar conhecimento de sua própria destrutividade e se ocupar do outro, saindo da fase do “tudo ou nada” em direção da construção da auto estima a partir da sua verdadeira potência. A confiança em si mesma e na sua capacidade de reparar , a entrada no Édipo ( momento em que a criança passa a lidar com o sentimento de exclusão e não ser o centro do mundo) são as maiores bases para a auto-estima e a capacidade para lidar com os limites. Quando tudo corre bem a introjeção do limite se dá de pouco em pouco . Mas o que acontece quando as dissociações predominam sobre a direção natural da integração na criança…e as relações de poder, disfarçando uma sensação de impotência , negada, passam a predominar no palco das relações familares? A criança poderosa não consegue dar um bom destino ao seu medo, falha no processo de integração. A birra, saudável num momento do desenvolvimento, passa a ser expressão de um bloqueio do amadurecimento.

a menina durante a convalescença
refinou
tinha ódio ao pão com manteiga
todos estavam a par deste seu ódio
pois em casa da tia Balbina
só aceitava comer pão com manteiga
dizia pão têga
o que já não era próprio da sua idade
acontecia que se recusava a pronunciar
certos sons
está em não dizer man nem ei
murmuravam na sala de visitas da tia Balbina
mas como quem fala de um prodígio
e não como quem diz coitadinha

Para o Di Loreto, neste caso, há

Um narcisismo que, quando assim dissociador, volta-se contra o individuo.

E, como diz a Adilia Lopes, precisamos estar atentos para não deitar a estes indivíduos “um punhado quase mortal de arsênico” disfarçado em pílulas como os antipsicóticos ou as anfetaminas, tão amplamente utilizados e tantas vezes inoperantes nestes casos.

Adultos também fazem birras. Alguns se mantém vivos por meio dos embates que travam com a vida. Esses embates encobrem uma real dificuldade de se adaptar, pensar, abdicar da condição de estar no controle, ter poder sobre o outro.

Para Winnicott ” é no entremeio que talvez resida a coisa mais difícil no desenvolvimento humano, ou talvez a mais penosa de reparar,de todas as falhas iniciais que ocorrem. O que existe no meio…é o fato de o sujeito colocar o objeto fora da sua área de controle onipotente;isto é, o sujeito perceber que o objeto é um fenômeno externo, não uma entidade projetiva, na verdade, o reconhecimento de que o objeto é uma entidade autônoma.” – entenda-se aqui por “objeto” a outra pessoa com quem ele se liga.

Como diz o Drummond, amor é o que se aprende no limite, amor começa

tarde.

Somente a retomada do caminho da integração pode contribuir para o enfraquecimento da relação “dominador-dominado”, preponderante em alguns casos. É difícil:

Gostaria de ser, mas não sou um GRANDE DEUS TERAPEUTA. Também não sou um terapeuta desastrado. Sou comum, mediano, feijão com arroz, bem temperado. Uso fármacos, como terapeutica sintomática, uso psicoterapia, se consigo reter o paciente…Esclarecimentos às familias têm evitado muita via-sacra de médico em médico, de Serviço em Serviço, um mais idealizado que o outro, e cada um mais denegrido que o outro, quando o fracasso terapêutico se evidencia.” ( Di Loreto)

Dedico este post a todos os pacientes com os quais falhei, e com os quais ainda tenho falhado.

O bolo de caneca

Por Odeliz Basile

A memória  guarda o seu passado. O olhar, o sabor, o cheiro, o toque, a cor a alegria e o dissabor vivido na infância de cada um de nós.

Toda criança é criança em qualquer tempo ou lugar do mundo. Cada um a seu jeito tráz na memória suas brincadeiras e brinquedos prediletos.

Quem não se lembra das cantigas de criança como: “Alecrim”, “Ciranda Cirandinha”, “Se essa rua fosse minha”,  “O Cravo brigou com a Rosa”, “ O sapo não lava o pé”, ou então, “ A barata diz que tem”, entre tantas outras canções.

Brincadeiras e brinquedos como boneca, carrinho de rolimãs, luta de espadas, bola, cabelereira, bicicleta, cabra cega , bater figurinha, esconde-esconde e futebol. Ou então, os brinquedos como  escorregador, gira-gira, gangorra, balança , bicicleta e patinete.

Leia mais

Quem foi Victor Guerra

 

Por Carla Braz Metzner

 

O psicanalista Uruguaio Victor Guerra dedicou a sua vida ao estudo, pesquisa e atendimentos clínicos da relação mãe/ bebê, da primeira infância, adolescentes e adultos.

Ele realizou por mais de vinte anos consultas terapêuticas em um jardim da infância inspirado nas contribuições tão importantes de D. Winnicott .
Estava trabalhando na sua tese de doutorado em Paris, sobre o ritmo e os indicadores de intersubjetividade no processo de subjetivação do bebê. Mas seu falecimento precoce interrompeu seu percurso, o seu trabalho e suas contribuições continuam reverberando entre nós.
Sua tese de doutorado será publicada em Paris com um evento em sua homenagem no dia 12/1/2019. Seu trabalho trouxe grande contribuição ao pensamento psicanalítico.
No dia 22 e 23 de junho de 2018 ocorreu uma homenagem para Victor Guerra em Montevidéu. O tema era : o que  nos ensinam os bebês? – Prof psicanalista Victor Guerra.
Neste evento o mais marcante era a transmissão de uma forma, de uma ética psicanalítica  presente no respeito ao outro, aos profissionais  e pacientes.
Na sua disposição de mente para fazer dialogar os autores e as teorias, que como ele dizia ,trazia movimento, ritmo e abertura para ir em busca do sofrimento humano e poder através da arte, da literatura e da poesia encontrar o assombro,  e a capacidade negativa como elucida o escritor john Keats. A Capacidade para viver a incerteza, o não saber, para poder lidar com o lamentável  e o sublime da condição humana, como assinala o escritor Octavio Paz tão apreciado por ele.
Victor foi coordenador da Fepal da área de crianças e adolescentes e foi um dos idealizadores da carta de Cartagena. Nos  trazendo a contribuição de varias associações e sociedades de psicanálise, se posicionando favoráveis ao tratamento psicanalítico do transtorno do espectro autista, reconhecendo toda experiência dos profissionais e produção de conhecimento construído pela psicanálise.
Victor encontrava na poesia sua inspiração para a clínica e para a vida, sua lista de escritores e poetas preferidos é muito grande, mas o escritor Uruguaio Felizberto Hernandez que aparece no fundo desta fotografia do Victor exerceu grande influência. Sua descrição dos personagens humanos, do seu mundo interno e seus dilemas despertaram seu interesse pela psicologia e psicanálise na adolescência, assim como sua experiência de vida com os imigrantes que frequentavam o boliche de seu pai e contavam suas histórias e seus dramas.
Os escritores brasileiros Ferreira Gullar e Manoel de Barros também foram sempre muito citados em seus trabalhos e em sua tese. E para também homenagear Victor neste texto cito um poema de Ferreira Gullar que ele gostava muito.

Despedida
Eu deixarei o mundo com fúria.
Não importa o que aparentemente aconteça,
se docemente me retiro.
De fato,
neste momento estarão de mim arrebentando raízes tão fundas.
Quanto estes céus brasileiros.
Num alarido de gente e ventania
olhos que amei, rostos amigos
tardes e verões vividos
Estarão gritando ao meu ouvido
para que eu fique , para que eu fique.
Não chorarei
Não soluço maior do que despedir-se da vida.
Ferreira Gullar

Algumas reflexões a respeito do elemento feminino puro

Ivonise Fernandes da Motta
Revista de Psicologia da UNESP, 6(1), 2007. 1
Algumas reflexões a respeito do elemento feminino puro                                                                                                        

Resumo: Este artigo tem por objetivo tecer algumas reflexões a respeito do que é
denominado elemento feminino puro na obra do pediatra e psicanalista D. W.
Winnicott. A importância da relação dual mãe-bebê no início da vida como
estruturante do indivíduo e fundamental para o estabelecimento de boas bases para o
desenvolvimento psíquico é discutida e ilustrada através de um caso clínico. Algumas
questões relevantes para a prática clínica psicoterápica são também abordadas através
de algumas reflexões sobre o trabalho clínico com a regressão.
Palavras-Chave: Winnicott, elemento feminino puro, trabalho com regressão,
relação dual mãe-bebê.

