Rapunzel e sua torre:considerações a respeito da psicose puerperal

Entre a psicose e a normalidade existem mais conexões do que  gostaríamos de acreditar- e a familiaridade do estranho da psicose nos assusta justamente por sua ressonância em nós mesmos. Diz Nino Ferro “Naturalmente, é com os pacientes graves (e com as partes psicóticas de cada paciente) que continuamente nos expomos às maiores dificuldades… à espera de poder transitar por zonas ainda escuras e cegas da nossa mente”.
Como então distanciar-se do terror da psicose puerperal e dos  transtornos mais graves que podem ocorrer no período perinatal- se um dia já fomos também bebês em estado de dependência absoluta, se a rejeição ao bebê não nos provoca empatia? Se o próprio feminino em nossa cultura não nos fornece referência suficiente? Vivemos numa cultura do matricídio, em que as coisas inanimadas prevalecem sobre o humano, e a relação mais primeira, da mãe com seu bebê, é idealizada ou reificada mas não encontra proteção ambiental necessária ao seu sustento. “É preciso uma tribo para cuidar de um
bebê”, diz o ditado. Esta verdade parece estar sendo esquecida nos nossos dias.
Sucumbem os indivíduos mais frágeis diante das pressões e da instabilidade característica da fase perinatal. Instabilidade esta que é orgânica,pelas intensas flutuações hormonais, pela privação do sono, pelas vicissitudes do corpo e seu Real , tão presentes no momento. Mas também psíquica ,também social, também familiar.
Para a psiquiatria, a conexão entre psicose puerperal e transtorno bipolar faz-se evidente, delimitando um fator de risco dos mais importantes.
Porém, para o analista, a desconstrução do rótulo e a busca de um sentido para o sujeito importam mais. No contato com a paciente o terapeuta tenta prosseguir na construção de um “historiar” e um acolhimento para o delírio -composição e remendo criado pela pessoa para dar significado às suas  vivências. A aliança terapêutica é um holding que vai possibilitar o outro holding, o holding do bebê, impossível nos estágios iniciais de desorganização em que a paciente se encontra. Aqui importa menos o reencontro da mãe e do bebê do que a a possibilidade de a mãe re-significar a si mesma, aprisionada
que está dentro da torre da psicose.
Delírios envolvendo o roubo ou a troca do bebê são muito comuns na psicose puerperal. Podem estar muito estruturados (como vimos no filme “O bebê de Rosemary” de Polanski) ou, no mais das vezes, conectados a um estado paranóide difuso, ligado a grandes flutuações do humor. O que  na psicose aparece como delírio surge como fantasia no período do blues puerperal.
Nesta ocasião de transparência psíquica os ciúmes e conflitos surgem como uma forma camuflada do temor de não ser suficiente, de ter seu bebê “sequestrado” pela sogra, pela enfermeira super competente, ou pela própria mãe. Ansiedades estas que são mitigadas pelo ambiente continente, pela passagem do tempo e pelo descanso. O próprio contato com o bebê faz diluir paulatinamente a flutuação do humor de base neurótica do blues puerperal.
Mas na psicose, o terror é vivenciado – não é bonita a psicose, nem fácil de suportar. Os casos puerperais costumam ser muito graves. Mas, pertencendo ao sitio do estranho, não deixam de ressoar profundamente em nós. Quando eclode o surto, muitas vezes ainda no período da internação, intensas angústias mobilizam toda a equipe do hospital- em geral despreparada para isso. Às vezes a visão médica domina a cena, o que pode roubar à mulher a oportunidade de encontrar, a partir da crise, um caminho para a subjetivação. Sem cuidado, a família se desorganiza, impossibilitada de dar e receber escuta. É quando iatrogenias ocorrem, porque o sujeito psicótico deixa de ser considerado um sujeito, mesmo que a desorganização ocorra de forma autolimitada, mesmo nos casos de resolução mais rápida da crise. A equipe hospitalar raramente tem condições de manejar casos de tanta complexidade.
Apesar de não ser infecciosa, a loucura “pega”, e pega de um jeito que muitas vezes não se percebe. Porém, somente uma atitude cuidadosa e não julgadora tem chance de atingir paciente e família neste momento. Há que se encontrar dialética no cuidado : enquanto, de um lado, o psiquiatra busca e ajusta as medicações, o manejo da enfermagem é de particular importância, pois as famílias se desestruturam e a paciente está muito regredida. Enquanto o antipsicótico age para reduzir as manifestações
delirantes e a desorganização, no contato com a paciente o terapeuta prossegue fornecendo uma escuta única, uma escuta para o delírio, para o ser quebrado desta mãe que ainda não pode constituir-se como tal. Sem contar a particularidade da vinda do bebê: quem vai se ocupar dele? Tamanha é a complexidade do manejo nos casos de psicose puerperal.

No conto de fadas que narra a história da Rapunzel, a apropriação pela mulher de algo que pertence à bruxa faz com a mesma reivindique o bebê desta mulher, assim que ele nasce: como pagamento pelo roubo. Sua primeira filha.

Ou seja: a Rapunzel nasce de uma mulher que, na gravidez, comeu rabanetes roubados da horta da bruxa. Mulher que, ao parir, paga uma dívida .
Para quem não se lembra da história, a menina Rapunzel cresce encerrada em uma torre até poder ser resgatada por um príncipe. No conto, é a mediação do príncipe que desfaz o encanto do seu aprisionamento.
Pensando no período pos-parto, podemos imaginar  a psicose como um aprisionamento em que a mãe, que deve à bruxa, não pode apropriar-se do lugar materno. Outrossim, tem seu bebê roubado. Que bruxa é esta? Sua própria mãe? Algo de sua história?
Como saber… Cada mulher e cada Rapunzel terão sua história particular. Mas sabemos que mulheres psicotizam mais no pós parto do que em qualquer outra época da vida… Pois algo arriscado acontece à mulher que pare e é convocada a tornar-se Mãe. Agora ela é chamada a responder a uma pergunta e ocupar um novo papel. Este bebê é meu? Tenho permissão para ocupar este lugar?
Penso que a estória de Rapunzel é cena e enredo vivido no pós parto de muita mãe que passa a delirar sobre a troca, a morte, o sequestro de seu bebê.
De certa forma, é a mãe que está então confinada na torre da sua própria psicose. A mulher, roubada de si mesma, estará à espera de um terceiro, um mediador, que quebre o encanto da indiferenciação entre ela e a bruxa. Estará à espera do “príncipe” sem o qual jamais poderá se separar, se organizar, tocar o chão. Quem poderá enfim ajudá-la a tecer, no vão que surge entre as suas tranças cortadas- cortadas como um cordão umbilical- um pouco de sentido, um tanto de coragem, para poder se apartar da bruxa? Eis uma aproximação poética do trabalho a ser feito no caso da psicose. Dizem que o príncipe também, ao tentar chegar perto da Rapunzel, levou um tombo danado. E aí,
quem se habilita? Será que esta história ainda pode ter um final feliz?
Arianne Angelelli
Julho- 2020