Wanderlust- a busca do objeto transformacional

Durante este período de pandemia procuramos escrever sobre diversos assuntos e não nos ater somente ao vivenciado pelo isolamento social. Refletindo sobre ele, sabemos que neste final de ano as famílias estão pesarosas por não poderem festejar, reunindo-se em grupos menores e temendo o contágio pelo coronavirus. Levaremos um tempo para compreender todo o alcance desta distopia . Trata-se de um momento de deprivação, segundo a visão winnicottiana, pois perdemos algo que tínhamos vivenciado anteriormente: a liberdade de ir e vir, abraçar nossos amigos, ficar perto sem a preocupação de estar espalhando desavisadamente um vírus que pode ser fatal.

Nosso grupo, habituado a reuniões calorosas e regadas a comes e bebes, passou a se reunir por zoom e usar um tempo do espaço de estudo para compartilhar experiências e apoiar-se mutuamente. A possibilidade de estar on-line abriu mais um braço no espaço potencial que pôde ser compartihado e usado para pensar, sonhar e brincar.

Também nos surpreendemos com as possibilidades dos atendimentos virtuais, que consideramos uma adaptação do setting para fazer frente à limitação que a pandemia nos trouxe neste ano . Assim como o enquadre analítico está dentro da mente do analista, também os modos de atender podem se flexibilizar e percebemos como nunca que o espaço potencial acontece mesmo em condições desfavoráveis, bastando para que ele ocorra o encontro e a capacidade de brincar daqueles que se envolvem e se des-envolvem por meio deste encontro.

Neste momento difícil, tivemos de exercitar a nossa capacidade criativa.

Ficou melhor na pandemia quem pôde vivenciar, no início da vida, a experiência da transicionalidade. Para Winnicott, o objeto transicional tem a função de permitir que a separação entre a mãe e o bebê ocorra de um modo positivo , saudável. É algo que o bebê usa como sua primeira posse não-eu, que pode estar no lugar da mãe ausente, e é ao mesmo tempo parte da realidade interna e externa do bebê. Dele deriva o faz-de-conta, o brincar, a possibilidade de ilusão… “O objeto transicional abre espaço para o processo de aceitação da diferença e da similaridade”- nos diz Winnicott em seu livro ” O Brincar e a Realidade”. Ser criativo na pandemia e poder lidar com a deprivação sem enlouquecer ou adoecer dependeu de podermos criar espaços de transicionalidade para lidar com a solidão, o medo e a finitude.

O autor americano Cristopher Bollas, leitor da obra de Winnicott, debruçou-se sobre o conceito de objeto transicional e formulou uma nova idéia : a idéia de objeto transformacional. Para ele, a experiência com o objeto transformacional ocorre ainda anteriormente aos fenômenos transicionais, quando o bebê ainda não se percebe separado de sua mãe. Ele é buscado pela vida toda como aquele objeto que traz ao Self a experiência de unidade, de ser UM com o objeto. O primeiro objeto transformacional é a mãe, que fornece ao bebê, de maneira instintiva, “experiências as quais estão em sintonia com o idioma dele e que, portanto podem provocar uma transformação em seu estado de Self”, diz Sarah Nettleton. Ao crescer, buscamos repetir esta experiência vivida inicialmente com a mãe, buscando objetos que nos traduzam e ao mesmo tempo nos transformem. Neste caso os objetos são prolongamentos de nossa realidade interna.

Como não falar, neste tempo de isolamento e limitação dos deslocamentos físicos, da vontade de viajar, de conhecer lugares novos, de poder encontrar objetos no mundo que nos possam maravilhar e tirar da experiência cotidiana ? Muitas vezes buscamos nas viagens e nos nossos sonhos com lugares distantes a experiência transformacional. Wanderlust, desejo ardente de viajar, pode ser lido também como o anseio pela revivescência de uma experiência transformacional e estética, a busca da novidade que nos traz para mais perto de nós mesmos.

Segundo o site “Significados” ( https://www.significados.com.br ) “wanderlust é uma palavra em alemão que pode ser traduzida como um desejo intrínseco e profundo de viajar.

Ela é formada da junção de outras duas outras palavras alemãs. Wander, que encontra origem no verbo wandern e corresponde à prática da caminhada ou trilha. E lust, que quer dizer luxúria, ou mais que um desejo, uma vontade profunda.

O sentimento representado por wanderlust é de querer viajar pelo mundo mais do que qualquer outra coisa. É de não sentir-se confortável quando se está estável em um local. É um interesse genuíno por conhecer novas culturas e explorar ambientes ainda não conhecidos.

Diz-se do wanderlust que quanto mais se alimenta esta ânsia, mais ela cresce. Mais lugares surgem no mapa para visitar, e mais inquieta por mudar de lugar torna-se a pessoa.”

Wanderlust pode ser também uma saudade de lugares imaginados , idílicos, onde nunca estivemos antes. Como dizia Renato Russo ” meu vício de insistir nessa saudade que eu sinto de tudo que eu ainda não vi”. Num nível profundo, uma busca de natureza estética, e até mística, que nos impele a buscar o objeto transformacional nos lugares, nas obras de arte, nas experiências e nas pessoas.

A possibilidade de trabalho virtual abriu para alguns a chance de deslocamentos outrora inimaginados, enquanto que outros, mais tementes do contágio, ou limitados por outras razões, viveram 2020 dentro de casa e podendo viajar apenas na sua imaginação. Acostumados a viajar e sonhar com viajens, levamos um grande susto com a pandemia que fechou fronteiras e aumentou a desconfiança entre as pessoas, sendo o medo do contágio uma nova roupagem para o medo do estrangeiro que sempre esteve presente em nossas vidas. Um vírus que veio da China para nos lembrar que não somos tão livres assim, que não somos imbatíveis.

Wanderlust, vontade de viajar, tivemos que lidar com a necessidade de ficar em casa e buscar as experiências transformacionais de outra maneira… Que vontade de sair de casa, livremente, encontrar pessoas e viajar! Mas precisamos esperar ainda mais um pouco, e ousar viajar para dentro de nós mesmos, sonhar com o presente e redescobrir no aqui e no agora a beleza de viver.

Cuidar dos pais

Em minha casa de quatro filhas, três de nós estamos longe dos nossos pais. Embora tentemos visitá-lo frequentemente, somente Aline está, de fato, sempre perto. Ela está próxima no dia a dia para as grandes e pequenas coisas. Por causa dela podemos estar tranquilas mesmo na distância. Essa gratidão eu dificilmente conseguiria colocar em palavras.

Sobre o envelhecimento:

A integração psicossomática é conquistada no início da vida e sempre posta à prova, principalmente em fases como a adolescência, a gravidez ou a velhice. Quando o corpo muda ou falha o idoso faz um trabalho psíquico a mais para acomodar-se a este limite que agora vem de dentro. Sempre ouço me contarem que na cabeça somos mais jovens do que o nosso corpo nos diz. Como numa adolescência ao contrário. Na adolescência nos sentimos crianças tendo de nos haver com um corpo adulto. Na envelhescência estamos cheios de vontade e vigor mas o corpo já não nos responde da mesma maneira.

A autonomia, que demoramos tanto a conquistar na vida, não é facilmente abandonada. Vejo idosos aguerridamente brigarem com a família que os dimininui ou infantiliza com o intuito de proteção, deixando de perceber o quanto depender dos outros fere o seu senso de autonomia. Muitos idosos me dizem não temer a morte, e sim a dependência absoluta do outro. A lentificação das habilidades motoras e cognitivas é percebida pelo idoso não sem uma certa relutância! Reconhecer alguns limites da idade é um processo que cada pessoa faz de uma maneira muito própria.

Por isso, o filho que cuida de seus pais está numa posição difícil. Muitas vezes tem que descobrir como oferecer ajuda sem que seus pais se ressintam com isso. É preciso muita delicadeza, doçura , paciência e uma verdadeira capacidade de empatia.

Este belo texto de Valter Hugo Mãe fala de um modo poético sobre cuidar dos pais. 

“A minha mãe é a minha filha. Preciso de lhe dizer que chega de bolo de chocolate, chega de café ou de andar à pressa. Vai engordar, vai ficar eléctrica, vai começar a doer-lhe a perna esquerda.

Cuido dos seus mimos. Gosto de lhe oferecer uma carteira nova e presto muita atenção aos lenços bonitos que ela deita ao pescoço e lhe dão um ar floral, vivo, uma espécie de elemento líquido que lhe refresca a idade. Escolho apenas cores claras, vivas. Zango-me com as moças das lojas que discursam acerca do adequado para a idade. Recuso essas convenções que enlutam os mais velhos. A minha mãe, que é a minha filha, fica bem de branco, vermelho, gosto de a ver de amarelo-torrado, um azul de céu ou verde. Algumas lojas conhecem-me. Mostram-me as novidades. Encontro pessoas que sentem uma alegria bonita em me ajudar. Aniversários ou Natal, a Primavera ou só um fim-de-semana fora, servem para que me lembre de trazer um presente. Pais e filhos são perfeitos para presentes. Eu daria todos os melhores presentes à minha mãe.

Rabujo igual aos que amam. Quando amamos, temos urgência em proteger, por isso somos mais do que sinaleiros, apontando, assobiando, mais do que árbitros, fiscalizando para que tudo seja certo, seguro. E rabujamos porque as pessoas amadas erram, têm caprichos, gostam de si com desconfiança, como creio que é normal gostarmos todos de nós mesmos. Aos pais e aos filhos tendemos a amar incondicionalmente mas com medo. Um amigo dizia que entendeu o pânico depois de nascer o seu primeiro filho. Temia pelo azedo do leite, pelas correntes de ar, pelo carreiro das formigas, temia muito que houvesse um órgão interno, discreto, que disfuncionasse e fizesse o seu filho apagar. Quem ama pensa em todos os perigos e desconta o tempo com martelo pesado. Os que amam sem esta factura não amam ainda. Passeiam nos afectos. É outra coisa.

Ficar para tio parece obrigar-nos a uma inversão destes papéis a dada altura. Quase ouço as minhas irmãs dizerem: não casaste, agora tomas conta da mãe e mais destas coisas. Se a luz está paga, a água, refilar porque está tudo caro, há uma porta que fecha mal, estiveram uns homens esquisitos à porta, a senhora da mercearia não deu o troco certo, o cão ladra mais do que devia, era preciso irmos à aldeia ver assuntos e as pessoas. Quem não casa deixa de ter irmãos. Só tem patrões. Viramos uma central de atendimento ao público. Porque nos ligam para saber se está tudo bem, que é o mesmo que perguntar acerca da nossa competência e responsabilizar-nos mais ainda. Como se o amor tivesse agentes. Cupidos que, ao invés de flechas, usam telefones. E, depois, espantam-se: ah, eu pensei que isso já tinha passado, pensei que estava arranjado, naquele dia achei que a doutora já anunciara a cura, eu até fiz uma sopa, no mês passado até fomos de carro ao Porto, jantámos em modo fino e tudo.

Quando passamos a ser pais das nossas mães, tornamo-nos exigentes e cansamo-nos por tudo. Ao contrário de quem é pai de filhas, nós corremos absolutamente contra o tempo, o corpo, os preconceitos, as cores adequadas para a idade. Somos centrais telefónicas aflitas.

Queremos sempre que chegue a Primavera, o Verão, que haja sol e aqueçam os dias, para descermos à marginal a ver as pessoas que também se arrastam por cães pequenos. Só gostamos de quem tem cães pequenos. Odiamos bicharocos grotescos tratados como seres delicados. O nosso Crisóstomo, que é lingrinhas, corre sempre perigo com cães musculados que as pessoas insistem em garantir que não fazem mal a uma mosca. Deitam-nos as patas ao peito e atiram-nos ao chão, as filhas que são mães podem cair e partir os ossos da bacia. Porque temos bacias dentro do corpo. Somos todos estranhos. Passeamos estranhos com os cães na marginal e o que nos aproveita mesmo é o sol. A minha mãe adora sol. Melhora de tudo. Com os seus lenços como coisas líquidas e cristalinas ao pescoço, ela fica lindíssima. E isso compensa. Recompensa.

Comemos o sol. Somos, sem grande segredo, seres que comem o sol. Por isso, entre as angústias, sorrimos.”

(Via Público– retirado de Cuidar dos pais | Casa de papel | PÚBLICO (publico.pt)

https://www.publico.pt/2015/03/29/sociedade/opiniao/cuidar-dos-pais-1690432

Na primeira febre, a minha febre
E quem é quem pedindo proteção?
Ponho a mão na testa do meu neto
E é meu avô que está estendendo a mão

Nessa comunhão dos três
Eu sou avô do meu avô
Ele é o menino ali
E ri das confusões
Que o grande amor pode fazer
É um milagre essa multiplicação
De mãos e febres por buscar ternura
E então com medo de morrer
A fragilíssima trindade jura
Ficaremos sempre assim por perto
E quando meu neto tiver neto
Uma febre unindo o que passou
Dirá pro tempo: oi, meu avô

É por aí: um piano em debussy
O morcego e o sapoti na praia dos coqueiros
O avô sou eu numa bicicleta
De canelas finas, mexe com as meninas

Explode a trovoada, a chuva canta
E a enxurrada leva todos nós
Fracionados sim, mas fusionados
Rumo ao delta, à queda, ao fim, à foz

E uma vez que voltaremos
Numa febre que menino-avô terei
Até o filósofo sorri

“é o mesmo rio. eu me enganei”

( Adir Blanc- Cristóvão Bastos : Acalanto para netos).

