Que jogo é esse?

“Ao pensar sobre a possibilidade do casamento cada um deveria se fazer a seguinte pergunta: “Você crê que seria capaz de conversar com prazer com esta pessoa até a sua velhice?”. Tudo o mais no casamento é transitório, mas as relações que desafiam o tempo são aquelas construídas sobre a arte de conversar.” Rubem Braga

Está difícil essa quarentena. Para quem está em casa, para quem está doente, para os idosos com medo, para as crianças sem escola. Para quem não está doente, para os que se alienam numa casa na praia da Baleia com três babás- sim, alienar-se traz um custo também. O mundo não vai parar de bater na nossa porta mesmo que ela não seja ela um barracão de zinco sem janela e sem trinco. Uma gaiola de ouro ainda é gaiola, e todo ensimesmamento cobra um preço, empobrece a alma, endurece o coração. Os otimistas esperam e os desesperados tem seus temores confirmados; para eles o mundo não será como antes, agora o medo tem nome .

Mas este recado aqui vai para os casais. Àqueles que estão se fazendo companhia neste momento particular, fora do combinado, não estando de férias, nem em recesso, não sabendo quando vai terminar. Aos que se encontram sob a luz fria da solidão à dois.

Gostaríamos de dizer algumas coisas. O amor é coisa difícil. Amor começa tarde e felicidade não é obrigação. E, como dizia o meu dentista Carlão lá de Guaxupé, casamento é coisa de profissional, não é para amador, não. Para Winnicott, ter concernimento, cuidar de um outro, reconhecer mesmo o outro, é processo de amadurecimento e nunca termina de acontecer na nossa vida. A vida toda, nos relacionamos com o outro e com a idéia que fazemos dele, negamos e aceitamos a sua alteridade, focando e desfocando a sua imagem conforme a nossa cegueira particular. É possível enxergar o outro, ou mesmo a nós mesmos? Quanto dói perder a ilusão… pode-se viver sem ilusões?

Talvez essas perguntas não tenham mesmo resposta ou morem na filosofia. Amor rima com dor – diz o poeta. Mas sempre podemos conversar. A arte de conversar, que pode ser aprendida, que a psicanálise preza, é metaforizada por Rubem Braga como um jogo de frescobol. Rubem Braga, capixaba, grande cronista, sensível artista. Vejamos o que ele diz:

“Depois de muito meditar sobre o assunto concluí que os casamentos são de dois tipos: há os casamentos do tipo tênis e há os casamentos do tipo frescobol. Os casamentos do tipo tênis são uma fonte de raiva e ressentimentos e terminam sempre mal. Os casamentos do tipo frescobol são uma fonte de alegria e têm a chance de ter vida longa. Explico-me. Para começar, uma afirmação de Nietzsche, com a qual concordo inteiramente. Dizia ele:

Xerazade sabia disso. Sabia que os casamentos baseados nos prazeres da cama são sempre decapitados pela manhã, terminam em separação, pois os prazeres do sexo se esgotam rapidamente, terminam na morte, como no filme O império dos sentidos. Por isso, quando o sexo já estava morto na cama, e o amor não mais se podia dizer através dele, ela o ressuscitava pela magia da palavra: começava uma longa conversa, conversa sem fim, que deveria durar mil e uma noites. O sultão se calava e escutava as suas palavras como se fossem música. A música dos sons ou da palavra – é a sexualidade sob a forma da eternidade: é o amor que ressuscita sempre, depois de morrer. Há os carinhos que se fazem com o corpo e há os carinhos que se fazem com as palavras. E contrariamente ao que pensam os amantes inexperientes, fazer carinho com as palavras não é ficar repetindo o tempo todo: “Eu te amo, eu te amo…”. Barthes advertia: “Passada a primeira confissão, ‘eu te amo’ não quer dizer mais nada”. É na conversa que o nosso verdadeiro corpo se mostra, não em sua nudez anatômica, mas em sua nudez poética. Recordo a sabedoria de Adélia Prado: “Erótica é a alma”.

O tênis é um jogo feroz. O seu objetivo é derrotar o adversário. E a sua derrota se revela no seu erro: o outro foi incapaz de devolver a bola. Joga-se tênis para fazer o outro errar. O bom jogador é aquele que tem a exata noção do ponto fraco do seu adversário, e é justamente para aí que ele vai dirigir a sua cortada – palavra muito sugestiva, que indica o seu objetivo sádico, que é o de cortar, interromper, derrotar. O prazer do tênis se encontra, portanto, justamente no momento em que o jogo não pode mais continuar porque o adversário foi colocado fora de jogo. Termina sempre com a alegria de um e a tristeza de outro. O frescobol se parece muito com o tênis: dois jogadores, duas raquetes e uma bola. Só que, para o jogo ser bom, é preciso que nenhum dos dois perca. Se a bola veio meio torta, a gente sabe que não foi de propósito e faz o maior esforço do mundo para devolvê-la gostosa, no lugar certo, para que o outro possa pegá-la. Não existe adversário porque não há ninguém a ser derrotado. Aqui ou os dois ganham ou ninguém ganha. E ninguém fica feliz quando o outro erra – pois o que se deseja é que ninguém erre. O erro de um, no frescobol, é como ejaculação precoce: um acidente lamentável que não deveria ter acontecido, pois o gostoso mesmo é aquele ir e vir, ir e vir, ir e vir… E o que errou pede desculpas, e o que provocou o erro se sente culpado. Mas não tem importância: começa-se de novo este delicioso jogo em que ninguém marca pontos…

A bola: são as nossas fantasias, irrealidades, sonhos sob a forma de palavras. Conversar é ficar batendo sonho pra lá, sonho pra cá…”

Esta metáfora do jogo de frescobol é útil para pensar também a psicanálise, na sua vertente intersubjetiva. Muita gente boa na psicanálise vem falando sobre este frescobol que acontece numa sessão, a possibilidade de brincar de verdade com os sentidos que envolvem as palavras que dizemos. Reconhecer que entre dois existe sempre um terceiro : o entre-dois, aquele que criamos juntos, na relação. Somos nós e os nós que se formam nesse laço que tecemos a dois.

A experiência do frescobol, numa análise ou numa conversa boa, é proveitosa e inesquecível. Pode ser rara no casamento, que (penso diferente do Rubem Braga) tende a ter seus momentos de frescobol entremeados entre as ferozes cortadas do tênis jogado a dois, em diferentes medidas conforme o momento e a constituição de cada casal. Criar e destruir o outro faz parte da experiência.

Tênis é assim: recebe-se o sonho do outro para destruí-lo, arrebentá-lo, como bolha de sabão… O que se busca é ter razão e o que se ganha é o distanciamento. Aqui, quem ganha sempre perde.

Já no frescobol é diferente: o sonho do outro é um brinquedo que deve ser preservado, pois se sabe que, se é sonho, é coisa delicada, do coração. O bom ouvinte é aquele que, ao falar, abre espaços para que as bolhas de sabão do outro voem livres. Bola vai, bola vem – cresce o amor… Ninguém ganha para que os dois ganhem. E se deseja então que o outro viva sempre, eternamente, para que o jogo nunca tenha fim…

Parece que na quarentena precisamos mais do que alcool gel e máscaras, precisamos do cuidado com as nossas relações, e jogar frescobol com o sol na cara, na areia quente. Paciência. Tolerância. Se a bola vier meio torta, pense um segundo: que jogo é esse?