Desejo de filho

O que leva um sujeito a desejar ser pai ou mãe? Nos filmes Juno ( Jason Reitman, 2007) e Mais uma chance (Tamara Jenkins , 2018) ; o tema se coloca.

São filmes diferentes mas seus enredos se tocam em alguns pontos. Em “Juno”, fala-se da gravidez na adolescência, seus dilemas. Quando a mocinha decide abortar, falta coragem. Ela decide doar o bebê. Encontra então um casal bacana que está à procura de um filho . Em “Mais uma chance”, há também um casal infértil que oscila entre a ideia de adoção e a busca de tratamentos para conceber. Este casal irá recorrer à ovodoação por conta da idade da mãe, e a doadora será uma sobrinha por quem sentem afinidade.

No primeiro filme, Juno vai escolher o casal que receberá seu bebê por meio de um anúncio. Ao conhecê-los se encanta : são a família que ela idealiza, ela que vive com pai e madrasta e se sente negligenciada pela mãe.

Já a ovodoadora do filme ” Mais uma chance ” é uma pessoa da família. Apesar dos contextos diferentes, ambos os filmes iluminam as triangulações que acontecem nestas situações peculiares. Quando o bebê que vai chegar promete vir por meios diferentes do convencional, a cegonha faz um pit stop que custa caro (literal e psiquicamente) para as pessoas envolvidas.

Escolho aqui falar dos personagens femininos dos filmes para iluminar aspectos das suas dificuldades e alegrias na relação com a maternidade.

Juno é a personagem principal do filme que leva seu nome. Tem 16 anos e engravida do namorado, num deslize. Descobre a gravidez num teste que faz no banheiro de um mercadinho. Nos seu livro “Adolescência em cartaz” Diana e Mario Corso falam sobre ela e especulam sobre a razão inconsciente que pode ter ocasionado este delize… uma tentativa de reparar em ato uma ferida aberta lá atrás, quando Juno foi abandonada pela mãe : ” em nosso entendimento, Juno repete sua história de rejeição e adoção por parte de outra mãe. Sua decisão foi a de manter a gravidez e encontrar alguém que deseje e receba este bebê. Pensa em doá-lo a uma mulher estéril ou a um casal de lésbicas. O desejo por um filho, tão importante para a descartada Juno, encontra, tanto na mulher que adota o recém-nascido quanto na atitude irrepreensivelmente materna da madrasta, uma acolhida que compensa a falta de sua própria mãe.”

E por sinal Bren, a madrasta de Juno, é uma mãe melhor que a encomenda! Amorosa e firme, consegue, ao lado do pai da adolescente, apoiá-la na decisão de entregar sua criança para adoção. Sem recriminações, sem exclusão, sem paternalismo- o que comumente encontramos nas famílias que se deparam com a gravidez indesejada nesta fase da vida. Bren, como madrasta, presentifica o aspecto simbólico da filiação que não precisa passar pela carne para se concretizar. Ela se responsabiliza pela adolescente e assume o cuidado dela junto ao pai, não sem sofrer junto com Juno o peso da difícil decisão.

Aqui Bren acompanha Juno no ultrassom gestacional

A outra personagem feminina do filme “Juno” é Vanessa, a mãe que ela escolhe para dar o seu bebê. É casada , organizada, bem sucedida- mas não consegue engravidar . Faz um casal bonito com Mark: casal que sucumbe ante à dificuldade encontrada no projeto de adoção . Apesar do perfeccionismo e da intensa projeção narcísica sobre a cobiçada criança, Vanessa sofre com o descompasso entre seu desejo de filho e a postura do marido. Ele parece ter fixações na adolescência e não se sente à altura do projeto “pai”. Quando vai receber o bebê de Juno, Vanessa já está sozinha. Recebe emocionada a criança em seus braços e pergunta à Bren, que a observa ternamente: ” Como pareço?”, ao que Bren responde: ” Como uma nova mãe apavorada!” Nesta cena o círculo se fecha: as duas mães adotivas se encontram por meio do ato de Juno de doar o bebê . Bebê gerado pelo desejo inconsciente de restaurar a união perdida com uma mãe que não há… Juno não tinha o desejo de cuidar de um filho , ela queria ser cuidada. Ao perceber isso pôde ter o apoio de sua família para lidar com a situação , aprender com a experiência.

Além da gestação como passagem ao ato, que foi o que aconteceu com Juno, uma gravidez pode ter muitos outros sentidos que não o desejo de cuidar de um filho. ” Para a psicanálise, uma passagem ao ato é algo que tem uma motivação inconsciente para acontecer”, dizem Mario e Diana Corso. Os autores falam também da consolidação da imagem feminina e do desejo de dar um bebê aos pais como motivações inconscientes para a gravidez. Todo desejo de filho é um amálgama de muitos outros desejos nem sempre compreendidos pelo sujeito.