 

 

 

Cuidado com as pessoas feridas porque                                                                                                                                                                          
elas sabem que podem sobreviver”.

   (Josephine Hart)                                                                                                                                                                

Oh, pedaço de mim
Oh, metade arrancada de mim
leva o vulto teu
que a saudade é o revés de um parto
a saudade é arrumar o quarto
do filho que já morreu
Oh, pedaço de mim
Oh, metade adorada de mim
lava os olhos meus
que a saudade é o pior castigo
e eu não quero levar comigo
a mortalha do amor
Adeus.
(Chico Buarque de Holanda)

 

Bollas (1992), Khan (1981), Phillips (1988), Safra (1999), Winnicott (1990), dentre
vários autores em psicoterapia psicanalítica, ao colocarem em relevância a importância dos
fatores ambientais desde o início da vida humana, desde a concepção de um feto, ou mesmo
até antes de sua concepção (anseios, expectativas dos pais), nos sublinham a importância do
interjogo entre forças instintivas e o encontro ou desencontro com os outros constitutivos do
entorno de casa ser humano. Nesses outros teríamos que incluir desde os fatores culturais até
as características do tempo, espaço, geografia, história, etc., constitutivos dos outros seres
humanos presentes ao nosso redor.
Winnicott (1990) em vários trabalhos escritos e publicados após sua morte no livro “A
Natureza Humana”, nos quais evidencia que já tinha elaborado uma teoria própria do
psiquismo humano, estruturação e funcionamento, nos alerta para a presença do caos que
estaria incluído nas idéias ou na busca por perfeição.
Não é necessário postular um estado original de caos. Caos é um conceito que traz consigo a
idéia de ordem; a escuridão tampouco está presente no início, já que a escuridão implica na
idéia de luz. No início, antes que cada indivíduo crie o mundo novamente, existe um simples
estado de ser, e uma consciência (awareness) incipiente da continuidade do ser e da
continuidade do existir no tempo. O caos aparece pela primeira vez na história do
desenvolvimento emocional através das interrupções reativas do ser, especialmente quando tais
interrupções são longas demais. O caos é, primeiramente, uma quebra na linha do ser, e a
recuperação ocorre através de uma revivência da continuidade; se a perturbação ultrapassa um
limite possível de ser tolerado, de acordo com as experiências anteriores de continuidade do ser,
ocorre que devido às leis elementares da economia, uma quantidade de caos passa a fazer parte
da constituição do indivíduo. (Winnicott, 1990, p. 157).
Seguindo as idéias de Winnicott, a necessidade por um estado de ordem ou “perfeição”
implicaria na existência, no psiquismo, de um estado de desordem, um estado caótico
resultado de um desencontro da criança com a mãe ou com quem cumpre as funções
parentais. O que diferencia esta maneira de compreender a natureza humana seria o
entendimento de tal fenômeno não como algo instintivo sempre presente nos seres humanos o
que, costumeiramente na literatura psicanalítica denominamos “instinto de morte”, mas sim
como algo que poderia ocorrer em certos indivíduos ou em certas fases vividas pelas pessoas,
conseqüência de invasões desmedidas ou sobrecargas excessivas no que Winnicott denomina
“continuidade do ser”.
A compreensão de tal diferença no entendimento de questões desse tipo nos parece
bastante relevante, principalmente diante de certas situações clínicas, certas situações vividas
com nossos pacientes e que, dependendo do olhar que tivermos, poderá mudar radicalmente o
tipo de tratamento e conduta a ser seguida.

Exemplo Clínico
M., uma mulher de aproximadamente 35 anos, procurou atendimento psicoterápico
mobilizada por uma série de situações familiares bastante difíceis. Doenças graves e de longa
duração a rodeavam, colocando-a à frente de decisões e vivências muito complexas. Sua
família de origem não apresentava condições de dar-lhe suporte ou apoio adequados diante de
tais dificuldades. M. vinha de uma psicoterapia que, segundo sua perspectiva, estava trazendo
mais confusão e peso do que ajuda ou soluções.

Começamos a trabalhar focalizando, num primeiro plano, as questões mais
emergenciais ou urgentes e, pouco a pouco, pudemos aprofundar as questões mais encobertas
ou submersas e desvendar muitos aspectos de sua estruturação, funcionamento,
desenvolvimento psíquico. Olhar muitas de suas vivências poderia facilmente levar a
conclusões da presença de atitudes suicidas ou de tendências masoquistas pronunciadas.
Envolvimentos amorosos ou ligações com pessoas que poderiam induzir esse tipo de dedução.
Mas, ao mesmo tempo, haviam escolhas muito adequadas e relacionamentos com “boa”
qualidade.
Apesar das inúmeras supervisões desse caso ou discussão com colegas nos quais esses
aspectos foram abordados, resolvi desde o início deixar-me guiar por minhas próprias
vivências transferenciais e contratransferenciais. Seguindo essa direção, essas conclusões
pareciam superficiais e insatisfatórias. Algo mais teria que ser trazido à revelação, e mesmo,
às vezes, surgindo a aparência da possibilidade de que ela estaria “à beira do abismo”, nunca
houve preocupação de minha parte de que isso ocorreria. Segundo a conceituação de
Winnicott (1954/1978), o diagnóstico psicológico que pude realizar no início de seu
tratamento foi o de que ela pertenceria ao grupo um, ou seja, ao grupo de pacientes que
operam como pessoas totais e cujas dificuldades estão na alçada das relações interpessoais.
Dizendo de outra maneira, ela pertenceria ao grupo de pacientes denominados “normais” ou
“neuróticos”.
Uma década se passou desde então, e trouxe a confirmação de que meu olhar e sentir
estavam corretos ou, poderíamos dizer de maneira melhor, mais próximos de sua realidade
psíquica. M. enfrentou as várias dificuldades ou pedras do caminho. Foram muitas e
pesadíssimas, e à medida que foi caminhando, pode ir trabalhando com profundidade suas
angústias, das mais primitivas e arcaicas até as mais evoluídas, com a mesma determinação e
contato presentes.
Suas decisões foram se tornando gradativamente mais firmes, da mesma maneira que
seus limites, trazendo organização a situações com aparência “caótica”. E mesmo diante de
inevitáveis perdas importantes, mostrou força e enfrentamento característicos de “vida”,
muito mais do que se poderia denominar “morte”. Aspectos esses que denominamos
usualmente como “regressivos” adquiriram significância em fases de sua vida e de seu
tratamento nas quais as sobrecargas psíquicas tornaram-se pesadíssimas. Tais aspectos não se
confirmaram como determinantes de sua estruturação e funcionamento psíquico.
Minha avaliação diagnóstica feita desde o início, que ali haveria um “bom terreno” e de
que valeria o trabalho, foi confirmada. Situações ambientais e circunstanciais trouxeram
sobrecarga tão intensa que o desastre poderia ocorrer ou ter ocorrido, mas, felizmente, sua
“maneira de ser” havia escolhido outro caminho, eu diria, desde que era uma criança, desde o
começo de seu viver, desde as etapas mais primitivas de seu desenvolvimento.
Quando iniciamos o trabalho psicoterápico, M. vivia situações reais de muita
sobrecarga. Os pesos excessivos existiam nos vários níveis do viver. O marido apresentava
doença neurológica degenerativa grave, havendo repercussões das mais severas e que
gradualmente foram se agravando, o que era esperado segundo o diagnóstico que ele tinha.
Isso resultou em que M. teve de gradativamente assumir todas as responsabilidades
familiares, inclusive a sustentação econômica do lar. Decisões difíceis tiveram que ser
tomadas: internação do marido em instituição especializada quando o quadro degenerativo
estava avançado, para que ele pudesse ter os cuidados necessários à melhor qualidade de
sobrevivência possível naquele período. E é também nessa época que algo inesperado e, eu
diria, “bombástico” acontece quando é confirmado o mesmo diagnóstico em sua filha, uma
adolescente. Outra situação semelhante a do marido começava a ocorrer com sua única filha e