A mãe suficientemente má

“Esse problema…se torna gradativamente um problema óbvio, devido ao fato que a principal tarefa da mãe ( além de fornecer a oportunidade da ilusão) é a desilusão. Isso antecede a tarefa do desmame e também continua a ser uma das tarefas dos pais e educadores.”

Winnicott ( em “o brincar e a realidade”)

Pensando por aqui… uma pergunta às mães… você é uma mãe suficientemente má? O que Winnicott quer dizer quando diz que a principal tarefa da mãe, além de permitir ao bebê a ilusão de que ele cria o mundo, nos estágios iniciais, é justamente desiludi-lo em seguida?

Aqui faço uma brincadeira, porque pensando por este prisma a mãe suficientemente má… é boa. E a mãe boa-demais-da-conta: é má !!! Isso pode parecer um jogo bobo de palavras mas na dialética do processo de ilusão- desilusão a dança entre a mãe e o bebê muda de ritmo conforme ele pode acompanhar, cada vez mais veloz , cada vez mais capaz, as variações do mundo. A desilusão é parte do crescimento . A diferenciação entre o Si mesmo e o outro, tão dolorosa, mas tão vital para o convívio em sociedade, deriva do amor parental . Em algum momento você dirá para seu filho: Alto lá!!! Tem mais alguém aqui! E a criança cairá do seu pedestal. Ser uma mãe suficientemente má é deixar o bebê dormir sozinho, ter outros interesses, permitir que ele desmame, trazer e facilitar a entrada de outras pessoas na vida dele… e curtir aquele gostinho amargo de descobrir que ele já não precisa tanto de você, porque cresceu. Doce amargo gosto de permitir-se ser desnecessária.

Quando a mamãe sai de cena coisas boas podem acontecer.

O mundo em pequenas doses… assim o bebê vai sendo apresentado à vida até que seja capaz de reagir ao mundo, negociar com ele, deixar-se enlaçar pela realidade. Em um dado momento sabemo-nos separados e únicos. Não é fácil. Embora dentro de cada um de nós haja ainda uma criança que busca meios de controlar, negar ou modificar a realidade, a desilusão inicial que nos fez enxergar mamãe como uma pessoa inteira e fora da área de nosso controle onipotente nos tornou mais humanos.

” presumimos que a aceitação da realidade é uma tarefa que nunca é completada, pois nenhum ser humano está livre da tensão causada pela relação entre as realidades interna e externa.!”

Pois sim. Nascer é muito comprido?

Essa frase do poeta me inspira a pensar no contínuo processo de constituir um Si mesmo, dependente e solitário ao mesmo tempo, à medida que as desilusões da vida vão se acumulando como pedras no caminho. Com a imagem de um caminho pavimentado por essas pedras , podemos pensar a jornada da criança que teve a sorte de ter uma mãe imperfeita.

Outro dia numa live com os pais falávamos da diferença entre traumatizar a criança e frustrá-la. Há hoje em dia um certo medo de traumatizar o filho que deixa muito pai e mãe perdidos e confusos, esquecendo que a tarefa de desiludir é tão importante quanto a de gratificar a criança.

E o pulo do gato é conseguir, como na dança, pegar o ritmo, mudar de ritmo, conforme pode a criança suportar as frustrações . Quando se está na área da NECESSIDADE, quando se ainda é frágil para lidar com o mundo sem o anteparo materno, não podemos falar de frustração, e sim de privação. No início a adaptação da mãe ao bebê é quase total. Adivinha se ele tem frio, fome, cuida dele e o alimenta. Mas se tudo corre bem, o bebê cresce. A mãe ou o pai bons demais da conta subestimam a capacidade de seu filho de se firmar sobre as próprias pedras. Sobre as próprias pernas.

Se te parece que o amor é só bondade e ternura, solicitude e gratificação sem limites…isso não existe nem mais nos filmes da Disney! Toda mãe pode enjoar um pouco do seu bebê, desejar seu espaço, dizer não a ele e “dividi-lo” com as outras pessoas amorosas que os cercam; papai, vovôs, a escola…

E você? Considera-se uma mãe suficientemente má?

Sia – Courage To Change | Malévola (Tradução / Legendado) – YouTube

Em “Malévola” a fada das trevas acaba por se revelar não tão malvada assim… Uma história bonita para assistir e pensar.

Ser e Ter


Como toda a criança, o meu imaginário era povoado por personagens e histórias imaginadas que muito me atraiam e, ao mesmo tempo, provocavam fascínio e medo.

A minha casa era muito grande e tinha dois quintais, um de cimento e outro de terra. O quintal que mais me fascinava era o de terra. Lá havia muitas árvores, pássaros, insetos e junto com os meus irmãos e primas mais velhas imaginávamos histórias que por vezes eram carregadas de mistérios e que me davam muito medo mas, ao mesmo tempo, me encantavam.

Fazíamos tudo juntos e misturados. Esse convívio era muito divertido e prazeroso.

Ao ver o filme Ser e Ter (2002) do diretor, Nicolas Philibert revivi aqueles momentos da minha infância onde aprendemos juntos o que é cooperar, competir e respeitar o outro.

É um filme que fala sobre o amadurecimento humano e o processo de crescimento e aprendizagem.

O professor é um personagem muito interessante e me atrevo-me a dizer que ele é um professor “suficientemente bom”. Não é extremamente acolhedor, mas, corresponde com interesse ao que as crianças necessitam para aprender.

Segundo Winnicott, pediatra e psicanalista inglês, o ser humano traz em si as potencialidades do viver e do amadurecer. O professor respeita o espaço e o ritmo de cada criança, facilitando a compreensão do que está sendo ensinado.

Por outro lado a aprendizagem é partilhada, não importa a idade das crianças, elas aprendem juntas habilidades emocionais como empatia e flexibilidade- tão necessárias para se viver cooperativamente em uma sociedade.

As habilidades emocionais são tão relevantes quanto as cognitivas.

No cotidiano das aulas aparece o aluno Jojo que demonstra certa indisciplina e isso provoca nas crianças reações mais diversas como rigidez, cooperação ou indiferença.

Uma das belezas do filme, é a determinação do professor em ser assertivo com as crianças, ele é tolerante e não fornece as respostas das perguntas que ele faz sobre as disciplinas que está ensinando. Mas orienta o caminho que a criança pode percorrer para chegar na resposta certa.

Este filme é um bom disparador para repensarmos a educação, que, ao longo dos anos, tem dado primazia para o controle dos espaços de convivência nas escolas deixando de aproveitar esses mesmos espaços para desenvolver habilidades sócio educativas.

Em tempos de pandemia, neste momento, os pais podem considerar estas mesmas habilidades no dia a dia em casa solicitando a cooperação das crianças nas tarefas mais simples e estimulando sua curiosidade. Infelizmente para os muito pequenos e mesmo para alguns maiorzinhos o ensino online parece não estar funcionando bem, pois, como bem mostra o filme Ser e Ter, a presença do mestre e o fazer junto é essencial. Por outro lado, talvez não tenhamos outra oportunidade para estar tão perto deles, compartilhando, ensinando e aprendendo juntos o que é mais importante: Ser!

No link abaixo você pode ver o filme todo, disponível no youtube.

Aspectos da experiência do Self

Brincava a criança 
Com um carro de bois. 
Sentiu-se brincado 
E disse, eu sou dois ! 

Há um brincar  
E há outro a saber, 
Um vê-me a brincar 
E outro vê-me a ver. 

No livro “Sendo um Personagem” ( Being a character- de Cristopher Bollas-1992) encontramos a definição do Self como um idioma pessoal, que busca os objetos do mundo para se expressar. Assim, os objetos e as escolhas de uma pessoa falam muito sobre ela. De certa forma, pessoas e coisas, atividades e entretenimentos com os quais nos ocupamos são receptáculos de partes de nós mesmos na busca por ressonância para a expressão de nosso Self mais profundo.

Os objetos do mundo nos modificam, também, ao evocar sentido para nós, principalmente no caso dos encontros com as pessoas que nos cercam. No encontro das subjetividades, em sua maravilhosa diferença, modificamo-nos mutuamente. A diferença é maravilhosa e é uma parte notável da nossa vida: na problemática do encontros e desencontros é que o des-envolvimento ocorre.

Saint Exupéry diz, em ” Terra dos Homens” que a verdade da laranjeira é o solo onde ela frutifica e lança sólidas raízes. Se neste solo, e não em outro, a laranjeira floresce, este solo é a sua Verdade. A busca pelo desenvolvimento , presente em todo ser vivo, está em nós e nos direciona para o mundo no sentido da busca dos objetos, que são como as teclas de um piano a tocar nossas cordas internas. A alegria do encontro é uma bem aventurança se libera o nosso idioma e produz frases musicais que nos ajudam a ouvir a nós mesmos.

Além disso, é da condição humana o refletir sobre si mesmo, poder pensar-se. Em processos psicoterápicos, muitas vezes, ao ouvir a própria voz narrando fatos, ou percepções, o eu se surpreende com uma descoberta sobre si mesmo. Mas o interessante é que o falar para alguém tem uma qualidade diferente do falar sozinho. Quando alguém nos escuta, desta maneira especial, novos caminhos se abrem para o auto-conhecimento.

Brincava a criança 
Com um carro de bois. 
Sentiu-se brincado 
E disse, eu sou dois ! 

Há um brincar  
E há outro a saber, 
Um vê-me a brincar 
E outro vê-me a ver. 

Estou atrás de mim 
Mas se volto a cabeça 
Não era o que eu qu’ria 
A volta só é essa…

É próprio do ser humano pensante e falante o reflexionar-se sobre si mesmo. Quando estamos mergulhados numa experiência, ou mesmo num sonho, por vezes deixamos de funcionar nesta irônica cisão que nos constitui, e sentimos , no aqui e no agora , estar totalmente presentes. Mas logo este outro EU observador é percebido como que nos vendo de fora, a narrar o que se passa.

Brincava a criança 
Com um carro de bois. 
Sentiu-se brincado 
E disse, eu sou dois ! 

Há um brincar  
E há outro a saber, 
Um vê-me a brincar 
E outro vê-me a ver. 

Estou atrás de mim 
Mas se volto a cabeça 
Não era o que eu qu’ria 
A volta só é essa…

O outro menino 
Não tem pés nem mãos 
Nem é pequenino 
Não tem mãe ou irmãos.  

E havia comigo 
Por trás de onde eu estou, 
Mas se volto a cabeça 
Já não sei o que sou. 

E se os deuses são deuses porque não se pensam, somos humanos porque nos narramos continuamente. No atendimento aos adolescentes, que estão passando pelo momento da busca e confirmação da identidade, é comum notar o júbilo com que apresentam para nós as histórias, séries e jogos preferidos, ávidos por falar de si desta maneira especial, revelando-se sem romper a privacidade do Self. Contam-nos detalhes das histórias e desta maneira nos deixam entrever quem são, o que fantasiam, o que temem, o que desejam. Perguntamos sobre os amigos, como são, e que fazem, e assim passamos a saber um pouco mais sobre o nosso adolescente em questão.

O relacionamento com os objetos do mundo também é sujeito a um tanto de acaso… A capacidade de ser poroso à experiência tem a ver com conceito winnicottiano de terceira área. No interjogo entre o eu e o outro, seja este outro um alguém ou um objeto material, busco a mim mesmo mas ao mesmo tempo me deparo com a alteridade do outro, com a natureza da coisa ou objeto. Em dado momento eu leio o objeto com as lentes do meu pensamento, em dado momento sou influenciado por ele, e enfim em algum nível nos encontramos numa rede de significações que é ao mesmo tempo dele, e nossa: a terceira área. A conquista deste espaço potencial não é sempre garantida. Na melancolia, na ansiedade extrema , o eu não pode se permitir estar neste espaço que representa, de certa forma, uma perda de controle. Ao atravessar a ponte que liga o eu e os objetos do mundo, posso aventurar perder-me, para depois voltar, enriquecido pela experiência.

E o tal que eu cá tenho 
E sente comigo, 
Nem pai, nem padrinho, 
Nem corpo ou amigo, 

Tem alma cá dentro 
‘Stá a ver-me sem ver, 
E o carro de bois 
Começa a parecer. 

Fernando Pessoa

Os deuses são deuses porque não se pensam…porque não se pensam

Abaixo o link de spotfy de vários poemas musicados de Pessoa… é necessário estar logado no Spotfy.