Agora vamos falar de outras três mulheres, personagens do filme “Mais uma chance ” ( Private life ) . Rachel, escritora engajada, é a personagem que aqui sofre com a dificuldade de engravidar. Num diálogo que tem com o companheiro percebemos a culpa por ter adiado o projeto de ser mãe por conta da profissão – agora sente que é tarde demais. Ela vai se submeter ao processo desubjetivante dos tratamentos de fertilidade, nos quais percebemos o sofrimento psíquico que os procedimentos carregados de impessoalidade lhe trazem. Seu cabelo desalinhado, as cenas de nudez, as alterações de humor e o desconforto que parece sentir retratam o custo que o desejo de filho lhe traz. O seu corpo erótico reduzido a um corpo- coisa, máquina que teima em não funcionar. Ela oscila mas não desiste mesmo quando, no final de todo o processo, passa pelo luto do fracasso da inseminação artificial. A alegria de estar com a sobrinha e algumas falas do filme fazem pensar que Rachel e o esposo desejam uma criança como uma mudança em suas vidas e para renovar a própria vida. Aqui parece haver o desejo de cuidar de alguém. Porém, apesar do humor presente em muitas cenas, o patético da situação de reprodução assistida e da busca de um filho desnuda a fragilidade de Rachel e sua tristeza. Sua feminilidade e potência é posta à prova; ela que é uma pessoa criativa se sente desvitalizada e acuada diante da situação. Rachel também se encaixa na descrição que o casal Corso faz quando fala do problema de Vanessa :

Dos rivais que a libertação feminina tem enfrentado, os mais indomáveis parecem ser os ritmos biológicos. Ficamos prontas para engravidar, com a fertilidade a ponto de bala, o corpo viçoso e flexível, quando a cabeça ainda tem muitíssimas outras coisas com o que se ocupar. Depois, quando certas escolhas já foram feitas, e algumas garantias nos tranquilizam, aí já estamos fisicamente mais frágeis para conceber e parir. Se então quisermos ser mães, necessitaremos repouso e assistência médica.”*

Rachel, Sadie e Richard diante do médico especialista em reprodução humana

Sadie é a moça que tem o tal “corpo viçoso e flexível” e a “fertilidade a ponto de bala”, com a cabeça ainda cheia de projetos e coisas para resolver antes de ser mãe. Sobrinha do casal, deseja ser escritora como a tia e aceita doar-lhe seus óvulos . Embarca no projeto vivenciando-o como uma oportunidade de fazer algo de bom : e se perde no caminho pelo peso psíquico que toda a situação representa para ela . Há uma cena em que diz para Rachel que irão ter um bebê juntas- pois será seu óvulo a ser inseminado no ventre da outra. Esta cena é carregada de sensualidade e mostra a intimidade das duas mulheres como um casal e também como mãe e filha, numa perigosa realização imaginária dos desejos incestuosos de Sadie com esta figura materna e dupla de si que a tia parece representar. Para Freud, a descoberta da fase pré-edípica na menina equivale ao encontro de toda uma civilização soterrada sob a escolha heterossexual da mulher: pois o primeiro amor da menina, como no caso do menino, é a mãe. Dar um bebê à sua mãe é uma fantasia que Sadie parece estar próxima de realizar- e é neste momento que a moça se apaga diante do desejo da outra.

E se a tia Rachel permanece como figura idealizada e imitada pela Sadie, a mãe da moça, Cynthia, é por ela desqualificada. Cynthia é a terceira personagem do filme de que quero falar.

Ela está chegando à menopausa e se depara com a decisão da filha de doar seus óvulos. Ambas tem uma relação difícil, estão muito afastadas e com dificuldade de comunicação. Cynthia não valida a escolha profissional da filha que também a critica, que a confronta. Cynthia não compreende a obstinação de Rachel em seu desejo de engravidar, e tem muita dificuldade de aceitar o procedimento da ovodoação. Ficamos sabendo que ela teve a filha muito nova e isto acarretou-lhe muitos sacrifícios . Ela faz alguns movimentos para se aproximar mas o processo adolescente de Sadie dificulta o encontro das duas: a moça está buscando se diferenciar da sua mãe e a mãe também passa por um momento difícil, encarando o ninho vazio sem ter tido chance de outras realizações pessoais.

Outro círculo se fecha aqui: Sadie liga as duas mulheres e cada uma fez uma escolha na vida… ambas começam a envelhecer sentindo falta daquilo que não realizaram. Cynthia é o negativo de Rachel, Rachel é o negativo de Cynthia.

O que todas essa mulheres: Juno, Vanessa e Bren, Rachel, Sadie e Cynthia tem a nos ensinar? São mulheres do nosso tempo às voltas com o dilema da maternidade, e o que é ser mulher. Juno e Sadie passam pela adolescência, Rachel e Cynthia envelhecem, e tem de fazer lutos. Rachel está com dificuldade neste luto- está num impasse, congelada. É o que a cena final do filme deixa transparecer. Vanessa também passa pela crise no casamento que a injunção de se tornar pais representa. Vemos mulheres passando por processos de transformação . Juno recua diante da maternidade, Vanessa avança: ambas crescem no processo. Rachel ainda precisará de mais tempo para resolver o impasse em que se encontra. Sadie sai um pouco estropiada da experiência da ovodoação mas (com ajuda dos tios) prossegue em seu caminho criativo. A generosa Bren, avó por um segundo, transmite à outra mulher apoio e segurança.

Cada uma se vira como pode.

Eu já tinha comprado o livro de Contardo Caligaris e Maria Homem “Coisa de menina” mas não havia lido. Com a morte dele, corri para abrir o livro, ainda dentro do plástico- pequenas alegrias de sábado à noite na pandemia. É bom poder escutar a voz de Contardo e Maria falando que não nascemos mulher, nos tornamos mulheres. E por não sermos somente bichos fêmeas reprodutoras, por termos de significar para nós o que significa ser -ou não ser- mulher e mãe, sempre haverá muitas viscissitudes neste processo. A origem da vida e a diferença entre os sexos permanecem sendo grandes mistérios para nós.

Diante do mistério, toda ciência será sempre pouca- e sempre um pouco louca.

* Juno | Mario & Diana – Psicanálise na vida cotidiana (marioedianacorso.com)

Uma das musicas mais lindas sobre adoção… desejo de filho!!!