cujos caminhos de sofrimentos, limitações e perdas M. já bem conhecia há no mínimo uma
década.
À medida que nosso trabalho prosseguiu e ela foi mantendo contato psíquico com todas
essas vivências, quer em seu mundo interno, quer na realidade externa, com as múltiplas
dificuldades que teve de enfrentar, as melhoras foram surgindo. O que poderíamos chamar de
“defesas maníacas”, ou seja, defesas psíquicas para evitar a dor decorrente da depressão, a dor
decorrente das perdas sucessivas e graduais que vivia, essas defesas maníacas, até necessárias
em certas fases vividas por M., puderam ser abandonadas por outros tipos de defesas
psíquicas mais integradoras, conforme a fase vivenciada pela paciente.
No início do tratamento, a busca de “soluções mágicas”, semelhante a busca do
encontro da possibilidade de uma ‘cura milagrosa” para a doença do marido ou da filha, foi
gradativamente substituída por um contato maior com as perdas sucessivas vividas, um
contato maior com a depressão.
Winnicott (1963/1989), em seus escritos, valoriza a depressão como um sinal de saúde.
Diferencia dos estados psicopatológicos, dizendo da depressão saudável como semelhante a
estados de tristeza associados a sentimentos de perda e culpa. A existência da capacidade de
conter sentimentos depressivos, sentimentos de culpa é indicação que a pessoa atingiu um
estado de integração, um estado unitário de self, atingiu a capacidade para preocupação.
Quando eu era estudante de medicina, aprendi que a depressão traz dentro de si mesma o
germe da recuperação. Esse é um ponto brilhante na psicopatologia, e vincula a depressão ao
sentimento de culpa (a capacidade para sentir culpa é um sinal de desenvolvimento saudável) ao
processo de luto. O luto também tende a terminar seu trabalho. A tendência que trazem
embutida para a recuperação, vincula a depressão igualmente ao processo maturacional da
infância de cada indivíduo, um processo que (em ambientes facilitadores) conduz à maturidade
pessoal, que significa saúde”. (Winnicott, 1963/1989, p. 55-56).
O que eu chamaria de caos foi gradativamente substituído por um viver mais “estável”
ou “tranqüilo”, diante das perturbações inevitáveis que enfrentava em seu dia-a-dia. Ou seja,
em um tipo de situação desse tipo, perfeição é algo totalmente impossível de ser vivenciado, o
usual seria um vivenciar pontilhado de emergências e imprevistos que teriam que ser, foram e
são vividos.
Buscar uma “ilha paradisíaca” ou fugir do sofrimento através de “condutas maníacas”
ou possíveis “desvios mágicos” (promessas de curas milagrosas) apenas acentuaram o caos, a
perturbação, a turbulência. À medida que um maior contato psíquico foi sendo conseguido,
apesar das constatações difíceis visualizadas passo a passo, certo estado de ordem, de
organização foi sendo estabelecido e gradativamente fortalecido.
Passado mais de uma década do início da psicoterapia, a hipótese inicial foi confirmada:
o solo era “bom”, precisava tratamento “adequado”. Quando do encontro com os cuidados
pertinentes a sua situação psíquica, seu caminhar foi ganhando desenvoltura, firmeza,
enfrentamento e superação das difíceis situações “reais” de sua vida, revelando trabalho
similar quanto às suas vivências internas.
Utilizando mais uma vez as palavras de Winnicott (1990)a respeito do caos: “O caos
aparece pela primeira vez na história do desenvolvimento emocional através das interrupções
reativas do ser, especialmente quando tais interrupções são longas demais” (p. 157).
Quando encontrei M., já fazia mais de uma década que ela convivia com a doença
degenerativa do marido, e, portanto, ao escrever esse artigo mais de 20 anos,
aproximadamente 25 anos, foram vividos com tons e características de “caos”, por vezes de
maior ou menor intensidade. Indubitavelmente foram, e são, interrupções de um viver
“normal” ou “comum” por um período demasiadamente longo.
Discussão do Caso Clínico
Levar em consideração o ambiente na constituição e estruturação psíquicas
fundamentais do ser humano é vislumbrar a importância do fator dependência característico
do início de todos os seres humanos: dependência a uma mulher (mãe), dependência aos
outros componentes da família, dependência dos valores culturais da época, dependência das
normas correntes de medicina da época (pediatria, puericultura, etc.).
Valorizar os primeiros anos de vida e, em especial, os primeiros meses de vida como
constitutivos de bases confiáveis ou não para o que costumeiramente chamamos Saúde, é
tocar em questões como dependência, dos mais variáveis tipos possíveis, semelhantes aos
descritos acima, no parágrafo anterior.
A primeira mamada teórica é representada na vida real pela soma das experiências iniciais de
muitas mamadas. Após a primeira mamada teórica, o bebê começa a ter material com o qual
criar. É possível dizer que aos poucos o bebê se torna capaz de alucinar o mamilo no momento
em que e mãe está pronta para oferecê-lo. As memórias são construídas a partir de inúmeras
impressões sensoriais, associadas à atividade de amamentação e ao encontro do objeto. No
decorrer do tempo surge um estado no qual o bebê sente confiança em que o objeto de desejo
pode ser encontrado, e isto significa que o bebê gradualmente passa a tolerar a ausência do
objeto. Desta forma inicia-se no bebê a concepção da realidade externa, um lugar de onde os
objetos aparecem e no qual desaparecem. Através da magia do desejo, podemos dizer que o
bebê tem a ilusão de possuir uma força criativa mágica, e a onipotência existe como um fato,
através da sensível adaptação da mãe. O reconhecimento gradual que o bebê faz da ausência de
um controle mágico sobre a realidade externa tem como base a onipotência inicial transformada
em fato pela técnica adaptativa da mãe. (Winnicott, 1990, p.126).
A importância da adaptação da mãe, facilitada pelo estado de “preocupação materna
primária”, característico dos fenômenos regressivos típicos da gravidez, e conseqüente
aumento de contato da mãe com o bebê teceria a fusão, a ilusão necessárias e imprescindíveis
a esses estados iniciais.
Utilizamos o conceito “preocupação materna primária”, seguindo a definição de Abram:
A mulher grávida sadia transforma-se em mentalmente “enferma” pouco antes de dar à luz e
algumas semanas após o parto. Esse estado único é denominado por Winnicott de “preocupação
materna primária”. A saúde psicológica e física do bebê, de acordo com sua tese, está na
dependência de a mãe ser capaz de ingressar e sair desse estado tão especial de ser. (Abram,
2000, p. 183).
A presença de experiências de contato “suficientemente bom” e ilusão marcariam
constância e estabilidade, como qualidades desses meses iniciais em contraposição a
vivências de invasões, rupturas, ausências por demais prolongadas da figura materna, que
poderiam deixar marcas de vivências disruptivas ou de caos. Marcas de vivências de quebras
nas sensações e vivências de continuidade do ser.
As conceituações dessa ordem feitas por Khan (1981, 1983), Milner (1929, 1991),
Winnicott (1975, 1978, 1989, 1990), dentre vários autores que valorizam a participação do
ambiente no desenvolvimento psíquico, em relação à criatividade primária ou ao elemento

feminino puro ou masculino puro, presentes em homens e mulheres, abriu caminhos para