Adeus à loucura

Fazer-se cuidar é um processo ativo que envolve bem pouco do que costumamos chamar de adaptação. Adaptação tem um sentido impotente de conformar-se ou adaptar-se às situações, pagando preços por vezes altos demais. A resistência oferecida por esses meninos às situações adversas nos faz pensar em um outro processo, no desenvolvimento de habilidades depassivadoras, e, ao mesmo tempo, produzir ressonância com um outro apesar das diferenças.

Visando ampliar o horizonte ético do tratamento das psicoses em crianças e adolescentes, e contribuir para a memória coletiva, este artigo narra o percurso de um hospital-dia na rede pública paulistana.

Leia o artigo na integra no link abaixo:

Sociedade Civil Percurso – NP (uol.com.br)

p16_texto03.pdf (uol.com.br)

A mãe, a bruxa e outros contos de fada

Ontem aconteceu a jornada de saúde mental da mulher no Hospital das Clínicas : no dia das bruxas. Ótima oportunidade para não jogar mais uma vez a mulher na fogueira. Hoje reunimos pessoas que trabalham com a perinatalidade. Na busca de um olhar multiprofissional sobre os transtornos, sincronicidade : chegar ao que transtorna as mulheres. Pudemos pensar no conceito winnicottiano de preocupação materna primária, um pouco enviesado, talvez, por uma certa idealização da mulher. Pudemos falar da escassez de trabalhos sobre a saúde mental paterna e sobre o preconceito em tratar a mãe com doença mental. É bom ver falar pessoas que fazem do cuidado com a perinatalidade uma parte da sua vida, como a Érika, com seus anos de experiência com a amamentação, e o Dr Galetta, contando que os obstetras adoram “puxar a orelha das pacientes” e tem medo de perguntar sobre saúde mental. Nas revisões cuidadosas de Rodrigo, Alexandre e Joel sobre as medicações que não fazem mal, quando se amamenta ou se está grávida. Nas perguntas dos participantes e nas explicações de Leiliane, sobre o trabalho com a respiração na ansiedade materna. O que se ouve dessas palavras é a experiência de pessoas que tem um lugar de fala, que falam com o coração. E assim falam ao coração.

Quando a Vera chegou, trouxe seu ponto de vista, sobre como a fala de Winnicott sobre a aptidão materna pode trazer a idéia de que haveria uma naturalidade neste amor, assim tornado jugo e destino. Alexandre em sincronicidade lembrou do pensamento junguiano, do arquétipo que pertence a todos nós, homens, mulheres, cis, trans- arquétipo materno. Como descolar da imagem da mulher a função materna que cabe a todos nós desempenhar- pensamento com certeza subversivo e que nos desafia a rever conceitos e palavras que repetimos sem perceber?

Nem bruxa, nem fada, a mãe é alguém que pode tentar, ou não. Pode dar de mamar, ou não. Pode adotar sua cria, ou não. Mas certamente não poderíamos ter existido como pessoas sem ter tido alguém para cuidar de nós no início da vida. O que precisamos aprender a ver é que a idealização da mãe provém mesmo de um medo e de um segredo que todos conhecemos desde sempre, de que sem o amor do outro nada somos, nada seremos.

Ontem, além de termos aprendido um pouco mais sobre tantas coisas, pensar foi bom, pensar o paradoxo que nos define como pessoas humanas, solitárias e dependentes ao mesmo tempo.

Diz a lenda que se você entrar no banho e gritar 3 vezes MÃE aparece uma mulher e te leva a tolha que você esqueceu. Essa frase engraçadinha fala da função materna- essa que faz com que alguém quase que adivinhe o que você precisa, no momento exato, na hora oportuna. Um tipo de bruxa, ou fada, dotada de poderes mágicos e adivinhatórios. Mas e se você entrar no banho e gritar 3 vezes TOALHA, ou PAPAI, ou VOVÓ?

Crescer é poder levar humildemente sua própria toalha ao banho… mas não se esquecer de como é bom estar mergulhado numa água bem quentinha. Acreditar em bruxaria dá medo demais. Pessoa crescida não deve de ter prazer em botar o outro na fogueira, por causa de um medo-segredo muito conhecido-desconhecido.

Agora, mãos à obra, há muito a fazer.

Obrigada a todos que estiveram nesta jornada, Maíra sempre presente, e à Patrícia, Rafael e Thiana que tornaram possível a execução de todo o projeto.

A Partida

“Deixamos Bernardo em sua sepultura

 De tarde o deserto já estava em nós”

     Manoel de Barros

https://youtu.be/i6E76_gti2w

Observação: o texto revela o roteiro do filme [ALERTA DE SPOILER]

O filme A partida, do diretor japonês Yôjirô Takita, é um convite a uma travessia pelo universo onírico da música e da fotografia. Através da arte oferece sustentação e delicadeza para os sentimentos envolvidos no trabalho do luto.

O luto envolve a dor da perda e exige trabalho psíquico. A morte e a vida estão entrelaçadas fora e dentro de nós, e o filme favorece um mergulho estético entre os acordes da música e das imagens, e mesmo após o seu final ainda sentimos ressoar a sua envolvente e profunda melodia. O filme foi ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro de 2009 e foi inspirado na biografia de Aoki Shinmon Coffinman, que narra em seu diário de agente mortuário budista o seu trabalho com os mortos. Y. Takita cria assim um filme delicado e envolvente.                                   

Daigo Kobayashi é um violoncelista da orquestra de Tokyo que perde seu emprego após sua dissolução : neste momento inicia a primeira “Partida” que ocorre no filme. O músico parte com a esposa para a sua cidade natal e vende o seu violoncelo pela dificuldade financeira . Isso lhe traz alívio e revela assim a trama de emoções que o ligam a música e que vamos aos poucos conhecer. Vai morar no interior na casa que a mãe falecida havia lhe deixado de herança e inicia também uma partida para seu interior, sua infância  e  lembranças. Daigo deixa a sua vida em Tokyo e a música e procura um emprego na cidade natal. A oferta de emprego surge a partir de um equívoco de comunicação no anúncio do jornal que supôs ser de uma agência de viagem e no entanto, tratava do preparo dos mortos em um ritual tradicional. A função oferecida no anúncio é ser um nôkanshi– um agente mortuário- que limpa, prepara, maquia e coloca o morto no caixão na presença da família em um ritual de despedida.

O encontro com o patrão que faz o trabalho se inicia de forma difícil, sendo o primeiro trabalho com um corpo já em estado de decomposição, o que o deixa impregnado do cheiro  da morte.  Este ofício no Japão não é bem visto e Daigo esconde seu trabalho da esposa . Sente também  a repulsa dos amigos. Porém, a maneira do patrão executar o ritual  o surpreende e o comove. Percebe a elegância dos gestos solenes do nôkanshi , a delicadeza do respeito e a demonstração de cuidado e carinho. Ele oferece assim, com os seus gestos , uma sustentação sem palavras, como um maestro a expressar sentimentos que tocam os familiares do morto.  No último encontro, no momento de despedida do morto, o nôkanshi  faz uma maquiagem que traz novamente a beleza da lembrança daquela pessoa em vida,  e auxilia a despedida neste momento tão difícil. O ritual ajuda a conter  e sustentar os dramas familiares.

Daigo encontra o seu violoncelo da infância, lembrança de sua ligação com o pai que partiu quando ele tinha 6 anos de idade e do qual não conseguia , nas suas lembranças, ver o rosto. Recorda de um momento importante, quando trocaram pedras- antigamente ,antes da escrita, as pessoas davam pedras umas às outras em sinal de afeto. A sua pedra estava em seu violoncelo, e nesta noite após este primeiro trabalho e no difícil primeiro encontro com a morte, toca para dar vazão a seus sentimentos, transformando em arte o que o assombra. O filme conduz ao encontro consigo mesmo e ao reencontro com a sua história de vida. A importância que descobre neste novo trabalho dá um novo sentido à sua vida. Mesmo quando a esposa Mika descobre e vai embora por não aceitar este trabalho tão mal considerado,  Daigo recorda suas experiências com os rituais  e não desiste.

O filme A Partida abarca as muitas perdas e separações que vivemos em nosso processo constitutivo humano. A separação dos pais que no caso do personagem foi traumática e se reflete no seu sentimento de fracasso pessoal.  Nesta travessia ele vai se transformando e integrando as experiências vividas. A esposa volta e revela que ele será pai, e novamente a vida e a morte se entrelaçam. Após assistir o ritual que Daigo realiza com uma amiga da família, a dona da casa de banhos que o via chorar na infância pela dor da perda do pai, a esposa percebe a delicadeza, beleza e nobreza dos gestos do marido e passa a aceitar e compreender seu trabalho . A convivência com o patrão e a secretária do trabalho oferece a Daigo a família perdida… -É comovedora a cena em que ele agasalha o patrão que dorme e nos faz perceber seu sentimento de falta do pai perdido.

Um dia recebe a notícia da morte de seu pai. Amparado pela esposa, apesar da resistência inicial, parte para se despedir do pai, para o reencontro com o pai agora morto mas sempre presente nos acordes da sua música. Desta vez está na cena como a família que assiste, mas quando vê a inabilidade dos agentes que fariam o serviço, os tira da situação e resolve ele mesmo realizar o ritual de preparo do corpo. Quando encontra a pedra que havia dado ao pai, se restabelece uma ligação. A pedra simbolizava uma ligação com o pai que ele julgava perdida, e através daquela pedra o pai narrava em seu silêncio mortífero a presença do filho para ele. O rosto do pai pode finalmente compor a sua memória, nesta cena tocante em que prepara o filho prepara o pai para a partida sob os acordes da música. Ficamos comovidos.

Este filme ,através da delicadeza, criatividade e sensibilidade do diretor em tratar de temas tão difíceis, nos oferece em sua poética elementos fundamentais para -como diz o poeta Manoel de Barros- nos tirar do deserto e auxiliar no trabalho de elaboração do luto.

Carla Braz Metzner

A Função materna

” Entender os outros não é uma tarefa que comece nos outros. O início somos sempre nós próprios, a pessoa em que acordámos nesse dia. Entender os outros é uma tarefa que nunca nos dispensa. Ser os outros é uma ilusão. Quando estamos lá, a ver aquilo que os outros veem, a sentir na própria pele a aragem que outros sentem, somos sempre nós próprios, são os nossos olhos, é a nossa pele. Não somos nós a sermos os outros, somos nós a sermos nós. Nós nunca somos os outros. Podemos entendê-los, que é o mesmo que dizer: podemos acreditar que os entendemos. Os outros até podem garantir que estamos a entendê-los. Mas essa será sempre uma fé. Aquilo que entendemos está fechado em nós. Aquilo que procuramos entender está fechado nos outros.”

José luis Peixoto; “Em teu ventre”

Falando de fé.

Existe uma coisa que é a fé: um sentimento e uma certeza que não se pode explicar. Falamos para nos comunicar, acreditamos. O que você ouve? Acredito que você me ouve. Acredito que sabe que sentido estas palavras tem para mim. Acredito que, na nossa linguagem comum, compartilhamos palavras e sentidos. Você me escuta? O que você escuta? Tento te contar alguma coisa, compartilhar algo. Um pensamento, uma história, um pedido.

Mas às vezes sua cabeça funciona como o corretor automático do whatsap. Vai completando as palavras, terminando a minha frase antes que ela acabe. Não me espera terminar. Também não te espero. Exaspero. De onde vem esta fé de ser compreendido?

Não perco a fé, recomeço.

Gostaria de não precisar das palavras. Você brinca comigo, você diz : será que vou ter que desenhar? Quem sabe.

Quem dera a gente pudesse e soubesse desenhar assim. Se tivesse uma penseira, que nem aquela da história do Harry Potter. A penseira uma bacia grande em que os pensamentos refletidos em imagens e cenas pudessem ser observados de fora. A penseira é o sonho? E se eu te contar o meu sonho?

Mas não me lembro mais. Ao pensar no sonho, ele já se escorrega para o fundo da penseira. Conto uma história do meu sonho, uma narrativa do sonho. Mas o sonho já me escapuliu. Nem eu sei do meu sonho.

E não sei se era bem isso… não sei… Não era bem isso que eu queria dizer. Se tudo é mal-entendido… existe bem-entendido? Será que a gente poderia vir ao mundo com uma tecla SAP? Uma legenda … veja bem… uma tabuleta luminosa com explicações . Que idioma, que léxico, compartilhamos – ou não?

Longe, muito longe, era uma vez. Quando eu não podia falar já falavam comigo. Alguém falou por mim meu sono, minha fome. Alguém me disse que eu estava assustado de noite, era escuro. Alguém soube da minha dor de barriga e me colocou de bruços, foi bom. Quem é você, que fala comigo antes que eu me fale? Quem é você, meu cobertor, minha geladeira e meu microondas, meu carro, meu patinete, meu balanço ? Quem é este cheiro familiar, este barulhinho de água esquentando, quem é esta água em que me mergulham para eu brincar? Quem é esta voz que se aproxima e se afasta, nesta certa tonalidade, que me faz dormir? Quem me veste estes panos macios, coloca meias nos meus pés, que eu tiro sem perceber.

