Cuidar dos pais

Em minha casa de quatro filhas, três de nós estamos longe dos nossos pais. Embora tentemos visitá-lo frequentemente, somente Aline está, de fato, sempre perto. Ela está próxima no dia a dia para as grandes e pequenas coisas. Por causa dela podemos estar tranquilas mesmo na distância. Essa gratidão eu dificilmente conseguiria colocar em palavras.

Sobre o envelhecimento:

A integração psicossomática é conquistada no início da vida e sempre posta à prova, principalmente em fases como a adolescência, a gravidez ou a velhice. Quando o corpo muda ou falha o idoso faz um trabalho psíquico a mais para acomodar-se a este limite que agora vem de dentro. Sempre ouço me contarem que na cabeça somos mais jovens do que o nosso corpo nos diz. Como numa adolescência ao contrário. Na adolescência nos sentimos crianças tendo de nos haver com um corpo adulto. Na envelhescência estamos cheios de vontade e vigor mas o corpo já não nos responde da mesma maneira.

A autonomia, que demoramos tanto a conquistar na vida, não é facilmente abandonada. Vejo idosos aguerridamente brigarem com a família que os dimininui ou infantiliza com o intuito de proteção, deixando de perceber o quanto depender dos outros fere o seu senso de autonomia. Muitos idosos me dizem não temer a morte, e sim a dependência absoluta do outro. A lentificação das habilidades motoras e cognitivas é percebida pelo idoso não sem uma certa relutância! Reconhecer alguns limites da idade é um processo que cada pessoa faz de uma maneira muito própria.

Por isso, o filho que cuida de seus pais está numa posição difícil. Muitas vezes tem que descobrir como oferecer ajuda sem que seus pais se ressintam com isso. É preciso muita delicadeza, doçura , paciência e uma verdadeira capacidade de empatia.

Este belo texto de Valter Hugo Mãe fala de um modo poético sobre cuidar dos pais. 

“A minha mãe é a minha filha. Preciso de lhe dizer que chega de bolo de chocolate, chega de café ou de andar à pressa. Vai engordar, vai ficar eléctrica, vai começar a doer-lhe a perna esquerda.

Cuido dos seus mimos. Gosto de lhe oferecer uma carteira nova e presto muita atenção aos lenços bonitos que ela deita ao pescoço e lhe dão um ar floral, vivo, uma espécie de elemento líquido que lhe refresca a idade. Escolho apenas cores claras, vivas. Zango-me com as moças das lojas que discursam acerca do adequado para a idade. Recuso essas convenções que enlutam os mais velhos. A minha mãe, que é a minha filha, fica bem de branco, vermelho, gosto de a ver de amarelo-torrado, um azul de céu ou verde. Algumas lojas conhecem-me. Mostram-me as novidades. Encontro pessoas que sentem uma alegria bonita em me ajudar. Aniversários ou Natal, a Primavera ou só um fim-de-semana fora, servem para que me lembre de trazer um presente. Pais e filhos são perfeitos para presentes. Eu daria todos os melhores presentes à minha mãe.

Rabujo igual aos que amam. Quando amamos, temos urgência em proteger, por isso somos mais do que sinaleiros, apontando, assobiando, mais do que árbitros, fiscalizando para que tudo seja certo, seguro. E rabujamos porque as pessoas amadas erram, têm caprichos, gostam de si com desconfiança, como creio que é normal gostarmos todos de nós mesmos. Aos pais e aos filhos tendemos a amar incondicionalmente mas com medo. Um amigo dizia que entendeu o pânico depois de nascer o seu primeiro filho. Temia pelo azedo do leite, pelas correntes de ar, pelo carreiro das formigas, temia muito que houvesse um órgão interno, discreto, que disfuncionasse e fizesse o seu filho apagar. Quem ama pensa em todos os perigos e desconta o tempo com martelo pesado. Os que amam sem esta factura não amam ainda. Passeiam nos afectos. É outra coisa.

Ficar para tio parece obrigar-nos a uma inversão destes papéis a dada altura. Quase ouço as minhas irmãs dizerem: não casaste, agora tomas conta da mãe e mais destas coisas. Se a luz está paga, a água, refilar porque está tudo caro, há uma porta que fecha mal, estiveram uns homens esquisitos à porta, a senhora da mercearia não deu o troco certo, o cão ladra mais do que devia, era preciso irmos à aldeia ver assuntos e as pessoas. Quem não casa deixa de ter irmãos. Só tem patrões. Viramos uma central de atendimento ao público. Porque nos ligam para saber se está tudo bem, que é o mesmo que perguntar acerca da nossa competência e responsabilizar-nos mais ainda. Como se o amor tivesse agentes. Cupidos que, ao invés de flechas, usam telefones. E, depois, espantam-se: ah, eu pensei que isso já tinha passado, pensei que estava arranjado, naquele dia achei que a doutora já anunciara a cura, eu até fiz uma sopa, no mês passado até fomos de carro ao Porto, jantámos em modo fino e tudo.

Quando passamos a ser pais das nossas mães, tornamo-nos exigentes e cansamo-nos por tudo. Ao contrário de quem é pai de filhas, nós corremos absolutamente contra o tempo, o corpo, os preconceitos, as cores adequadas para a idade. Somos centrais telefónicas aflitas.

Queremos sempre que chegue a Primavera, o Verão, que haja sol e aqueçam os dias, para descermos à marginal a ver as pessoas que também se arrastam por cães pequenos. Só gostamos de quem tem cães pequenos. Odiamos bicharocos grotescos tratados como seres delicados. O nosso Crisóstomo, que é lingrinhas, corre sempre perigo com cães musculados que as pessoas insistem em garantir que não fazem mal a uma mosca. Deitam-nos as patas ao peito e atiram-nos ao chão, as filhas que são mães podem cair e partir os ossos da bacia. Porque temos bacias dentro do corpo. Somos todos estranhos. Passeamos estranhos com os cães na marginal e o que nos aproveita mesmo é o sol. A minha mãe adora sol. Melhora de tudo. Com os seus lenços como coisas líquidas e cristalinas ao pescoço, ela fica lindíssima. E isso compensa. Recompensa.

Comemos o sol. Somos, sem grande segredo, seres que comem o sol. Por isso, entre as angústias, sorrimos.”

(Via Público– retirado de Cuidar dos pais | Casa de papel | PÚBLICO (publico.pt)

https://www.publico.pt/2015/03/29/sociedade/opiniao/cuidar-dos-pais-1690432

Na primeira febre, a minha febre
E quem é quem pedindo proteção?
Ponho a mão na testa do meu neto
E é meu avô que está estendendo a mão

Nessa comunhão dos três
Eu sou avô do meu avô
Ele é o menino ali
E ri das confusões
Que o grande amor pode fazer
É um milagre essa multiplicação
De mãos e febres por buscar ternura
E então com medo de morrer
A fragilíssima trindade jura
Ficaremos sempre assim por perto
E quando meu neto tiver neto
Uma febre unindo o que passou
Dirá pro tempo: oi, meu avô

É por aí: um piano em debussy
O morcego e o sapoti na praia dos coqueiros
O avô sou eu numa bicicleta
De canelas finas, mexe com as meninas

Explode a trovoada, a chuva canta
E a enxurrada leva todos nós
Fracionados sim, mas fusionados
Rumo ao delta, à queda, ao fim, à foz

E uma vez que voltaremos
Numa febre que menino-avô terei
Até o filósofo sorri

“é o mesmo rio. eu me enganei”

( Adir Blanc- Cristóvão Bastos : Acalanto para netos).