inúmeras pesquisas sobre esses aspectos básicos do início.
Jan Abram (2000), em seu dicionário das palavras e expressões utilizadas por
Winnicott, ao abordar as questões sobre a criatividade, escreve:
A teoria da criatividade de Winnicott apresenta certas divergências em relação às de Freud e
Melanie Klein. Nela as raízes da criatividade situam-se nos primórdios da vida e no centro da
relação mãe-bebê. De uma forma bastante resumida, segundo Freud, a criatividade do adulto
está vinculada a sua teoria da sublimação. Já para Melanie Klein, a criatividade associa-se a
aspectos reparadores inerentes à posição depressiva (que se estabelece algumas semanas ou
meses após o nascimento). (p.84).
Para Winnicott, estaria presente desde o início nos seres humanos, algo semelhante a
uma tendência em buscar contato, comunicação, encontro, com as condições necessárias para
um desenvolvimento psíquico favorável. Nesse começo, o encontro com um estado de fusão
com a mãe estabelece bases primordiais para o que denominamos o sentido de continuidade
de ser.
Nessa perspectiva, o bebê e a mãe são um único ser. Essa é a vivência imprescindível
para o estabelecimento de bases estáveis para a estruturação e desenvolvimento psíquicos.
Para o desenvolvimento de um viver criativo, e o sentimento que a vida é real, e que tem valor
apesar das adversidades inevitáveis ao longo de qualquer existência humana.
Ao ter essa vivência de fusão com a mãe, na qual o bebê sente que é a mãe, com todas
as qualidades e atributos pertencentes à figura materna, fenômenos descritos como inveja e
voracidade diminuem sua presença e intensidade na medida em que o bebê é possuidor de
tudo que a mãe tem.
Nessa ótica, o que na literatura psicanalítica é denominado de “instinto de morte”, seria a
constatação do desencontro de situações favoráveis ao estabelecimento dessas vivências
iniciais e fundamentais de fusão, ilusão, magia, onipotência, etc. E por isso mesmo, pela
ausência dessas condições iniciais favoráveis, apareceria a busca da perfeição.
A idéia de um tempo maravilhoso no útero (o sentimento oceânico, etc.) é uma organização
complexa de negação da dependência. Qualquer prazer sentido numa regressão faz parte da
idéia de um ambiente perfeito, e contra esta idéia pesa sempre uma outra, tão real para a criança
ou o adulto regredidos quanto a primeira, de um ambiente tão ruim, que não haveria nele
qualquer esperança para uma existência pessoal. (Winnicott, 1990, p. 180).
O elemento feminino puro presente em homens e mulheres, segundo a conceituação de
Winnicott, estaria baseado nesse estado inicial de fusão com a mãe. A dependência inicial
absoluta, o bebê e a mãe fundidos, seria a identificação primária sustentadora e precursora das
possibilidades futuras de um favorável desenvolvimento psíquico. Nesse estágio, a
dependência não seria sentida como tal, já que o bebê vive um estado de tamanha fusão e
completude com a mãe, que a dependência não seria percebida.

Essas considerações me envolveram, portanto, numa afirmação singular sobre os aspectos
masculinos e femininos puros do bebê masculino ou feminino. Cheguei a uma posição em que
posso afirmar que a relação de objeto em termos desse elemento feminino puro nada tem a ver
com impulso (ou instinto)…O estudo do elemento feminino, puro, destilado e não-contaminado,
nos conduz ao SER, e constitui a única base para a auto-descoberta e para o sentimento de
existir (e, depois, à capacidade de desenvolver um interior, de ser um continente, de ter a
capacidade de utilizar os mecanismos de projeção e introjeção e relacionar-se com o mundo em
termos da introjeção e da projeção). (Winnicott, 1975, p. 117)

Sob essas bases e onipotência vivenciadas pelo bebê com a mãe, a criança irá
gradativamente aceitando as desilusões inevitáveis do processo de crescimento e
amadurecimento.
A mãe, através da identificação e empatia com o bebê, irá apresentando “o mundo em
pequenas doses”, ponto que trará as desilusões necessárias ao bom desenvolvimento, de
maneira a serem integradas pelo bebê como avanços ou conquistas e não como invasões ou
rupturas desmedidas. Da mesma maneira, em pequenas doses, o psicoterapeuta irá
gradativamente facilitar o aumento do contato psíquico do paciente, tanto com o seu mundo
intrapsíquico, quanto com os mais diversificados aspectos de seu ambiente.
Nesse contexto, saúde estaria inexoravelmente ligada a viver determinadas etapas no
tempo certo. Nesse início, portanto, saúde estaria relacionada sempre à fusão e dependência
quase que absoluta ou total. Prematuridade ou prolongamentos demasiados longos de certas
fases estariam relacionados a perigos ou possibilidades de entraves ou sobrecargas ao
desenvolvimento favorável.

O Trabalho com Regressão
Sabemos que qualquer tratamento psicanalítico irá trabalhar com regressão, quer em
doses mínimas, quer em doses mais acentuadas, dependendo da situação psíquica do paciente,
quer em seus aspectos e características internos, quer em suas vivências e acontecimentos
com a realidade externa, com aspectos vivenciais, ambientais e por vezes circunstanciais.
Crises menores ou mais severas adentram o viver humano nas mais diferentes etapas e idades.
Nesse contexto, o que Winnicott (1975) denomina elemento feminino puro seria um
aspecto básico por conter os elementos essenciais da confiança e segurança nos vínculos, nos
próprios objetos internos, nas memórias e vivências mais primitivas da existência humana.
Em sendo necessária a regressão para esses estados iniciais, as vivências satisfatórias de fusão
com a mãe constituirão a base indispensável para qualquer trabalho psíquico a ser
desenvolvido.
Uma das inovações mais importantes trazidas por Winnicott (1990) foi a das
possibilidades do uso e trabalho com regressão nos mais diferentes quadros psicopatológicos,
desde os mais regredidos até os pacientes ditos “normais” ou “neuróticos”. A utilização e
manejo de vivências regressivas, segundo esse autor, podem ser vitais para os avanços,
melhorias e possibilidades de mudanças psíquicas.
A regressão, no entanto, tem uma qualidade curativa, pois é possível reformular experiências
precoces através da regressão, havendo algo de verdadeiramente repousante quando se
experimenta e se reconhece a dependência. O retorno da regressão depende da reconquista da
independência, e se isto é bem trabalhado pelo terapeuta, a conseqüência é que a pessoa se
encontrará numa situação melhor do que antes do episódio. Tudo isto depende obviamente da
existência da capacidade de confiar, tanto quanto da capacidade do terapeuta de fazer jus à
confiança. E é possível que ocorra uma longa fase preliminar do tratamento consistindo
exatamente na construção dessa confiança. Na regressão ocorrida dentro de um processo
terapêutico o paciente (de qualquer idade) deve revelar-se capaz de em algum momento
alcançar uma não-consciência do cuidado ambiental e da dependência, o que significa que o
terapeuta está dando uma adaptação suficientemente boa à necessidade. Vemos aqui um estado
de narcisismo primário, que deve ser alcançado em algum momento do tratamento. (Winnicott,
1990, pp. 163-164)