Fé. Eu não me esqueço destas memórias das quais não me lembro bem… hoje são fé. Falo com você porque acredito. Espero, porque acredito, que possamos nos bem entender. À parte os mal entendidos … Um dia me adivinharam , hoje quero te falar.

Um dia me pensaram, me sonharam.

Hoje sou.

A função materna resta em fé.

Acima: Uma mãe adotiva dando ao pequeno Leitão assustado a experiência de um banho!

O sono dos bebês

por Gilca Zlochevsky

  Os bebês acordam muitas vezes ao longo da noite, sobretudo, no primeiro ano de vida. Os conceitos de Donald Winnicott de integração e não-integração me pareceram interessantes para nos aproximar desse fenômeno. A integração surge gradualmente a partir de um estado primário não integrado. O repouso representa um retorno ao estado não integrado. Esta volta não é necessariamente assustadora para o bebê se a mãe lhe assegura um sentimento de segurança principalmente na maneira que o bebê é acolhido. A integração parece relacionada às experiências emocionais ou afetivas mais definidas tais como a raiva ou excitação ligada à amamentação. Muitos bebês acordam, precisam do colo e também do seio para se sentirem novamente integrados, voltarem a dormir e retornar ao estado não-integrado. Os pais ficam aflitos uma vez que são crianças espertas, estão se desenvolvendo muito bem mas  evidenciam nestes movimentos que são bebês e necessitam serem vistos como tal. Estas oscilações variam muito de um bebê para outro. A posssibilidade da mãe poder reconhecer esses estados, tolerá-los e atender ao bebê, apesar do cansaço que isso representa, ajuda a criança aos poucos ir se reassegurando que ela não vai cair num abismo, nem mesmo se desintegrar. 

Quando estamos na área da necessidade, não se tem tempo de esperar a hora

Que jogo é esse?

“Ao pensar sobre a possibilidade do casamento cada um deveria se fazer a seguinte pergunta: “Você crê que seria capaz de conversar com prazer com esta pessoa até a sua velhice?”. Tudo o mais no casamento é transitório, mas as relações que desafiam o tempo são aquelas construídas sobre a arte de conversar.” Rubem Braga

Está difícil essa quarentena. Para quem está em casa, para quem está doente, para os idosos com medo, para as crianças sem escola. Para quem não está doente, para os que se alienam numa casa na praia da Baleia com três babás- sim, alienar-se traz um custo também. O mundo não vai parar de bater na nossa porta mesmo que ela não seja ela um barracão de zinco sem janela e sem trinco. Uma gaiola de ouro ainda é gaiola, e todo ensimesmamento cobra um preço, empobrece a alma, endurece o coração. Os otimistas esperam e os desesperados tem seus temores confirmados; para eles o mundo não será como antes, agora o medo tem nome .

Mas este recado aqui vai para os casais. Àqueles que estão se fazendo companhia neste momento particular, fora do combinado, não estando de férias, nem em recesso, não sabendo quando vai terminar. Aos que se encontram sob a luz fria da solidão à dois.

Gostaríamos de dizer algumas coisas. O amor é coisa difícil. Amor começa tarde e felicidade não é obrigação. E, como dizia o meu dentista Carlão lá de Guaxupé, casamento é coisa de profissional, não é para amador, não. Para Winnicott, ter concernimento, cuidar de um outro, reconhecer mesmo o outro, é processo de amadurecimento e nunca termina de acontecer na nossa vida. A vida toda, nos relacionamos com o outro e com a idéia que fazemos dele, negamos e aceitamos a sua alteridade, focando e desfocando a sua imagem conforme a nossa cegueira particular. É possível enxergar o outro, ou mesmo a nós mesmos? Quanto dói perder a ilusão… pode-se viver sem ilusões?

Talvez essas perguntas não tenham mesmo resposta ou morem na filosofia. Amor rima com dor – diz o poeta. Mas sempre podemos conversar. A arte de conversar, que pode ser aprendida, que a psicanálise preza, é metaforizada por Rubem Braga como um jogo de frescobol. Rubem Braga, capixaba, grande cronista, sensível artista. Vejamos o que ele diz:

“Depois de muito meditar sobre o assunto concluí que os casamentos são de dois tipos: há os casamentos do tipo tênis e há os casamentos do tipo frescobol. Os casamentos do tipo tênis são uma fonte de raiva e ressentimentos e terminam sempre mal. Os casamentos do tipo frescobol são uma fonte de alegria e têm a chance de ter vida longa. Explico-me. Para começar, uma afirmação de Nietzsche, com a qual concordo inteiramente. Dizia ele:

Xerazade sabia disso. Sabia que os casamentos baseados nos prazeres da cama são sempre decapitados pela manhã, terminam em separação, pois os prazeres do sexo se esgotam rapidamente, terminam na morte, como no filme O império dos sentidos. Por isso, quando o sexo já estava morto na cama, e o amor não mais se podia dizer através dele, ela o ressuscitava pela magia da palavra: começava uma longa conversa, conversa sem fim, que deveria durar mil e uma noites. O sultão se calava e escutava as suas palavras como se fossem música. A música dos sons ou da palavra – é a sexualidade sob a forma da eternidade: é o amor que ressuscita sempre, depois de morrer. Há os carinhos que se fazem com o corpo e há os carinhos que se fazem com as palavras. E contrariamente ao que pensam os amantes inexperientes, fazer carinho com as palavras não é ficar repetindo o tempo todo: “Eu te amo, eu te amo…”. Barthes advertia: “Passada a primeira confissão, ‘eu te amo’ não quer dizer mais nada”. É na conversa que o nosso verdadeiro corpo se mostra, não em sua nudez anatômica, mas em sua nudez poética. Recordo a sabedoria de Adélia Prado: “Erótica é a alma”.

O tênis é um jogo feroz. O seu objetivo é derrotar o adversário. E a sua derrota se revela no seu erro: o outro foi incapaz de devolver a bola. Joga-se tênis para fazer o outro errar. O bom jogador é aquele que tem a exata noção do ponto fraco do seu adversário, e é justamente para aí que ele vai dirigir a sua cortada – palavra muito sugestiva, que indica o seu objetivo sádico, que é o de cortar, interromper, derrotar. O prazer do tênis se encontra, portanto, justamente no momento em que o jogo não pode mais continuar porque o adversário foi colocado fora de jogo. Termina sempre com a alegria de um e a tristeza de outro. O frescobol se parece muito com o tênis: dois jogadores, duas raquetes e uma bola. Só que, para o jogo ser bom, é preciso que nenhum dos dois perca. Se a bola veio meio torta, a gente sabe que não foi de propósito e faz o maior esforço do mundo para devolvê-la gostosa, no lugar certo, para que o outro possa pegá-la. Não existe adversário porque não há ninguém a ser derrotado. Aqui ou os dois ganham ou ninguém ganha. E ninguém fica feliz quando o outro erra – pois o que se deseja é que ninguém erre. O erro de um, no frescobol, é como ejaculação precoce: um acidente lamentável que não deveria ter acontecido, pois o gostoso mesmo é aquele ir e vir, ir e vir, ir e vir… E o que errou pede desculpas, e o que provocou o erro se sente culpado. Mas não tem importância: começa-se de novo este delicioso jogo em que ninguém marca pontos…

A bola: são as nossas fantasias, irrealidades, sonhos sob a forma de palavras. Conversar é ficar batendo sonho pra lá, sonho pra cá…”

Esta metáfora do jogo de frescobol é útil para pensar também a psicanálise, na sua vertente intersubjetiva. Muita gente boa na psicanálise vem falando sobre este frescobol que acontece numa sessão, a possibilidade de brincar de verdade com os sentidos que envolvem as palavras que dizemos. Reconhecer que entre dois existe sempre um terceiro : o entre-dois, aquele que criamos juntos, na relação. Somos nós e os nós que se formam nesse laço que tecemos a dois.

A experiência do frescobol, numa análise ou numa conversa boa, é proveitosa e inesquecível. Pode ser rara no casamento, que (penso diferente do Rubem Braga) tende a ter seus momentos de frescobol entremeados entre as ferozes cortadas do tênis jogado a dois, em diferentes medidas conforme o momento e a constituição de cada casal. Criar e destruir o outro faz parte da experiência.

Tênis é assim: recebe-se o sonho do outro para destruí-lo, arrebentá-lo, como bolha de sabão… O que se busca é ter razão e o que se ganha é o distanciamento. Aqui, quem ganha sempre perde.

Já no frescobol é diferente: o sonho do outro é um brinquedo que deve ser preservado, pois se sabe que, se é sonho, é coisa delicada, do coração. O bom ouvinte é aquele que, ao falar, abre espaços para que as bolhas de sabão do outro voem livres. Bola vai, bola vem – cresce o amor… Ninguém ganha para que os dois ganhem. E se deseja então que o outro viva sempre, eternamente, para que o jogo nunca tenha fim…

Parece que na quarentena precisamos mais do que alcool gel e máscaras, precisamos do cuidado com as nossas relações, e jogar frescobol com o sol na cara, na areia quente. Paciência. Tolerância. Se a bola vier meio torta, pense um segundo: que jogo é esse?

Cartas de Winnicott ( por Cecilia Hirchzon)

Este é Winnicott: criativo, arrojado, franco, irreverente, humilde, sedento de reconhecimento, sensível, voltado para problemas sociais, libertário e sobretudo fiel a si mesmo.

 

 

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições! Ninguém me diga “vem por aqui”.
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou…
Não sei por onde vou, Não sei para onde vou
– Sei que não vou por aí!

(José Régio. Poemas de Deus e do Diabo, 2005)

 

 

Cartas de Winnicott

Por Cecília Luiza Montag Hirchzon

Em um misto de busca de informação, curiosidade e talvez até um tanto de voyeurismo, fui à procura da correspondência de Winnicott para conhecer … quem era a pessoa que se expressava e existia através de suas cartas.

O livro sobre a sua correspondência em que me baseei foi O gesto espontâneo: D. W. Winnicott (1990), escrito por Robert Rodman que  teve acesso às cartas pela primeira vez em 1958.

O meu primeiro olhar foi de surpresa, seguido de interesse e admiração por esta pessoa genuína que se revela a cada passo, em todo o seu ser.

Ao comentar os diferentes autores, Winnicott elogia os trabalhos em que os analistas contribuem com suas próprias concepções, estimulando-os a ser eles mesmos. Paralelamente preocupa-se com a “confusão na Sociedade, quando vários termos são usados como se fossem plenamente aceitos”, salientando a necessidade “de descobrir uma linguagem comum”.

Mostra-se crítico, algumas vezes, com suas próprias colocações (em carta a Willi Hoffer): “manifestei um profundo desgosto por tê-la escrito, já que se trata de uma carta inteiramente ruim” (p. 26); assume conscientemente características suas : “sou daquelas pessoas que se sentem compelidas a trabalhar à sua própria maneira e a se expressar na sua própria linguagem” (p. 47).

Essas qualidades não implicam, no entanto, falsa modéstia, sabendo reconhecer o próprio valor e reivindicando seus direitos, como em uma carta endereçada a David Henderson: “Nesse caso acho que o senhor poderia ter mencionado o meu nome no lugar do de (Leo) Kanner … não entendo por que devemos procurar nos EUA algo que existe em nosso país” (p. 56).

A situação institucional e o risco de idolatria são temas frequentes de suas preocupações, como quando alerta Melanie Klein: “Estou preocupado com essa estrutura que poderia ser chamada kleiniana. Suas ideias só viverão na medida em que forem redescobertas e reformuladas por pessoas originais, dentro e fora do movimento psicanalítico” (p. 31). O comportamento por vezes impiedoso com alguns autores não o impede que em outros momentos reconheça o talento, por exemplo, de Bion: “Quero que você saiba o quanto valorizo o trabalho que você vem fazendo e apresentando em seus ensaios sobre o pensamento. Como muitas outras pessoas, eu os considero difíceis, embora extremamente importantes” (p. 115).

Nas situações em que se sente excluído, nada o impede de pedir e até mesmo implorar por um olhar sobre sua contribuição à cena analítica, daqueles que, em grande parte do tempo, não conseguem (ou não querem) reconhecer a originalidade de sua obra. Dirigindo-se a Melanie Klein, pede um movimento dela em sua direção: “Trata-se de um gesto criativo e não posso estabelecer relacionamento algum através desse gesto se ninguém vier ao meu encontro” (p. 30).

Tendo se desenvolvido em um “grupo psicanalítico e conhecido todas as suas pressões e tensões internas”, admite conhecer “a psicanálise apenas como uma ciência em luta” (p. 168), o que revela a pulsante e frequentemente explosiva atmosfera institucional daquele período.

