PSICANÁLISE E PAULO FREIRE

Cecília Montag Hirchzon

Melany Copit

Enquanto psicanalistas e atuando como professores de psicanálise, confrontamo-nos com a distância que tem existido em nosso meio entre um espírito psicanalítico e a prática em sala de aula, chamando-nos a atenção alguns aspectos dessa dissonância. Observamos freqüentemente no ensino um relacionamento que é vivido como se ocorresse num clima asséptico de emoções. É comum os seus protagonistas omitirem o fato de que o vínculo educativo, como todo processo de interação humana, envolve aspectos afetivos que não só interferem mas constituem o motor da própria aprendizagem.

Essa condição facilita uma comunicação tida como puramente intelectual, de que se quer excluir a experiência emocional, determinando um pensamento impessoal e arbitrário, que resulta geralmente em simples acúmulo de informações desintegradas. Com essa preocupação, entramos em contato com a proposta de Paulo Freire e deparamos com a convergência desta com a psicanálise, em muitos aspectos.

Chegamos então à convergência fundamental: a dialogicidade como substrato essencial tanto da proposta educacional de Paulo Freire quanto da abordagem psicanalítica.

A psicanálise resume-se num encontro de pessoas que se propõe um diálogo, uma conversa especial. Nessa conversa a palavra não só veicula a trama significativa da vivência das pessoas em cena, com suas características afetivas íntimas, mas na sua escuta, compreensão e manejo, pode se tornar um instrumento de desalienação, de criação.

Assim, a Psicanálise é uma educação libertária na medida em que sua prática se propõe a superar a ação repetitiva e alienada para alcançar a reflexão e a vivência que acompanham uma ação criativa.

Quando Paulo Freire afirma que “amor é também diálogo”, traz de volta ao processo educativo aquilo que é o seu elemento fundador. É indispensável que se reconquiste para a aprendizagem o seu significado afetivo. Mas afeto não envolve apenas amor. As relações afetivas nunca são unidimensionais. Se há amor, necessariamente existe a virtualidade do ódio.

O conflito é a condição intrínseca das emoções humanas. Este é o aspecto dialético intra-humano e inter-humano que o saber psicanalítico traz como contribuição singular. Quando a pedagogia do oprimido ressalta a importância da educação como veículo para a desalienação sócio-política, indica um caminho essencial. Complementarmente, há necessidade de se atentar, também, para outras formas de opressão. Inúmeras vezes os seus meandros escondem-se em processos emocionais e pouco explícitos. Um vínculo afetivo constitui implicitamente uma atribuição de poder ao objeto do afeto. Ao desvelar as diferentes roupagens do poder nesse plano pessoal-afetivo, a Psicanálise pode contribuir para que mais variadas situações de opressão possam ser reconhecidas e, desse modo, dilatar amplamente o alcance de sua denúncia.

Os escritos de Paulo Freire serviram de orientação para numerosos programas de educação pelas suas novas abordagens no campo do ensino e da aprendizagem. Eu procurei nos seus escritos uma área pouco discutida que é a área das emoções. Paulo Freire coloca que nós necessitamos de certas emoções, como o amor e confiança mútua, para o diálogo. Essas emoções são consideradas essenciais para o processo educacional crítico e racional. De outro lado, Freire fala sobre a necessidade de ultrapassar a emocionalidade a qual parece ser uma das características primárias da consciência ingênua e irracional. De um lado ele considera importante o papel das emoções no processo de desenvolvimento crítico da consciência e, de outro, ele chama a atenção para a irracionalidade delas. Entendo a hesitação de Freire em discutir as emoções em termos de seu conteúdo e desenvolvimento no processo de conscientização, mas por que opor sempre as emoções à racionalidade?

Ele emprega uma divisão entre emoção e razão quando ele discute o processo de transição entre o estágio da consciência ingênua e o estágio da consciência crítica. Ele sustenta que é preciso ultrapassar a compreensão emocional por uma compreensão das causas, o que vale dizer que as emoções em nenhum caso podem ser críticas. Não poderíamos também ter uma visão crítica das emoções e sustentar que as duas coisas – emoção e razão – estão interconectadas? Paulo Freire parece utilizar duas concepções da emoção: de um lado ele vê as emoções como forças acríticas e, de outro lado, ele as vê como elemento essencial da educação crítica. Uma nova visão das emoções que possa nos ajudar a tornar o critério da emoção substantivo e cheio de significado para o diálogo, precisa ainda ser desenvolvida. Esse pequeno texto é apenas uma provocação, uma sugestão para estudos freireanos do futuro. Acredito que novas visões das emoções possam emergir como resultado disso. A reflexão crítica deve ser um primeiro degrau para uma revisão construtiva.

A cigana analfabeta lendo a mão de Paulo Freire…(Chico Cesar, Beradero)