Bollas (1992), ao escrever sobre o trabalho com a regressão em pacientes bastante
perturbados ou em pacientes neuróticos ou normais, reafirma a importância do acesso, uso e
integração de aspectos primitivos ou arcaicos do self, tanto do paciente quanto do analista ou
psicoterapeuta.
Se um analista é bem analisado e tem confiança no funcionamento do seu próprio ego e
relações objetais, penso então ser muito mais provável que ele tenha a capacidade necessária
para uma regressão contratransferencial produtiva durante a sessão. Sabemos que o espaço e o
processo analítico facilitam os elementos regressivos no analista, como também no paciente, e
assim, se cada analista trabalhar a favor e não contra a contratransferência deverá estar
preparado para ficar doente de vez em quando e em determinadas circunstâncias. Sua
receptividade para o reviver da transferência do paciente significará, certamente, que a
representação que este faz de porções perturbadas da mãe, do pai ou do self do infante será
vivenciada no uso transferencial do analista (Bollas, 1992, p. 249)
O caminho percorrido por M. confirmou esses rumos traçados anteriormente: a pesquisa
inicial pela possibilidade de confiança e, quando esta foi adquirida, as vivências necessárias
de dependência que toda sua situação real e psíquica requisitava.
Nos anos iniciais do tratamento a dependência adquiriu grande importância e seu
manejo foi fundamental para o trabalho realizado, envolvendo inclusive questões básicas
sobre setting: aumento do número de sessões, sessões extras, cuidados e medidas diferenciais
em períodos de férias, etc.
Nas fases de regressão, o que denominamos usualmente “neutralidade” do analista, cede
lugar ao que poderíamos chamar o surgimento da pessoa real do psicoterapeuta. O
psicoterapeuta tendo que se colocar no lugar de uma mãe suficientemente boa que consegue
se adaptar às necessidades do paciente, que estando regredido, necessita de cuidados
especiais. O paciente necessita que o psicoterapeuta desempenhe algumas funções egóicas
que, em outros períodos ou fases, ele consegue coordenar até com relativa facilidade.
Durante certo período do tratamento com M. isso ocorreu, quando pude constatar a
importância de compartilhar certas decisões, semelhante à de internar o marido em uma
instituição especializada, quando a degeneração neurológica indicava ser esse o melhor
caminho a tomar, aliado ao trabalho com conflitos e angústias que isso acarretava. Da mesma
maneira, tantas outras decisões nas quais muitas vezes pude intervir ou participar que se
referiam aos tratamentos mais adequados para a filha, adaptações sucessivas e gradativas
quanto às restrições que ela própria e a filha tiveram que enfrentar.
Para dar mais um exemplo do que estou denominando nesse artigo por trabalho com
regressão, requisitando adaptação do psicoterapeuta às condições psíquicas momentâneas do
paciente, poderia citar um fato ocorrido numa determinada noite após uma sessão extra com
M., marcada pelas pesadas pressões vividas por ela na época. Ao sair do consultório percebi
que M. caminhava pela rua indo em direção a sua casa. Eu estava de carro, parei e lhe ofereci
a possibilidade de levá-la até onde morava (relativamente perto de meu consultório e de
minha residência). Procedi dessa maneira porque me preocupava com sua fragilidade, e se ela
seria capaz de se proteger adequadamente na situação psíquica que se encontrava. Através
desse caso, e vários outros nos quais manejos e adaptações foram necessários porque o
paciente estava regredido, pude confirmar a importância desse tipo de mudança de setting, no
que tange ao aumento de confiança por parte do paciente em relação ao psicoterapeuta. O
paciente ao sentir que pode contar com um psicoterapeuta suficientemente bom que,
semelhante a uma mãe suficientemente boa, pode se adaptar ao filho, aumenta os laços de
confiança surgindo a possibilidade de trabalhar aspectos profundos e primitivos do psiquismo.

Ao escrever sobre esse tema, Margaret Little (1992), psicanalista e paciente de D. W.
Winnicott, que pôde vivenciar um tratamento com base na regressão diz:
A regressão para a dependência é um “processo de cura” (Winnicott, 1954 b) originado não
no analista, mas naquela parte do analisando, seu “verdadeiro self” (Winnicott, 1949 a, 1960 b),
que ainda pode esperar uma reversão do fracasso original, encontrando no analista uma
adaptação suficiente para as suas necessidades. É preciso haver um “tratamento” em vez de uma
“técnica”; e um comportamento intuitivo, não interpretação verbal. Mas isso não é fácil, porque
envolve o analisando em uma volta assustadora ao primeiro estágio não integrado. Há o risco de
aniquilação repetida pelos estímulos aos quais ele tem de reagir fisicamente (reflexo de choque),
e com uma integração forçada, contra os quais ele não tem defesas e não pode compreender; de
deixarem-no cair quando ele está indefeso, não havendo limites ou controle.
O analista tem de ser capaz de renunciar às suas defesas contra a mesma ansiedade, o medo
de aniquilação, da perda de identidade, tanto por si mesmo como pelo paciente. Ao mesmo
tempo, sua própria identidade deve permanecer distinta e seu sentido de realidade inalterado,
mantendo a consciência em dois níveis extremos, o da realidade e o da ilusão. Ele está na
posição de uma mãe vis-à-vis o filho, mas onde nem ele nem o paciente estão de fato nessa
situação. Isso exige as mesmas qualidades de “mãe suficientemente boa” (Winnicott, 1952 b),
empatia com a criança (Winnicott, 1960 a) e capacidade de considerá-la uma pessoa separada.
Não contar com a ‘atitude profissional” para aceitar um “relacionamento direto” com o paciente
como distinto da imagem do espelho, e lembrar-se de que a sexualidade não tem qualquer
sentido aqui; unir-se fisicamente a ele aceitando a ilusão de unidade; tolerar o ódio do paciente
sem revidar quando os traumas originais são revividos (Winnicott, 1947, 1960 c) e suportar as
suas próprias emoções quando elas são despertadas” (p.88).
À medida que o trabalho foi prosseguindo, mesmo em fases em que as circunstâncias
externas de M. tornavam-se bastante adversas, o trabalho com os aspectos regressivos foi
satisfatório, possibilitando a volta gradativa a um viver, pouco a pouco, com características de
maior independência. Independência que foi ganhando tamanho e firmeza ao longo do
tratamento desenvolvido, ao longo dos anos percorridos.
No caminho de retorno, o paciente precisa que o terapeuta exerça duas funções – a pior
função que se pode imaginar em todos os aspectos, e a melhor de todas – ou seja, a função da
figura materna idealizada engajada em cuidar com perfeição de seu bebê. O reconhecimento do
terapeuta idealizado e muito mau caminha passo a passo com o gradual aceitação, por parte do
paciente, do bem e do mal existentes no self, da desesperança ao mesmo tempo que da
esperança, daquilo que é real e daquilo que não é, ou seja, de todos os extremos contrastantes.
Ao final, se tudo vai bem, há uma pessoa que é humana e imperfeita relacionando-se com um
terapeuta que é imperfeito, no sentido de não desejar agir perfeitamente apenas para além de um
certo nível, e para além de um certo período de tempo. (Winnicott, 1990, p. 164).