Embora Winnicott tivesse sido médico do Departamento Infantil do Instituto Britânico de Psicanálise durante 25 anos, presidente durante dois períodos de três anos (1956-1959 e 1965-1968), e secretário científico e de treinamento por períodos de três anos (p. XV), a oposição à sua teoria foi intensa; isso não fez, felizmente para nós, com que ele renunciasse às inovações peculiares de seu pensamento: “não me importo que demonstrem que estou errado, nem que me critiquem ou ataquem. Mas fiz um trabalho importante, com o suor do meu rosto psicanalítico (isto é, clinicamente), e recuso-me a ser eclipsado” (p. 126).

Muitas vezes, em sua franqueza beirando a irreverência, passa por cima de qualquer formalismo escrevendo a altas patentes, como o Primeiro-Ministro Chamberlain, ou a Lord Beveridge. A sua participação ativa como cidadão levantando questões humanitárias mostrava-se em cartas a parlamentares e também a jornais, como o New Society e mais frequentemente ao Times, a respeito de temas como o perigo da transformação de médicos em funcionários públicos, a relação de profissionais da saúde com trabalhadores, interferência de voluntários acobertados por apoio governamental, delinquência, crime, TV patrocinada etc. Não se limita a criticar, mas também formula sugestões importantes. Enfatiza também em palestras radiofônicas sua preocupação com a democratização do conhecimento, tornando-o acessível a um público amplo.

Preocupado com a rigidez da psicanálise ortodoxa, alerta: “no todo, parece que não se disse aos estudantes que todos os analistas falham, que todos tem casos difíceis” (p. 155).

Este é Winnicott: analista criador de uma teoria que representa um marco fundamental no desenvolvimento da psicanálise.

Este é Winnicott: criativo, arrojado, franco, irreverente, humilde, sedento de reconhecimento, sensível, voltado para problemas sociais, libertário e sobretudo fiel a si mesmo.

A respeito desse autor e desse autor e dessa obra, poderíamos dizer, com Merleau-Ponty: “A verdade é que esta obra exigia esta vida” .

Penso que o texto acima descrito representa para mim uma experiência de “jogo do rabisco”, no qual as cartas de Winnicott se apresentaram como uma expressão autêntica e espontânea do seu ser. Através dessa correspondência e do meu olhar, acredito que fomos (as cartas e eu) desenhando, garatujando, e construindo um retrato dessa figura humana intensa na vida e na criação.

 

“Trata-se de um gesto criativo e não posso estabelecer relacionamento algum através desse gesto se ninguém vier ao meu encontro”

 

Leia o artigo na integra em

http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31062010000100010

NATAL: O NASCIMENTO DO SALVA-DOR

 

Minha senhora-dona, um menino nasceu. 

O mundo tornou a começar.”

Guimarães Rosa

 

O Natal assume o papel de protagonista neste momento do ano. Independente do que ele signifique na realidade externa: festas pagãs cristianizadas, um evento incentivador de consumo, um feriado, uma festa santa, ou qualquer outro significado que se ele possa ter, o Natal tem em si um símbolo: o nascimento do salvador.

A comemoração do Natal, no mundo externo, pressupõe uma data festiva e repleta de alegrias: montar a árvore de Natal, acender as luzinhas dos pisca-piscas, montar o presépio, enfeitar as portas com guirlandas, colocar os presentes sob a árvore, decidir quem fará o papel de Papai Noel, a ceia – geralmente repleta de guloseimas maravilhosas –, reunir a família e tantas outras coisas alegres. Parece que o mundo fica colorido e iluminado.

E como se dá a comemoração do Natal, na parte do nosso mundo

interno, que é sem cor e escura? Naquela parte tão cheia de dor? Dor pelo que não se tem ou não se teve, dor de quem se foi e não voltará mais, dor do vazio impreenchível, dor de viver e dor de saber do morrer. Enfim o que fazemos com tanta dor? Penso que podemos tentar recorrer ao significado simbólico do Natal: o nascimento do SALVA-DOR.

Acredito que o Natal pode então transformar-se em um evento interno CONFORTA-dor, DILUI-dor, DISSIPA-dor, ou seja, ao

encontrarmo-nos com o nosso SALVA-dor interno, que ele possa nos salvar da dor, possa nos confortar da dor, possa dissipar nossa dor.

Acredito ainda que o Natal pode também transformar-se em um evento interno RENOVA-dor, que renovaria nossas forças e faria nascer um LIMITA-dor, que colocaria um limite dentro de nós que nos ajudasse a lidar com as dores inevitáveis da vida. Amenizadas tantas dores podemos então nos voltar para uma Natal SONHA-dor, que nos presenteie com um GERA-dor e CRIA-dor de ESPERANÇA.

Por fim desejo a todos um Natal ILUMINA-dor que nos tire das trevas de nós mesmos e nos leve para uma vida (interna e externa) ILUMINADA.

Por Katia Piroli.   

 

O bolo de caneca

Por Odeliz Basile

A memória  guarda o seu passado. O olhar, o sabor, o cheiro, o toque, a cor a alegria e o dissabor vivido na infância de cada um de nós.

Toda criança é criança em qualquer tempo ou lugar do mundo. Cada um a seu jeito tráz na memória suas brincadeiras e brinquedos prediletos.

Quem não se lembra das cantigas de criança como: “Alecrim”, “Ciranda Cirandinha”, “Se essa rua fosse minha”,  “O Cravo brigou com a Rosa”, “ O sapo não lava o pé”, ou então, “ A barata diz que tem”, entre tantas outras canções.

Brincadeiras e brinquedos como boneca, carrinho de rolimãs, luta de espadas, bola, cabelereira, bicicleta, cabra cega , bater figurinha, esconde-esconde e futebol. Ou então, os brinquedos como  escorregador, gira-gira, gangorra, balança , bicicleta e patinete.

Leia mais

Sossegue

 SOSSEGUE…  

  

 

“ Carlos, sossegue, o amor 

 é isso mesmo que você está vendo: 

 hoje beija, amanhã não beija  

Depois de amanhã é domingo 

E segunda-feira ninguém sabe o que será” 

                                               Carlos Drummond Andrade 

 

 

TIRA RADIOGRAFIA, TIRA A PRIMEIRA RUGA, A CIATALGIA

O QUE FICA?  

O AMOR.  

 

MACERA O ALHO, MOLHA A CEBOLA, EMBALA O FILHO, EMBRULHA O ASSADO,

QUEM ESTÁ COMENDO?  

O AMOR.  

 

 

FAZ O IMPLANTE, RETIRA A SAFENA, RETIRA O DENTE, ENXERTA A MAMÁRIA,

QUEM VELA NA CAPELA?  

O AMOR.  

 

COMPRA CAMA DE FERRO, COMPRA COLCHA BONITA,  

COMPRA VIAGRA, PAGA À VISTA E NÃO PODE, PULA A CERCA E NÃO ESCONDE,

TROPICA E CAI.  

QUEM LIMPA A VERGONHA?  

O AMOR.

 

FICA PELADO SEM APAGAR A LUZ   

ESQUECE A CARTEIRA  NO BANHEIRO DO TREM

PINTA A UNHA DE VERMELHO, ELA DESCASCA

PERDE CABELO NO TRAVESSEIRO TODOS OS DIAS.  

QUEM CATA?  

O AMOR.  

 

TIRA O BERNE, SOLTA AS BICHAS, PASSA VINAGRE PRA MATAR AS LÊNDEAS,

PASSA BABOSA  NO CABELO.  

QUEM BRILHA?  

O AMOR.  

 

QUEIMA A COMIDA, FAZ O ENEMA, AMORNA O LEITE, TEMPERA O PEIXE, QUEM CHEIRA?  

O AMOR.  

 

FAZ A FOGUEIRA QUEM QUEIMA É O AMOR.  

SOSSEGA,CARLOS, QUEM SOSSEGA É O AMOR.  

 

Arianne Angelelli

Pra meus queridos tios, Marina e Reginaldo, pelos seus cinquenta anos de casados

E para tio Reginaldo, também, pelos seus oitenta anos

 

 

Algumas reflexões a respeito do elemento feminino puro

Ivonise Fernandes da Motta
Revista de Psicologia da UNESP, 6(1), 2007. 1
Algumas reflexões a respeito do elemento feminino puro                                                                                                        

Resumo: Este artigo tem por objetivo tecer algumas reflexões a respeito do que é
denominado elemento feminino puro na obra do pediatra e psicanalista D. W.
Winnicott. A importância da relação dual mãe-bebê no início da vida como
estruturante do indivíduo e fundamental para o estabelecimento de boas bases para o
desenvolvimento psíquico é discutida e ilustrada através de um caso clínico. Algumas
questões relevantes para a prática clínica psicoterápica são também abordadas através
de algumas reflexões sobre o trabalho clínico com a regressão.
Palavras-Chave: Winnicott, elemento feminino puro, trabalho com regressão,
relação dual mãe-bebê.

 

 

 

Cuidado com as pessoas feridas porque                                                                                                                                                                          
elas sabem que podem sobreviver”.

   (Josephine Hart)                                                                                                                                                                

Oh, pedaço de mim
Oh, metade arrancada de mim
leva o vulto teu
que a saudade é o revés de um parto
a saudade é arrumar o quarto
do filho que já morreu
Oh, pedaço de mim
Oh, metade adorada de mim
lava os olhos meus
que a saudade é o pior castigo
e eu não quero levar comigo
a mortalha do amor
Adeus.
(Chico Buarque de Holanda)

 

Bollas (1992), Khan (1981), Phillips (1988), Safra (1999), Winnicott (1990), dentre
vários autores em psicoterapia psicanalítica, ao colocarem em relevância a importância dos
fatores ambientais desde o início da vida humana, desde a concepção de um feto, ou mesmo
até antes de sua concepção (anseios, expectativas dos pais), nos sublinham a importância do
interjogo entre forças instintivas e o encontro ou desencontro com os outros constitutivos do
entorno de casa ser humano. Nesses outros teríamos que incluir desde os fatores culturais até
as características do tempo, espaço, geografia, história, etc., constitutivos dos outros seres
humanos presentes ao nosso redor.
Winnicott (1990) em vários trabalhos escritos e publicados após sua morte no livro “A
Natureza Humana”, nos quais evidencia que já tinha elaborado uma teoria própria do
psiquismo humano, estruturação e funcionamento, nos alerta para a presença do caos que
estaria incluído nas idéias ou na busca por perfeição.
Não é necessário postular um estado original de caos. Caos é um conceito que traz consigo a
idéia de ordem; a escuridão tampouco está presente no início, já que a escuridão implica na
idéia de luz. No início, antes que cada indivíduo crie o mundo novamente, existe um simples
estado de ser, e uma consciência (awareness) incipiente da continuidade do ser e da
continuidade do existir no tempo. O caos aparece pela primeira vez na história do
desenvolvimento emocional através das interrupções reativas do ser, especialmente quando tais
interrupções são longas demais. O caos é, primeiramente, uma quebra na linha do ser, e a
recuperação ocorre através de uma revivência da continuidade; se a perturbação ultrapassa um
limite possível de ser tolerado, de acordo com as experiências anteriores de continuidade do ser,
ocorre que devido às leis elementares da economia, uma quantidade de caos passa a fazer parte
da constituição do indivíduo. (Winnicott, 1990, p. 157).
Seguindo as idéias de Winnicott, a necessidade por um estado de ordem ou “perfeição”
implicaria na existência, no psiquismo, de um estado de desordem, um estado caótico
resultado de um desencontro da criança com a mãe ou com quem cumpre as funções
parentais. O que diferencia esta maneira de compreender a natureza humana seria o
entendimento de tal fenômeno não como algo instintivo sempre presente nos seres humanos o
que, costumeiramente na literatura psicanalítica denominamos “instinto de morte”, mas sim
como algo que poderia ocorrer em certos indivíduos ou em certas fases vividas pelas pessoas,
conseqüência de invasões desmedidas ou sobrecargas excessivas no que Winnicott denomina
“continuidade do ser”.
A compreensão de tal diferença no entendimento de questões desse tipo nos parece
bastante relevante, principalmente diante de certas situações clínicas, certas situações vividas
com nossos pacientes e que, dependendo do olhar que tivermos, poderá mudar radicalmente o
tipo de tratamento e conduta a ser seguida.

Exemplo Clínico
M., uma mulher de aproximadamente 35 anos, procurou atendimento psicoterápico
mobilizada por uma série de situações familiares bastante difíceis. Doenças graves e de longa
duração a rodeavam, colocando-a à frente de decisões e vivências muito complexas. Sua
família de origem não apresentava condições de dar-lhe suporte ou apoio adequados diante de
tais dificuldades. M. vinha de uma psicoterapia que, segundo sua perspectiva, estava trazendo
mais confusão e peso do que ajuda ou soluções.

