avós

Em maio do ano passado perdemos para o Covid também Aldir Blanc, 73 anos, lá em Vila Isabel, onde quem é bacharel não tem medo de bamba. Psiquiatra como nós, formado em medicina, um dos maiores compositores, letristas, escritores, poetas brasileiros. Entre tantas composições que fazem já parte do nosso cancioneiro, da memória cultural do nosso país, algumas são menos conhecidas.

É o caso de “Acalanto pros Netos” , composta em parceria com Cristóvão Bastos.

Aldir contou numa entrevista (http://www.abi.org.br/entrevista-aldir-blanc/) que os netos para ele foram como flores brotando num deserto! Em suas palavras:

” Em outubro de 91, sofri um acidente de carro. Fraturei o fêmur de maneira incomum, fui submetido a uma séria cirurgia e, não por culpa dos excelentes médicos, fiquei com a perna dura. Após oito meses de cama, isso me arrasou e eu comecei lentamente a desistir. Não só de melhorar, mas talvez de viver. No ano seguinte, fui surpreendido com a chegada de três dos quatro netos, e a minha vida mudou inteiramente. Sei que a metáfora é batida, mas foi como se flores brotassem no deserto. “

Trago hoje aqui o Aldir para que suas palavras nos confortem em meio a este deserto que nos cerca, neste momento em que tantos vovôs e vovós estão partindo fora do combinado. O Aldir vovô escreveu este acalanto em que a sensação de continuar-se nos netos, flores no deserto , é poeticamente representada. A letra é tão linda, que transcrevo aqui:

Na primeira febre, a minha febre
E quem é quem pedindo proteção?
Ponho a mão na testa do meu neto
E é meu avô que está estendendo a mão

Nessa comunhão dos três
Eu sou avô do meu avô
Ele é o menino ali
E ri das confusões
Que o grande amor pode fazer
É um milagre essa multiplicação
De mãos e febres por buscar ternura
E então com medo de morrer
A fragilíssima trindade jura
Ficaremos sempre assim por perto
E quando meu neto tiver neto
Uma febre unindo o que passou
Dirá pro tempo: oi, meu avô.

É por aí: um piano em debussy
O morcego e o sapoti na praia dos coqueiros
O avô sou eu numa bicicleta
De canelas finas, mexe com as meninas

Explode a trovoada, a chuva canta
E a enxurrada leva todos nós
Fracionados sim, mas fusionados
Rumo ao delta, à queda, ao fim, à foz

E uma vez que voltaremos
Numa febre que menino-avô terei
Até o filósofo sorri
“é o mesmo rio. eu me enganei”

Escutem só:

na voz de Clarice Grova

É o mesmo rio…

Avô e neto fusionados, fracionados, pelo tempo que é eterno e não existe.

Mas o acalanto não termina! Uns anos depois, eis que Cristóvão Bastos recebe de Roberto Didio a letra de Acalanto pros Avós. Musicou na hora!

Uma linda continuação da própria idéia da continuação que a primeira letra trazia:

Quem me chamava pra brincar no chão
E viajava pela imensidão
Num cavalo alado de madeira
Me rodeava querendo atenção
Pousava o rosto no meu coração
Era noite azul com giz de cera

Quem escalava o time de botão
Também ganhava o céu no seu balão
Eu nem levantava da cadeira
Então corria em minha direção
Pegando a velha alma pela mão
Pra subir na jabuticabeira

Do meu pijama não largava, não
Adormecia noutra contação
Fábulas, no fundo, verdadeiras
O sol passava o braço no portão
Sanhaço vindo pela contramão
Minha rua amanheceu na feira

A luz sumindo, eu me sentindo mal
Sabendo que não estaremos sós
O grande amor partiu igual cristal
Consigo ouvir a voz dos meus avós
Cruzando o mesmo rio, sem avisar.

Querem ouvir? Aqui está.

Depois disso…fico já sem palavras.

Este post é dedicado ao meu amigo Ricardo