Considerações Finais
O trabalho clínico vivenciado no dia-a-dia com nossos pacientes nos colocam inúmeras
questões além das que mencionamos nas páginas anteriores.
Qual é o estado do indivíduo humano quando o ser emerge do interior do não-ser? Onde fica
a base da natureza humana em termos do desenvolvimento individual? Qual o estado
fundamental ao qual todo ser humano, não importa a sua idade ou experiência pessoais, teria
que retornar se desejasse começar tudo de novo?
A proposição de uma condição deste tipo envolve um paradoxo. No princípio há uma solidão
essencial. Ao mesmo tempo, tal solidão somente pode existir em condições de dependência
máxima. Aqui, neste início, a continuidade do ser do novo indivíduo é destituída de qualquer
conhecimento sobre a existência do ambiente e do amor nele contido, sendo este o nome que
damos (nesse estágio) à adaptação ativa de uma espécie e dimensões tais, que a continuidade do
ser não é perturbada por reações contra a intrusão. (Winnicott, 1990, pp. 153-154)
Para Winnicott o ser emerge da solidão, desse estado inicial de fusão do bebê com a
mãe, de dependência suficientemente boa. A solidão estando intrinsecamente ligada à
dependência e confiança, muito antes que o bebê possa ter alguma percepção destas. Se as
experiências iniciais de fusão com a mãe são suficientemente boas, a confiança nos vínculos,
no viver, na própria criatividade é estabelecida e fortalecida gradualmente ao longo dos dias,
meses e primeiros anos de vida. A presença da confiança estabelecida nesse início dá boas
bases para o interjogo entre ilusão e desilusão. Desilusões características e gradativas do
processo de separação e individuação mãe-bebê, e se bem dosadas levariam ao
amadurecimento, às integrações sucessivas e graduais do self. Essa é a base da capacidade de
ficar só, que surgirá mais tarde no desenvolvimento resultante destes estágios primordiais de
confiança e dependência absolutas. É também dessa raiz que surge a presença de condições
satisfatórias para que a pessoa possa fornecer bons cuidados para consigo própria ao longo de
toda sua existência.
Nesse interjogo de forças, a presença da confiança garante a ilusão guiando para doses
gradativas de desilusão. Desilusão, que se bem dosada, nos levaria a possibilidades de
desdobramentos sucessivos na linha de constituição de uma estrutura psíquica caracterizada
por riqueza interna. Riqueza interna no sentido do que Winnicott denomina “verdadeiro self”.
O termo “verdadeiro self” é revestido dos significados que o conceito representa: identidade
própria, contornos firmemente estabelecidos, tons e matizes individuais em termos de ser e
existir, etc.
Ao iniciar o trabalho com M., estavam presentes boas condições psíquicas, que
poderíamos pressupor, advinham desses estágios iniciais de dependência nos quais
experiências favoráveis puderam ser internalizadas. M. apresentava seus pais e familiares
revestidos de muitas características essencialmente narcísicas, que poderíamos qualificar de
mais “infantilizadas”, e por isso mesmo sem condições de prestar-lhe auxílio diante das
dificuldades que enfrentava. Porém, havia um bom solo, um bom lugar para que o trabalho
que se seguiu fosse desenvolvido.
Em toda análise a longo prazo, o paciente quer saber quem eu sou, e geralmente não
consegue dizer o que tal frase significa. Pois se o que ele ou ela deseja são informações
pessoais, fatos sobre minha vida pessoal e formação educacional, essa não é a questão mais
profunda. Eu acredito que eles diriam isto se pudessem: quero saber algo tem a ver com o
Verdadeiro Self, se não for idêntico a ele. O único jeito de conseguirem um pouco disso é, antes
de mais nada, passando um período de tempo comigo, durante o qual nós passássemos por
muitos estados de humor dentro das regularidades do setting analítico. O que eles eventualmente
ficam sabendo é algo sobre mim, inadvertidamente expresso através da disciplina da

anonimidade, dentro da qual eu focalizo minha atenção e a capacidade de reflexão deles. O que
eles aprendem é que eu não sou uma das figuras de transferência que eles regularmente
percebem, mas ao invés disso, uma estranha e nova figura que eles nunca encontraram antes.
Essa estranheza pode ser um eco da estranheza original de seus próprios pais, a quem eles
conhecem apenas em parte e, ás vezes, a um grau mínimo. Pode-se viver uma longa vida e mal
conhecer os pais, eu quero dizer, compreender as dimensões subjetivas da experiência de vida
de seus pais. Isso leva ao assunto do valor de conhecer alguém, o que está próximo às limitações
narcísicas do conhecimento subjetivo. (Rodman, 1999, pp. 68-69)
Mesmo estando vivendo ainda grandes limitações que circunstâncias de sua vida
presentificam (filha com doença neurológica degenerativa em estado avançado), M. pode
reconstituir, resgatar um viver com melhor qualidade nos vários diferentes setores (trabalho,
cuidados com saúde, amizades, envolvimento amoroso, etc.).
Sem dúvida alguma, foi um árduo e grande trabalho realizado graças tanto às suas boas
condições psíquicas presentes anteriormente ao início da psicoterapia, quanto a sua
determinação e coragem em se adentrar e enfrentar as várias dificuldades vividas, as várias e
pesadas pedras do caminho. Através do atendimento do caso de M. tive a possibilidade de
questionar e de confirmar vários aspectos do que denominamos trabalho com regressão,
incluindo-se a dependência e seu manejo. E apesar das pesadas dificuldades que
compartilhamos, eu diria que, tanto ela quanto eu, pudemos não só aprender, mas também
enriquecer com os vários passos percorridos.
E, para concluir, caberia usar algumas palavras escritas por Winnicott ao dizer:
Se o desenvolvimento transcorre favoravelmente, o indivíduo torna-se capaz de enganar,
mentir, negociar, aceitar o conflito como um fato, e abandonar as idéias extremas da perfeição e
do seu oposto, que tornam a existência intolerável. O compromisso não é uma característica dos
insanos. O homem maduro nem é tão bonzinho nem tão desprezível quanto o imaturo. A água
no copo é barrenta, mas não é barro. (Winnicott, 1990, p. 160)

Motta, I. F. (2007). Some reflections about the pure feminine element. Revista de
Psicologia da UNESP, 6(1), 1-12.
Abstract: The target of this article is to make some considerations on the so called pure
feminine element in the works of D. W. Winnicott, pediatrician and psychoanalyst. The
importance of the dual mother-baby relationship in the beginning of life, as individual
structuring and a fundamental in the establishment of good basis for the psychological
development, is illustrated and analyzed through a clinical case. Some relevant questions
concerning the psychotherapeutic clinical pratice are also approached through some
considerations on the clinical work with regression.
Keywords: Winnicott; pure feminine element; work with regression; dual mother-baby
relationship

Referências
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Winnicott, D. W. (1989). Tudo começa em Casa. São Paulo: Martins Fontes.
Winnicott, D. W. (1990). Natureza Humana. Rio de Janeiro: Imago.

 

 

As Aventuras do Avião Vermelho: Um Sonho de Potência e Reparação

Foto da copa do livro  de Erico Verissimo editada pela Companhia das letrinhas- Ilustrações de Eva Furnari

Artigo publicado e apresentado no II Colóquio de Psicanálise com Crianças  realizado no instituto Sedes Sapientiae em  10 e 11 outubro de 2014
Onde está o pai? Desafios da atualidade na clínica com Crianças
As Aventuras do Avião Vermelho: Um Sonho de Potência e Reparação 
Por Arianne Monteiro Melo Angelelli

Resumo – Por meio de uma análise do texto de Erico Veríssimo, mergulhamos nas fantasias inconscientes de uma criança cujo comportamento é agitado e desafiador. O pai deste menino o presenteia com um livro na tentativa de auxilia-lo em suas dificuldades, e através da vivência de um sonho com os elementos da história, a persecutoriedade e voracidade desta criança encontram um canal para a simbolização. A hiperatividade nas crianças é um sintoma pouco específico e somente a observação aprofundada pode auxiliar na compreensão das raízes do comportamento; sendo possível que a agitação configure defesa contra ansiedades depressivas decorrentes de dificuldades iniciais da vida. O pai, mais do que aquele que introduz a “lei” e insere a criança na triangulação edípica, também pode ser aquele que fornece o holding necessário para o desenvolvimento. Palavras-chave: hiperatividade, voracidade, holding, pai