Começamos a trabalhar focalizando, num primeiro plano, as questões mais
emergenciais ou urgentes e, pouco a pouco, pudemos aprofundar as questões mais encobertas
ou submersas e desvendar muitos aspectos de sua estruturação, funcionamento,
desenvolvimento psíquico. Olhar muitas de suas vivências poderia facilmente levar a
conclusões da presença de atitudes suicidas ou de tendências masoquistas pronunciadas.
Envolvimentos amorosos ou ligações com pessoas que poderiam induzir esse tipo de dedução.
Mas, ao mesmo tempo, haviam escolhas muito adequadas e relacionamentos com “boa”
qualidade.
Apesar das inúmeras supervisões desse caso ou discussão com colegas nos quais esses
aspectos foram abordados, resolvi desde o início deixar-me guiar por minhas próprias
vivências transferenciais e contratransferenciais. Seguindo essa direção, essas conclusões
pareciam superficiais e insatisfatórias. Algo mais teria que ser trazido à revelação, e mesmo,
às vezes, surgindo a aparência da possibilidade de que ela estaria “à beira do abismo”, nunca
houve preocupação de minha parte de que isso ocorreria. Segundo a conceituação de
Winnicott (1954/1978), o diagnóstico psicológico que pude realizar no início de seu
tratamento foi o de que ela pertenceria ao grupo um, ou seja, ao grupo de pacientes que
operam como pessoas totais e cujas dificuldades estão na alçada das relações interpessoais.
Dizendo de outra maneira, ela pertenceria ao grupo de pacientes denominados “normais” ou
“neuróticos”.
Uma década se passou desde então, e trouxe a confirmação de que meu olhar e sentir
estavam corretos ou, poderíamos dizer de maneira melhor, mais próximos de sua realidade
psíquica. M. enfrentou as várias dificuldades ou pedras do caminho. Foram muitas e
pesadíssimas, e à medida que foi caminhando, pode ir trabalhando com profundidade suas
angústias, das mais primitivas e arcaicas até as mais evoluídas, com a mesma determinação e
contato presentes.
Suas decisões foram se tornando gradativamente mais firmes, da mesma maneira que
seus limites, trazendo organização a situações com aparência “caótica”. E mesmo diante de
inevitáveis perdas importantes, mostrou força e enfrentamento característicos de “vida”,
muito mais do que se poderia denominar “morte”. Aspectos esses que denominamos
usualmente como “regressivos” adquiriram significância em fases de sua vida e de seu
tratamento nas quais as sobrecargas psíquicas tornaram-se pesadíssimas. Tais aspectos não se
confirmaram como determinantes de sua estruturação e funcionamento psíquico.
Minha avaliação diagnóstica feita desde o início, que ali haveria um “bom terreno” e de
que valeria o trabalho, foi confirmada. Situações ambientais e circunstanciais trouxeram
sobrecarga tão intensa que o desastre poderia ocorrer ou ter ocorrido, mas, felizmente, sua
“maneira de ser” havia escolhido outro caminho, eu diria, desde que era uma criança, desde o
começo de seu viver, desde as etapas mais primitivas de seu desenvolvimento.
Quando iniciamos o trabalho psicoterápico, M. vivia situações reais de muita
sobrecarga. Os pesos excessivos existiam nos vários níveis do viver. O marido apresentava
doença neurológica degenerativa grave, havendo repercussões das mais severas e que
gradualmente foram se agravando, o que era esperado segundo o diagnóstico que ele tinha.
Isso resultou em que M. teve de gradativamente assumir todas as responsabilidades
familiares, inclusive a sustentação econômica do lar. Decisões difíceis tiveram que ser
tomadas: internação do marido em instituição especializada quando o quadro degenerativo
estava avançado, para que ele pudesse ter os cuidados necessários à melhor qualidade de
sobrevivência possível naquele período. E é também nessa época que algo inesperado e, eu
diria, “bombástico” acontece quando é confirmado o mesmo diagnóstico em sua filha, uma
adolescente. Outra situação semelhante a do marido começava a ocorrer com sua única filha e

cujos caminhos de sofrimentos, limitações e perdas M. já bem conhecia há no mínimo uma
década.
À medida que nosso trabalho prosseguiu e ela foi mantendo contato psíquico com todas
essas vivências, quer em seu mundo interno, quer na realidade externa, com as múltiplas
dificuldades que teve de enfrentar, as melhoras foram surgindo. O que poderíamos chamar de
“defesas maníacas”, ou seja, defesas psíquicas para evitar a dor decorrente da depressão, a dor
decorrente das perdas sucessivas e graduais que vivia, essas defesas maníacas, até necessárias
em certas fases vividas por M., puderam ser abandonadas por outros tipos de defesas
psíquicas mais integradoras, conforme a fase vivenciada pela paciente.
No início do tratamento, a busca de “soluções mágicas”, semelhante a busca do
encontro da possibilidade de uma ‘cura milagrosa” para a doença do marido ou da filha, foi
gradativamente substituída por um contato maior com as perdas sucessivas vividas, um
contato maior com a depressão.
Winnicott (1963/1989), em seus escritos, valoriza a depressão como um sinal de saúde.
Diferencia dos estados psicopatológicos, dizendo da depressão saudável como semelhante a
estados de tristeza associados a sentimentos de perda e culpa. A existência da capacidade de
conter sentimentos depressivos, sentimentos de culpa é indicação que a pessoa atingiu um
estado de integração, um estado unitário de self, atingiu a capacidade para preocupação.
Quando eu era estudante de medicina, aprendi que a depressão traz dentro de si mesma o
germe da recuperação. Esse é um ponto brilhante na psicopatologia, e vincula a depressão ao
sentimento de culpa (a capacidade para sentir culpa é um sinal de desenvolvimento saudável) ao
processo de luto. O luto também tende a terminar seu trabalho. A tendência que trazem
embutida para a recuperação, vincula a depressão igualmente ao processo maturacional da
infância de cada indivíduo, um processo que (em ambientes facilitadores) conduz à maturidade
pessoal, que significa saúde”. (Winnicott, 1963/1989, p. 55-56).
O que eu chamaria de caos foi gradativamente substituído por um viver mais “estável”
ou “tranqüilo”, diante das perturbações inevitáveis que enfrentava em seu dia-a-dia. Ou seja,
em um tipo de situação desse tipo, perfeição é algo totalmente impossível de ser vivenciado, o
usual seria um vivenciar pontilhado de emergências e imprevistos que teriam que ser, foram e
são vividos.
Buscar uma “ilha paradisíaca” ou fugir do sofrimento através de “condutas maníacas”
ou possíveis “desvios mágicos” (promessas de curas milagrosas) apenas acentuaram o caos, a
perturbação, a turbulência. À medida que um maior contato psíquico foi sendo conseguido,
apesar das constatações difíceis visualizadas passo a passo, certo estado de ordem, de
organização foi sendo estabelecido e gradativamente fortalecido.
Passado mais de uma década do início da psicoterapia, a hipótese inicial foi confirmada:
o solo era “bom”, precisava tratamento “adequado”. Quando do encontro com os cuidados
pertinentes a sua situação psíquica, seu caminhar foi ganhando desenvoltura, firmeza,
enfrentamento e superação das difíceis situações “reais” de sua vida, revelando trabalho
similar quanto às suas vivências internas.
Utilizando mais uma vez as palavras de Winnicott (1990)a respeito do caos: “O caos
aparece pela primeira vez na história do desenvolvimento emocional através das interrupções
reativas do ser, especialmente quando tais interrupções são longas demais” (p. 157).
Quando encontrei M., já fazia mais de uma década que ela convivia com a doença
degenerativa do marido, e, portanto, ao escrever esse artigo mais de 20 anos,
aproximadamente 25 anos, foram vividos com tons e características de “caos”, por vezes de
maior ou menor intensidade. Indubitavelmente foram, e são, interrupções de um viver
“normal” ou “comum” por um período demasiadamente longo.
Discussão do Caso Clínico
Levar em consideração o ambiente na constituição e estruturação psíquicas
fundamentais do ser humano é vislumbrar a importância do fator dependência característico
do início de todos os seres humanos: dependência a uma mulher (mãe), dependência aos
outros componentes da família, dependência dos valores culturais da época, dependência das
normas correntes de medicina da época (pediatria, puericultura, etc.).
Valorizar os primeiros anos de vida e, em especial, os primeiros meses de vida como
constitutivos de bases confiáveis ou não para o que costumeiramente chamamos Saúde, é
tocar em questões como dependência, dos mais variáveis tipos possíveis, semelhantes aos
descritos acima, no parágrafo anterior.
A primeira mamada teórica é representada na vida real pela soma das experiências iniciais de
muitas mamadas. Após a primeira mamada teórica, o bebê começa a ter material com o qual
criar. É possível dizer que aos poucos o bebê se torna capaz de alucinar o mamilo no momento
em que e mãe está pronta para oferecê-lo. As memórias são construídas a partir de inúmeras
impressões sensoriais, associadas à atividade de amamentação e ao encontro do objeto. No
decorrer do tempo surge um estado no qual o bebê sente confiança em que o objeto de desejo
pode ser encontrado, e isto significa que o bebê gradualmente passa a tolerar a ausência do
objeto. Desta forma inicia-se no bebê a concepção da realidade externa, um lugar de onde os
objetos aparecem e no qual desaparecem. Através da magia do desejo, podemos dizer que o
bebê tem a ilusão de possuir uma força criativa mágica, e a onipotência existe como um fato,
através da sensível adaptação da mãe. O reconhecimento gradual que o bebê faz da ausência de
um controle mágico sobre a realidade externa tem como base a onipotência inicial transformada
em fato pela técnica adaptativa da mãe. (Winnicott, 1990, p.126).
A importância da adaptação da mãe, facilitada pelo estado de “preocupação materna
primária”, característico dos fenômenos regressivos típicos da gravidez, e conseqüente
aumento de contato da mãe com o bebê teceria a fusão, a ilusão necessárias e imprescindíveis
a esses estados iniciais.
Utilizamos o conceito “preocupação materna primária”, seguindo a definição de Abram:
A mulher grávida sadia transforma-se em mentalmente “enferma” pouco antes de dar à luz e
algumas semanas após o parto. Esse estado único é denominado por Winnicott de “preocupação
materna primária”. A saúde psicológica e física do bebê, de acordo com sua tese, está na
dependência de a mãe ser capaz de ingressar e sair desse estado tão especial de ser. (Abram,
2000, p. 183).
A presença de experiências de contato “suficientemente bom” e ilusão marcariam
constância e estabilidade, como qualidades desses meses iniciais em contraposição a
vivências de invasões, rupturas, ausências por demais prolongadas da figura materna, que
poderiam deixar marcas de vivências disruptivas ou de caos. Marcas de vivências de quebras
nas sensações e vivências de continuidade do ser.
As conceituações dessa ordem feitas por Khan (1981, 1983), Milner (1929, 1991),
Winnicott (1975, 1978, 1989, 1990), dentre vários autores que valorizam a participação do
ambiente no desenvolvimento psíquico, em relação à criatividade primária ou ao elemento

feminino puro ou masculino puro, presentes em homens e mulheres, abriu caminhos para

inúmeras pesquisas sobre esses aspectos básicos do início.
Jan Abram (2000), em seu dicionário das palavras e expressões utilizadas por
Winnicott, ao abordar as questões sobre a criatividade, escreve:
A teoria da criatividade de Winnicott apresenta certas divergências em relação às de Freud e
Melanie Klein. Nela as raízes da criatividade situam-se nos primórdios da vida e no centro da
relação mãe-bebê. De uma forma bastante resumida, segundo Freud, a criatividade do adulto
está vinculada a sua teoria da sublimação. Já para Melanie Klein, a criatividade associa-se a
aspectos reparadores inerentes à posição depressiva (que se estabelece algumas semanas ou
meses após o nascimento). (p.84).
Para Winnicott, estaria presente desde o início nos seres humanos, algo semelhante a
uma tendência em buscar contato, comunicação, encontro, com as condições necessárias para
um desenvolvimento psíquico favorável. Nesse começo, o encontro com um estado de fusão
com a mãe estabelece bases primordiais para o que denominamos o sentido de continuidade
de ser.
Nessa perspectiva, o bebê e a mãe são um único ser. Essa é a vivência imprescindível
para o estabelecimento de bases estáveis para a estruturação e desenvolvimento psíquicos.
Para o desenvolvimento de um viver criativo, e o sentimento que a vida é real, e que tem valor
apesar das adversidades inevitáveis ao longo de qualquer existência humana.
Ao ter essa vivência de fusão com a mãe, na qual o bebê sente que é a mãe, com todas
as qualidades e atributos pertencentes à figura materna, fenômenos descritos como inveja e
voracidade diminuem sua presença e intensidade na medida em que o bebê é possuidor de
tudo que a mãe tem.
Nessa ótica, o que na literatura psicanalítica é denominado de “instinto de morte”, seria a
constatação do desencontro de situações favoráveis ao estabelecimento dessas vivências
iniciais e fundamentais de fusão, ilusão, magia, onipotência, etc. E por isso mesmo, pela
ausência dessas condições iniciais favoráveis, apareceria a busca da perfeição.
A idéia de um tempo maravilhoso no útero (o sentimento oceânico, etc.) é uma organização
complexa de negação da dependência. Qualquer prazer sentido numa regressão faz parte da
idéia de um ambiente perfeito, e contra esta idéia pesa sempre uma outra, tão real para a criança
ou o adulto regredidos quanto a primeira, de um ambiente tão ruim, que não haveria nele
qualquer esperança para uma existência pessoal. (Winnicott, 1990, p. 180).
O elemento feminino puro presente em homens e mulheres, segundo a conceituação de
Winnicott, estaria baseado nesse estado inicial de fusão com a mãe. A dependência inicial
absoluta, o bebê e a mãe fundidos, seria a identificação primária sustentadora e precursora das
possibilidades futuras de um favorável desenvolvimento psíquico. Nesse estágio, a
dependência não seria sentida como tal, já que o bebê vive um estado de tamanha fusão e
completude com a mãe, que a dependência não seria percebida.