Como dizia Freud, “é muito difícil formar uma opinião sobre se, e em que grau, os homens de épocas anteriores se sentiram mais felizes»(1), e isso é verdadeiro quando pensamos sobre as crianças de hoje. Fala-se muito sobre o declínio do poder paterno (2), e o afrouxamento nos laços humanos, nestes nossos tempos líquidos (3) : a família em crise. Mas quando recebemos um certo tipo de crianças, aquelas agitadas, hiperativas, sem limites, as dicotomias que separam o paterno e materno, a mente e o cérebro, não parecem trazer ajuda. O que está mesmo acontecendo com as crianças da pós-modernidade? Estão sem Pai, são porta vozes de doença social e familiar, da falta de limites generalizada, do furo do pacto edípico (4)? Ou estão sem Mãe, na medida em que seu comportamento disfuncional expressa deprivações, perdas precoces? Seriam estas crianças: neurologicamente deficitárias, incapazes da atenção sem ajuda de medicamentos ou ansiosas e deprimidas, encontrando na agitação equivalentes maníacos de defesa? Na aparente desorganização familiar atual, em que antigos papéis se intercambiam, há muita instabilidade, mas a chance de trazer o pai para mais perto, com suas valências femininas e masculinas, pode ser um dos ganhos dos novos tempos. A proposta deste trabalho é uma leitura reflexiva sobre um conto de Érico Veríssimo, “ As Aventuras do Avião Vermelho”(5). Uma criança com problemas de comportamento ganha do pai um livro e um brinquedo que a ajudam a elaborar uma rica fantasia onde ansiedades são elaboradas. O conto pode ser dividido em três partes. Na primeira, o pai interage com o filho e apresenta a ele os objetos de que fará uso na sua fantasia, ou sonho; um livro de histórias, um avião de brinquedo e uma lupa de diminuir, usada para que o menino possa encolher, entrar dentro do avião e partir em viagem. Na segunda parte, ocorre a aventura: o menino e dois companheiros, voando no avião de brinquedo, pousam na lua feita de gelo, e a seguir iniciam uma série de viagens, perseguições e fugas: permeadas pela ameaça constante de serem devorados: pela cobra, pelo porco e pelos canibais que encontram pelo caminho. Na terceira parte, dois acidentes: o avião cai no mar e logo depois cai de novo por causa de uma ventania, sofrendo um tombo “horrível” (o nascimento?) quando passa pela chaminé e desperta no escritório do pai, onde precisa crescer novamente. Vejamos o que nos diz a história: “ Chamava-se Fernando. Era um menino muito gordo. Gordo e travesso. Travesso e brigão. Um dia papai viu Fernando sentado num canto da varanda e perguntou: “ Meu filho, por que é que tu és tão travesso, brigão, malcriado? “ – Porque sou valente!” – rosnou como um leão que está começando a ficar zangado.” Compreendendo quanto de tormenta e medo existe na valentia de Fernando, o pai escolhe o livro certo, a história do “Capitão Tormenta” , e presenteia o menino, expressando seu desejo de que haja uma mudança no filho. O herói, com quem Fernando se identifica imediatamente, é aviador e viaja pelo mundo enfrentando todo o tipo de perigos. Então o menino pede ao pai também um avião, e ganha o aviãozinho de brinquedo. Ao trazer para o filho a escuta, a compreensão, livro e brinquedo, o pai exerce uma função dupla. Ele é aquele que traz a palavra, o limite. Mas também fornece holding e apresenta ao menino o objeto que será de uso transicional, senão vejamos: Fernando, com o avião, “ foi para o quarto e começou a brincar. brincou muito tempo”. O pai também nomeia a “Tormenta” que é o filho: tormenta em casa, a fazer estripulias, tormenta que agita o ambiente, como uma tempestade, e mais além, criança atormentada, amedrontada, que se diz valente (6). E a interação entre pai e filho continua. Fernando conta ao pai que quer viajar como o capitão Tormenta. “– Papai – disse Fernandinho com voz tremida eu também tenho vontade de viajar de avião. – Pois sim, meu querido, quando ficares grande poderás entrar num avião. – Não, papai, eu acho que só posso entrar num avião quando ficar pequeno.” Enquanto o pai entende que o desejo do filho é ser grande, para poder penetrar no avião (sexualidade adulta ?), Fernando pensa em como ficar pequeno para pode entrar no avião de brinquedo , e ficar pequeno de novo é regredir, para retomar o desenvolvimento. Senão vejamos: “O pai … era engenheiro. tinha um escritório cheio de máquinas, réguas, compassos… – Como é o nome daquilo, pai? – Aquilo se chama lente. – Para que serve? – Para aumentar as coisas. – E aquela? – Aquela, ao invés de aumentar as coisas, diminui. “quando a gente bota esse vidro em cima duma coisa, essa coisa fica pequena, não fica? pois então vou botar esse vidro em cima de mim e vou ficando pequeno, pequeno, até poder entrar no avião.” Como a Alice de Lewis Carroll, Fernando ora é grande, ora pequeno, menino medroso que aterroriza os demais, mas a descoberta da lente do pai permite a formulação de uma ideia de relatividade, além da possibilidade, da oportunidade de regredir (colocar-se sob a lente de diminuir). Ele observa as coisas ficarem grandes ou pequenas sob as lentes, entende que não é adulto ainda. Mas para o menino, importa menos ser grande e ter um pênis como o do pai, já que o que ele precisa é voltar a ser o bebê que entra, ou é contido, pelo pai avião, para elaborar uma fantasia de cura. (7). Na segunda parte da história, já Capitão Tormenta, depois de ser reduzido ao tamanho do seu avião, Fernando viaja à Lua, e “lá tudo era de gelo”. O aspecto inóspito da lua é negado. O herói usa uma “casacão de pelo” e não sente o frio. (Uma referência à obesidade?). Descobre que na lua tudo acontece “ao contrário” mas não sente perplexidade, aproveita para tomar sorvete de graça, comendo estrelas ainda vivas: “O empregado tirou sorvetes de uma lata; depois espichou o braço, furou o teto da casa e apanhou lá no alto três estrelinhas, que soltaram gritos de susto.” Temos aí a infeliz combinação da mãe deprimida (Lua fria) com a criança voraz, que encontramos na clínica com frequência . Ainda incapaz de concernimento, o menino e o avião quase atropelam uma estrela ao partirem “A estrela, muito delicada, pediu desculpas…o avião voltou a cabeça para ela e botou a língua para fora. Que mal-educado!” Começa agora a segunda parte da viagem, passando por uma cidade esquisita, pela China e pela África, pelo encontro com um zepelim e o mergulho no mar. Nessa jornada, repetidas vezes a fantasia de devorar e ser devorado se corporifica: “De repente viram um monstro. Era uma cobra enorme. Preta e amarela. A cobra abriu a boca…e segurou com os dentes o rabo do aparelho, que soltou um grito: – Ai! vou morrer envenenado!” Ou ainda: “de repente apareceu um porco gordo, abriu a boca e os engoliu.” E na África: “Desceram na África, mas foram muito sem sorte. Caíram bem no meio de uma aldeia de selvagens. Ficaram prisioneiros dentro de um porongo. O porongo era muito escuro. Os exploradores compreenderam que iam ser queimados.” Sempre salvos pelo avião vermelho, o menino e seus amigos são quase devorados por três vezes. Por fim passam a ser os devoradores: encontram um zepelim, feito de marmelada, chocolate… e começam a comê-lo. Então: “o comandante do dirigível estava naquele momento examinando a barriga do seu navio aéreo, que se queixava de dores muito fortes. Viu os aventureiros: – Piratas” Comeram um pedaço do meu zepelim!” Outra perseguição acontece, ocasionando a queda do avião no mar , quando se transforma num submarino. O surgimento de um clima depressivo introduz a passagem para a terceira parte do conto. “a água estava fria. ficaram muito assustados.” “e agora, o que vamos comer?” Mesmo depois da tempestade, de novo no céu, não demora muito para o avião cair outra vez: “e o avião vermelho foi arrastado para a terra.” “o tombo foi horrível”. E a catastrofe continua: caem dentro de uma chaminé, e dentro dela, se machucam: “o avião ficou com um olho preto. O ursinho perdeu muitos pelos…Fernandinho ficou com um galo na cabeça” Os machucados dos amigos na passagem pela chaminé podem ser interpretadas como reminiscências do trauma do nascimento, mas também como a falência das defesas maníacas, simbolizada pela queda, o frio, os machucados, o medo. Seria um momento depressivo que ocorre após o ataque sádico ao corpo da mãe, quando comem o zepelim? O medo do colapso já vivido? Pois aqui elementos semelhantes em sua forma e função, quais sejam: zepelim e porco, em cujas “barrigas” Fernando se aloja, primeiro engolido, e depois ativo devorador, além de representarem fantasias primitivas relativas ao engravidamento e ao nascer, correlacionam-se com a figura da Lua inicial, todas representativas do feminino e carregadas de ambivalência. Enfim, a figura do pai reaparece quando despertam contentes em seu escritório (mesmo que machucados pelo tombo): “– Agora precisamos crescer de novo!” O desfecho da aventura é a retomada da realidade, incluindo o sermão do pai que encontra o avião “espatifado” na lareira. Mas a criança, agora apaziguada, já de posse de novos recursos, não mais atua a angústia no comportamento; “ Fernandinho compreendeu tudo. Papai não sabia da aventura… quando a gente é pequeno, do tamanho de um dedo mindinho, cada dia dos homens vale cinco dos nossos. Foi uma aventura muito engraçada…Fernadinho até hoje fala nela” Neste conto, a profusão de elementos : lua fria, agua fria, perseguidores devoradores e a dinâmica maníaca da criança podem nos fazer supor alguma falha inicial dificultando a integração das ansiedades primitivas, de modo que apesar de ter havido desenvolvimento, permaneceu uma tendência à agitação, à dissociação , à voracidade e ao comportamento disruptivo, desafiador, expressão última da angústia e temor sentidos. A natureza maníaca da defesa esconde ansiedades depressivas: “arrastado para a terra. o tombo foi horrível”. Aqui vale o comentário de Winnicott “ as fantasias onipotentes não são tanto a realidade interna propriamente dita quanto uma defesa…nos tão frequentes livros de aventuras .. o autor…não tem consciência das ansiedades depressivas das quais fugiu. Sua vida foi cheia de incidentes e aventuras… baseado… na negação da sua realidade interna pessoal ” …(10) Podemos pensar o Capitão Tormenta como um menino a- atormentado pelo próprio sadismo oral projetado nos objetos (8). Gordo, travesso, e brigão, defende-se como pode das ansiedades depressivas e da mãe- morta, Lua “gelada”, que não acolhe(u). Quando o pai oferece livro (com as palavras certas), brinquedo e instrumentos, estes funcionam como um objeto criado-encontrado (9), seio que nutre e falo gerador de potência, elementos que o menino utiliza na construção de uma fantasia de cura (7), que é o re-nascimento. O pai da história apresenta vivacidade, ao lidar com o menino diretamente em suas questões edípicas, sob a lógica fálica, e tem boa capacidade feminina, ao se permitir penetrar por este filho (“papai, eu acho que só posso entrar num avião quando ficar pequeno”). É o holding paterno que propicia a Fernando a possibilidade de relaxar e brincar.
referências bibliográficas
1- Freud, Sigmund. O mal-estar na civilização [1929/1930]. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 2006, v. XXI
2- 2-Neder Bacha, Marcia. Déspotas mirins: o poder nas novas famílias. São Paulo: Zagodoni Editora, 2012
3- 3-Bauman, Zigmunt. Amor liquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
4- 4-Pellegrino, Hélio. Pacto Edípico e Pacto Social (Da Gramática do Desejo à semvergonhice Brasílica). In: Folhetim da Folha de São .Paulo, setembro, 1983.
5- Veríssimo, Erico. As aventuras do Aviao Vermelho. Sao Paulo: Companhia das letrinhas, 2003.
6- Di Loreto , O . Argumentando a favor de posições tardias. In Posições tardias. Contribuições ao estudo do segundo ano de vida. São Paulo. Casa do psicólogo,2007.
7- 7-Aberastury, A. Psicanálise da criança. Teoria e técnica. 8. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992
8- 8-Klein, M (1996) Estágios iniciais do conflito edipiano. In: Amor, culpa e reparacão e outros trabalhos- 1921-1925. Trad. A. Cardoso Rio de janeiro: Imago
9- 9-Winnicott, D. W. (1975) Objetos transicionais e fenômenos transicionais (1951) In Da Pediatria à Psicanalise :obras escolhidas. Trad. Davi Bogomeletz. Rio de Janeiro: Imago, 2000.
10- 10- Winnicott, D.W ( 1975) A defesa maníaca ( 1935) in Da pediatria á psicanalise: obras escolhidas. Trad. Davi Bogomeletz. Rio de Janeiro: Imago, 2000.