Essas considerações me envolveram, portanto, numa afirmação singular sobre os aspectos
masculinos e femininos puros do bebê masculino ou feminino. Cheguei a uma posição em que
posso afirmar que a relação de objeto em termos desse elemento feminino puro nada tem a ver
com impulso (ou instinto)…O estudo do elemento feminino, puro, destilado e não-contaminado,
nos conduz ao SER, e constitui a única base para a auto-descoberta e para o sentimento de
existir (e, depois, à capacidade de desenvolver um interior, de ser um continente, de ter a
capacidade de utilizar os mecanismos de projeção e introjeção e relacionar-se com o mundo em
termos da introjeção e da projeção). (Winnicott, 1975, p. 117)

Sob essas bases e onipotência vivenciadas pelo bebê com a mãe, a criança irá
gradativamente aceitando as desilusões inevitáveis do processo de crescimento e
amadurecimento.
A mãe, através da identificação e empatia com o bebê, irá apresentando “o mundo em
pequenas doses”, ponto que trará as desilusões necessárias ao bom desenvolvimento, de
maneira a serem integradas pelo bebê como avanços ou conquistas e não como invasões ou
rupturas desmedidas. Da mesma maneira, em pequenas doses, o psicoterapeuta irá
gradativamente facilitar o aumento do contato psíquico do paciente, tanto com o seu mundo
intrapsíquico, quanto com os mais diversificados aspectos de seu ambiente.
Nesse contexto, saúde estaria inexoravelmente ligada a viver determinadas etapas no
tempo certo. Nesse início, portanto, saúde estaria relacionada sempre à fusão e dependência
quase que absoluta ou total. Prematuridade ou prolongamentos demasiados longos de certas
fases estariam relacionados a perigos ou possibilidades de entraves ou sobrecargas ao
desenvolvimento favorável.

O Trabalho com Regressão
Sabemos que qualquer tratamento psicanalítico irá trabalhar com regressão, quer em
doses mínimas, quer em doses mais acentuadas, dependendo da situação psíquica do paciente,
quer em seus aspectos e características internos, quer em suas vivências e acontecimentos
com a realidade externa, com aspectos vivenciais, ambientais e por vezes circunstanciais.
Crises menores ou mais severas adentram o viver humano nas mais diferentes etapas e idades.
Nesse contexto, o que Winnicott (1975) denomina elemento feminino puro seria um
aspecto básico por conter os elementos essenciais da confiança e segurança nos vínculos, nos
próprios objetos internos, nas memórias e vivências mais primitivas da existência humana.
Em sendo necessária a regressão para esses estados iniciais, as vivências satisfatórias de fusão
com a mãe constituirão a base indispensável para qualquer trabalho psíquico a ser
desenvolvido.
Uma das inovações mais importantes trazidas por Winnicott (1990) foi a das
possibilidades do uso e trabalho com regressão nos mais diferentes quadros psicopatológicos,
desde os mais regredidos até os pacientes ditos “normais” ou “neuróticos”. A utilização e
manejo de vivências regressivas, segundo esse autor, podem ser vitais para os avanços,
melhorias e possibilidades de mudanças psíquicas.
A regressão, no entanto, tem uma qualidade curativa, pois é possível reformular experiências
precoces através da regressão, havendo algo de verdadeiramente repousante quando se
experimenta e se reconhece a dependência. O retorno da regressão depende da reconquista da
independência, e se isto é bem trabalhado pelo terapeuta, a conseqüência é que a pessoa se
encontrará numa situação melhor do que antes do episódio. Tudo isto depende obviamente da
existência da capacidade de confiar, tanto quanto da capacidade do terapeuta de fazer jus à
confiança. E é possível que ocorra uma longa fase preliminar do tratamento consistindo
exatamente na construção dessa confiança. Na regressão ocorrida dentro de um processo
terapêutico o paciente (de qualquer idade) deve revelar-se capaz de em algum momento
alcançar uma não-consciência do cuidado ambiental e da dependência, o que significa que o
terapeuta está dando uma adaptação suficientemente boa à necessidade. Vemos aqui um estado
de narcisismo primário, que deve ser alcançado em algum momento do tratamento. (Winnicott,
1990, pp. 163-164)

Bollas (1992), ao escrever sobre o trabalho com a regressão em pacientes bastante
perturbados ou em pacientes neuróticos ou normais, reafirma a importância do acesso, uso e
integração de aspectos primitivos ou arcaicos do self, tanto do paciente quanto do analista ou
psicoterapeuta.
Se um analista é bem analisado e tem confiança no funcionamento do seu próprio ego e
relações objetais, penso então ser muito mais provável que ele tenha a capacidade necessária
para uma regressão contratransferencial produtiva durante a sessão. Sabemos que o espaço e o
processo analítico facilitam os elementos regressivos no analista, como também no paciente, e
assim, se cada analista trabalhar a favor e não contra a contratransferência deverá estar
preparado para ficar doente de vez em quando e em determinadas circunstâncias. Sua
receptividade para o reviver da transferência do paciente significará, certamente, que a
representação que este faz de porções perturbadas da mãe, do pai ou do self do infante será
vivenciada no uso transferencial do analista (Bollas, 1992, p. 249)
O caminho percorrido por M. confirmou esses rumos traçados anteriormente: a pesquisa
inicial pela possibilidade de confiança e, quando esta foi adquirida, as vivências necessárias
de dependência que toda sua situação real e psíquica requisitava.
Nos anos iniciais do tratamento a dependência adquiriu grande importância e seu
manejo foi fundamental para o trabalho realizado, envolvendo inclusive questões básicas
sobre setting: aumento do número de sessões, sessões extras, cuidados e medidas diferenciais
em períodos de férias, etc.
Nas fases de regressão, o que denominamos usualmente “neutralidade” do analista, cede
lugar ao que poderíamos chamar o surgimento da pessoa real do psicoterapeuta. O
psicoterapeuta tendo que se colocar no lugar de uma mãe suficientemente boa que consegue
se adaptar às necessidades do paciente, que estando regredido, necessita de cuidados
especiais. O paciente necessita que o psicoterapeuta desempenhe algumas funções egóicas
que, em outros períodos ou fases, ele consegue coordenar até com relativa facilidade.
Durante certo período do tratamento com M. isso ocorreu, quando pude constatar a
importância de compartilhar certas decisões, semelhante à de internar o marido em uma
instituição especializada, quando a degeneração neurológica indicava ser esse o melhor
caminho a tomar, aliado ao trabalho com conflitos e angústias que isso acarretava. Da mesma
maneira, tantas outras decisões nas quais muitas vezes pude intervir ou participar que se
referiam aos tratamentos mais adequados para a filha, adaptações sucessivas e gradativas
quanto às restrições que ela própria e a filha tiveram que enfrentar.
Para dar mais um exemplo do que estou denominando nesse artigo por trabalho com
regressão, requisitando adaptação do psicoterapeuta às condições psíquicas momentâneas do
paciente, poderia citar um fato ocorrido numa determinada noite após uma sessão extra com
M., marcada pelas pesadas pressões vividas por ela na época. Ao sair do consultório percebi
que M. caminhava pela rua indo em direção a sua casa. Eu estava de carro, parei e lhe ofereci
a possibilidade de levá-la até onde morava (relativamente perto de meu consultório e de
minha residência). Procedi dessa maneira porque me preocupava com sua fragilidade, e se ela
seria capaz de se proteger adequadamente na situação psíquica que se encontrava. Através
desse caso, e vários outros nos quais manejos e adaptações foram necessários porque o
paciente estava regredido, pude confirmar a importância desse tipo de mudança de setting, no
que tange ao aumento de confiança por parte do paciente em relação ao psicoterapeuta. O
paciente ao sentir que pode contar com um psicoterapeuta suficientemente bom que,
semelhante a uma mãe suficientemente boa, pode se adaptar ao filho, aumenta os laços de
confiança surgindo a possibilidade de trabalhar aspectos profundos e primitivos do psiquismo.

Ao escrever sobre esse tema, Margaret Little (1992), psicanalista e paciente de D. W.
Winnicott, que pôde vivenciar um tratamento com base na regressão diz:
A regressão para a dependência é um “processo de cura” (Winnicott, 1954 b) originado não
no analista, mas naquela parte do analisando, seu “verdadeiro self” (Winnicott, 1949 a, 1960 b),
que ainda pode esperar uma reversão do fracasso original, encontrando no analista uma
adaptação suficiente para as suas necessidades. É preciso haver um “tratamento” em vez de uma
“técnica”; e um comportamento intuitivo, não interpretação verbal. Mas isso não é fácil, porque
envolve o analisando em uma volta assustadora ao primeiro estágio não integrado. Há o risco de
aniquilação repetida pelos estímulos aos quais ele tem de reagir fisicamente (reflexo de choque),
e com uma integração forçada, contra os quais ele não tem defesas e não pode compreender; de
deixarem-no cair quando ele está indefeso, não havendo limites ou controle.
O analista tem de ser capaz de renunciar às suas defesas contra a mesma ansiedade, o medo
de aniquilação, da perda de identidade, tanto por si mesmo como pelo paciente. Ao mesmo
tempo, sua própria identidade deve permanecer distinta e seu sentido de realidade inalterado,
mantendo a consciência em dois níveis extremos, o da realidade e o da ilusão. Ele está na
posição de uma mãe vis-à-vis o filho, mas onde nem ele nem o paciente estão de fato nessa
situação. Isso exige as mesmas qualidades de “mãe suficientemente boa” (Winnicott, 1952 b),
empatia com a criança (Winnicott, 1960 a) e capacidade de considerá-la uma pessoa separada.
Não contar com a ‘atitude profissional” para aceitar um “relacionamento direto” com o paciente
como distinto da imagem do espelho, e lembrar-se de que a sexualidade não tem qualquer
sentido aqui; unir-se fisicamente a ele aceitando a ilusão de unidade; tolerar o ódio do paciente
sem revidar quando os traumas originais são revividos (Winnicott, 1947, 1960 c) e suportar as
suas próprias emoções quando elas são despertadas” (p.88).
À medida que o trabalho foi prosseguindo, mesmo em fases em que as circunstâncias
externas de M. tornavam-se bastante adversas, o trabalho com os aspectos regressivos foi
satisfatório, possibilitando a volta gradativa a um viver, pouco a pouco, com características de
maior independência. Independência que foi ganhando tamanho e firmeza ao longo do
tratamento desenvolvido, ao longo dos anos percorridos.
No caminho de retorno, o paciente precisa que o terapeuta exerça duas funções – a pior
função que se pode imaginar em todos os aspectos, e a melhor de todas – ou seja, a função da
figura materna idealizada engajada em cuidar com perfeição de seu bebê. O reconhecimento do
terapeuta idealizado e muito mau caminha passo a passo com o gradual aceitação, por parte do
paciente, do bem e do mal existentes no self, da desesperança ao mesmo tempo que da
esperança, daquilo que é real e daquilo que não é, ou seja, de todos os extremos contrastantes.
Ao final, se tudo vai bem, há uma pessoa que é humana e imperfeita relacionando-se com um
terapeuta que é imperfeito, no sentido de não desejar agir perfeitamente apenas para além de um
certo nível, e para além de um certo período de tempo. (Winnicott, 1990, p. 164).