A obra de Erico Verissimo foi transformada em animação em 2104 Frederico Pinto e José Maia

http://www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise_crianca/coloquio2014/images/Anais_IIIColoquio_2014.pdf

Quem foi : Victor Guerra

 

 

 

 

 

Por Carla Braz Metzner

 

O psicanalista Uruguaio Victor Guerra dedicou a sua vida ao estudo, pesquisa e atendimentos clínicos da relação mãe/ bebê, da primeira infância, adolescentes e adultos.
Ele realizou por mais de vinte anos consultas terapêuticas em um jardim da infância inspirado nas contribuições tão importantes de D. Winnicott .
Estava trabalhando na sua tese de doutorado em Paris, sobre o ritmo e os indicadores de intersubjetividade no processo de subjetivação do bebê. Mas seu falecimento precoce interrompeu seu percurso, o seu trabalho e suas contribuições continuam reverberando entre nós.
Sua tese de doutorado será publicada em Paris com um evento em sua homenagem no dia 12/1/2019. Seu trabalho trouxe grande contribuição ao pensamento psicanalítico.
No dia 22 e 23 de junho de 2018 ocorreu uma homenagem para Victor Guerra em Montevidéu. O tema era : o que  nos ensinam os bebês? – Prof psicanalista Victor Guerra.
Neste evento o mais marcante era a transmissão de uma forma, de uma ética psicanalítica  presente no respeito ao outro, aos profissionais  e pacientes.
Na sua disposição de mente para fazer dialogar os autores e as teorias, que como ele dizia ,trazia movimento, ritmo e abertura para ir em busca do sofrimento humano e poder através da arte, da literatura e da poesia encontrar o assombro,  e a capacidade negativa como elucida o escritor john Keats. A Capacidade para viver a incerteza, o não saber, para poder lidar com o lamentável  e o sublime da condição humana, como assinala o escritor Octavio Paz tão apreciado por ele.
Victor foi coordenador da Fepal da área de crianças e adolescentes e foi um dos idealizadores da carta de Cartagena. Nos  trazendo a contribuição de varias associações e sociedades de psicanálise, se posicionando favoráveis ao tratamento psicanalítico do transtorno do espectro autista, reconhecendo toda experiência dos profissionais e produção de conhecimento construído pela psicanálise.
Victor encontrava na poesia sua inspiração para a clínica e para a vida, sua lista de escritores e poetas preferidos é muito grande, mas o escritor Uruguaio Felizberto Hernandez que aparece no fundo desta fotografia do Victor exerceu grande influência. Sua descrição dos personagens humanos, do seu mundo interno e seus dilemas despertaram seu interesse pela psicologia e psicanálise na adolescência, assim como sua experiência de vida com os imigrantes que frequentavam o boliche de seu pai e contavam suas histórias e seus dramas.
Os escritores brasileiros Ferreira Gullar e Manoel de Barros também foram sempre muito citados em seus trabalhos e em sua tese. E para também homenagear Victor neste texto cito um poema de Ferreira Gullar que ele gostava muito.

Despedida
Eu deixarei o mundo com fúria.
Não importa o que aparentemente aconteça,
se docemente me retiro.
De fato,
neste momento estarão de mim arrebentando raízes tão fundas.
Quanto estes céus brasileiros.
Num alarido de gente e ventania
olhos que amei, rostos amigos
tardes e verões vividos
Estarão gritando ao meu ouvido
para que eu fique , para que eu fique.
Não chorarei
Não soluço maior do que despedir-se da vida.
Ferreira Gullar