Considerações Finais
O trabalho clínico vivenciado no dia-a-dia com nossos pacientes nos colocam inúmeras
questões além das que mencionamos nas páginas anteriores.
Qual é o estado do indivíduo humano quando o ser emerge do interior do não-ser? Onde fica
a base da natureza humana em termos do desenvolvimento individual? Qual o estado
fundamental ao qual todo ser humano, não importa a sua idade ou experiência pessoais, teria
que retornar se desejasse começar tudo de novo?
A proposição de uma condição deste tipo envolve um paradoxo. No princípio há uma solidão
essencial. Ao mesmo tempo, tal solidão somente pode existir em condições de dependência
máxima. Aqui, neste início, a continuidade do ser do novo indivíduo é destituída de qualquer
conhecimento sobre a existência do ambiente e do amor nele contido, sendo este o nome que
damos (nesse estágio) à adaptação ativa de uma espécie e dimensões tais, que a continuidade do
ser não é perturbada por reações contra a intrusão. (Winnicott, 1990, pp. 153-154)
Para Winnicott o ser emerge da solidão, desse estado inicial de fusão do bebê com a
mãe, de dependência suficientemente boa. A solidão estando intrinsecamente ligada à
dependência e confiança, muito antes que o bebê possa ter alguma percepção destas. Se as
experiências iniciais de fusão com a mãe são suficientemente boas, a confiança nos vínculos,
no viver, na própria criatividade é estabelecida e fortalecida gradualmente ao longo dos dias,
meses e primeiros anos de vida. A presença da confiança estabelecida nesse início dá boas
bases para o interjogo entre ilusão e desilusão. Desilusões características e gradativas do
processo de separação e individuação mãe-bebê, e se bem dosadas levariam ao
amadurecimento, às integrações sucessivas e graduais do self. Essa é a base da capacidade de
ficar só, que surgirá mais tarde no desenvolvimento resultante destes estágios primordiais de
confiança e dependência absolutas. É também dessa raiz que surge a presença de condições
satisfatórias para que a pessoa possa fornecer bons cuidados para consigo própria ao longo de
toda sua existência.
Nesse interjogo de forças, a presença da confiança garante a ilusão guiando para doses
gradativas de desilusão. Desilusão, que se bem dosada, nos levaria a possibilidades de
desdobramentos sucessivos na linha de constituição de uma estrutura psíquica caracterizada
por riqueza interna. Riqueza interna no sentido do que Winnicott denomina “verdadeiro self”.
O termo “verdadeiro self” é revestido dos significados que o conceito representa: identidade
própria, contornos firmemente estabelecidos, tons e matizes individuais em termos de ser e
existir, etc.
Ao iniciar o trabalho com M., estavam presentes boas condições psíquicas, que
poderíamos pressupor, advinham desses estágios iniciais de dependência nos quais
experiências favoráveis puderam ser internalizadas. M. apresentava seus pais e familiares
revestidos de muitas características essencialmente narcísicas, que poderíamos qualificar de
mais “infantilizadas”, e por isso mesmo sem condições de prestar-lhe auxílio diante das
dificuldades que enfrentava. Porém, havia um bom solo, um bom lugar para que o trabalho
que se seguiu fosse desenvolvido.
Em toda análise a longo prazo, o paciente quer saber quem eu sou, e geralmente não
consegue dizer o que tal frase significa. Pois se o que ele ou ela deseja são informações
pessoais, fatos sobre minha vida pessoal e formação educacional, essa não é a questão mais
profunda. Eu acredito que eles diriam isto se pudessem: quero saber algo tem a ver com o
Verdadeiro Self, se não for idêntico a ele. O único jeito de conseguirem um pouco disso é, antes
de mais nada, passando um período de tempo comigo, durante o qual nós passássemos por
muitos estados de humor dentro das regularidades do setting analítico. O que eles eventualmente
ficam sabendo é algo sobre mim, inadvertidamente expresso através da disciplina da

anonimidade, dentro da qual eu focalizo minha atenção e a capacidade de reflexão deles. O que
eles aprendem é que eu não sou uma das figuras de transferência que eles regularmente
percebem, mas ao invés disso, uma estranha e nova figura que eles nunca encontraram antes.
Essa estranheza pode ser um eco da estranheza original de seus próprios pais, a quem eles
conhecem apenas em parte e, ás vezes, a um grau mínimo. Pode-se viver uma longa vida e mal
conhecer os pais, eu quero dizer, compreender as dimensões subjetivas da experiência de vida
de seus pais. Isso leva ao assunto do valor de conhecer alguém, o que está próximo às limitações
narcísicas do conhecimento subjetivo. (Rodman, 1999, pp. 68-69)
Mesmo estando vivendo ainda grandes limitações que circunstâncias de sua vida
presentificam (filha com doença neurológica degenerativa em estado avançado), M. pode
reconstituir, resgatar um viver com melhor qualidade nos vários diferentes setores (trabalho,
cuidados com saúde, amizades, envolvimento amoroso, etc.).
Sem dúvida alguma, foi um árduo e grande trabalho realizado graças tanto às suas boas
condições psíquicas presentes anteriormente ao início da psicoterapia, quanto a sua
determinação e coragem em se adentrar e enfrentar as várias dificuldades vividas, as várias e
pesadas pedras do caminho. Através do atendimento do caso de M. tive a possibilidade de
questionar e de confirmar vários aspectos do que denominamos trabalho com regressão,
incluindo-se a dependência e seu manejo. E apesar das pesadas dificuldades que
compartilhamos, eu diria que, tanto ela quanto eu, pudemos não só aprender, mas também
enriquecer com os vários passos percorridos.
E, para concluir, caberia usar algumas palavras escritas por Winnicott ao dizer:
Se o desenvolvimento transcorre favoravelmente, o indivíduo torna-se capaz de enganar,
mentir, negociar, aceitar o conflito como um fato, e abandonar as idéias extremas da perfeição e
do seu oposto, que tornam a existência intolerável. O compromisso não é uma característica dos
insanos. O homem maduro nem é tão bonzinho nem tão desprezível quanto o imaturo. A água
no copo é barrenta, mas não é barro. (Winnicott, 1990, p. 160)

Motta, I. F. (2007). Some reflections about the pure feminine element. Revista de
Psicologia da UNESP, 6(1), 1-12.
Abstract: The target of this article is to make some considerations on the so called pure
feminine element in the works of D. W. Winnicott, pediatrician and psychoanalyst. The
importance of the dual mother-baby relationship in the beginning of life, as individual
structuring and a fundamental in the establishment of good basis for the psychological
development, is illustrated and analyzed through a clinical case. Some relevant questions
concerning the psychotherapeutic clinical pratice are also approached through some
considerations on the clinical work with regression.
Keywords: Winnicott; pure feminine element; work with regression; dual mother-baby
relationship

Referências
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Museu- a história dentro da história.

Retirado de Folha-Uol

 

A Psicanálise? Uma das mais fascinantes modalidades do gênero policial, em que o detetive procura desvendar um crime que o próprio criminoso ignora.

Está em cartaz nos cinemas uma nova película, muito interessante, que conta a estória do roubo do museu nacional de antropologia do México, ocorrida em 1985, fato real. ( Museu-2018- diretor Alonso Ruizpalacios). Dois jovens mexicanos , que por diferentes motivos se encontram numa certa marginalidade em suas vidas, à margem, vivendo numa adolescência comprida, encompridada pelas próprias dificuldades, decidem roubar o museu de antropologia da cidade. Há um narrador que retrospectivamente conta a história de como os dois rapazes, engenhosamente, conseguem burlar o sistema de segurança  e realizar o roubo, no dia de natal, de várias peças do museu, ato aparentemente despropositado. Fica parecendo que o roubo e a esperteza , o desafio, a perícia , fascinam mais os rapazes do que o prêmio monetário possível a se conseguir com o tráfico destas peças. Outrossim, logo virão a descobrir que o seu roubo teria um valor inestimável, não mensurável, e que não seria possível conseguir alguém para comprá-las. Afinal, o que querem estes rapazes? Corre paralela à trama principal, em estilo road-movie, das peripécias deste Dom- Quixote-ao-contrário e seu fiel escudeiro, uma outra trama: a exposição dos motivos, dos enredos, das circunstâncias, que os levaram a este ato. É intrigante perceber que o protagonista, Juan, mentor do crime, tem seu código de honra e profundo respeito pela história do país; é conhecedor e admira, pensa, se encanta, com aquilo que rouba. Esta peculiaridade explica também o destino que escolhe dar para as peças, nas cenas finais do filme.
Podemos nos enveredar pela vertente social que está presente no discurso dos rapazes: a questão do colonialismo, das pilhagens sofridas na América por todo o sempre ,e na sua pouca consciência de valor, da crença quixotesca de Juan num resgate da cultura e do que é autêntico num país também assolado pela corrupção e pelo descuido com seu patrimônio. Como não pensar no incêndio do Museu Nacional do Rio de janeiro, ocorrido em setembro último? Esta realidade compartilhamos com o México e com nossos vizinhos aqui da América Latina. A gente fica torcendo para os nossos (anti)heróis encontrarem um jeito de se safar porque, apesar da astúcia e da gravidade do ato cometido, são ingênuos e quixotescos; e nem sabem bem o que roubam, o que querem roubar. Em alguns momentos parece que tentam se apropriar deste capital simbólico, do que seriam aqueles amuletos maias e seus instrumentos por se identificarem, como marginais, com a opressão sofrida por este povo  no contato com os espanhóis e cujo tesouro procuram resgatar. Para os povos pre-hispanicos (termo inclusive que os rapazes recusam, por trazer no seu bojo a referência à dominação) o ouro e a prata tinham um valor diferente, não monetário: assim também Juan e Benjamim não roubam o museu para enriquecer, mas para se apropriar de outra coisa.
Que coisa?
No texto “pacto edípico e pacto social”, Helio Pelegrino* articula a conexão entre o pacto edípico, que fala de triangulação familiar e da introjeção pela criança dos valores paternos, do limite e da interdição, com o pacto social, descrevendo como o estado corrupto e a corrosão dos valores numa sociedade dificulta o trabalho, em cada lar , de promover a maturidade de cada indivíduo. Há que crescer, mas, para que? Para quem? Para o que?
Da mesma maneira, quando nos seus começos a criança não consegue uma saída razoável para o seu drama familiar, também não cresce e não pode reconhecer a lei como sua, como algo a respeitar. Como diz Manoel de Barros: “tudo que não invento é falso”.  Para alguns a lei estará sempre fora , do lado de fora, incompreensível e ilógica porque não pôde  ser inventada de novo no jogo das identificações que ocorrem em tempos muito precoces…tempos quase pré-históricos.
Juan é um filho que o pai não re-conhece. Cenas belíssimas, do filho no consultório do pai, fazendo perguntas que não são respondidas, e de momentos em que ele não consegue ouvir as palavras articuladas pelo pai nos fazem intuir uma falha profunda na constituição de Juan como sujeito. É como se ele fosse o pai ao avesso, irresponsável, um zé-ninguém, o esquisito de uma casa onde todo mundo se encaixa em algum papel e ao “baixinho” cabe somente o lugar da exclusão. Juan é de baixa estatura e parece ser objeto de desaprovação geral. Será que inventa esse roubo magistral para ter um reconhecimento? Para ser visto como alguém capaz de fazer uma coisa realmente grande?
O bom Benjamim, parceiro de Juan, que tenta desistir de vender a pilhagem porque deseja voltar para cuidar do pai doente, também está à margem. Entraram ambos na faculdade de veterinária, mas Benjamim trabalha catalogando peças do museu, é um trabalho maçante, mas que possibilita o acesso ao sistema de segurança para facilitar o roubo. Nas cenas em que os rapazes ardilosamente se aproximam das peças tão valiosas, rompendo os vidros e os lacres que as separam do seu alcance, há o júbilo de se apropriar. Uma máscara é roubada. Juan brinca de colocá-la em seu rosto- e em um momento até alucina o maia Pacal, grande governante, a quem parece admirar.
Este filme também é a história de um filho em busca do seu pai. De alguma forma Juan não se encaixa e não consegue estar perto dele, senão pelos seus atos avessos, pelo seus contrários. Para Winnicott  o comportamento anti-social muitas  vezes esconde um pedido de ajuda, um apelo ao ambiente: apelo que Juan faz ao pai e que fica mais claro quando o filme vai se encaminhando para um desfecho, no encontro deles dois. Parece que o moço está disposto a pagar um preço alto por este reconhecimento!
Mas este poderia ser somente uma dos motivos para explicar esta história possível, dentro da história. Como diz o narrador no final: qual seria a verdade? Se  às vezes nem mesmo o próprio protagonista da história sabe o que se passou ali , dentro de si, e em sua própria história.
Um pouco como na vida de todos nós.
* Pacto Edipico e Pacto Social- Artigo escrito por Hélio Pellegrino no suplemento Folhetim da Folha de S.Paulo do dia 11 de setembro de 1983.

 

 

Abrir a possibilidade para novas narrativas: um desafio. por Angela Hiluey.

http://pepsic.bvsalud.org/pdf/vinculo/v15n1/v15n1a02.pdf

©2017 Disney•Pixar. All Rights Reserved.

Abrir a possibilidade para novas narrativas: um desafio. Hiluey, A.

ABRIR A POSSIBILIDADE PARA NOVAS NARRATIVAS: UM DESAFIO

Angela Hiluey

RESUMO

Uma diversidade de narrativas pode enriquecer a vida humana, dada a possibilidade de atribuir significado à experiência relacional desde a vida intrauterina até a morte, postula Linares (2003; 2014). Por outro lado, conta-se com a resistência do ser humano a rever suas visões. Dada tal resistência, neste trabalho tem-se como objetivo mostrar uma ferramenta para auxiliar na construção de novas narrativas: a atividade artística-lúdica no atendimento a casais e famílias sob a ótica da abordagem sistêmico-integrativa. Tal ferramenta tanto permite que o ser humano, sem se dar conta, expresse sua angústia, quanto permite ser uma intervenção terapêutica propriamente dita. Através de um caso clínico, será ilustrado o planejamento da atividade lúdica; o uso da atividade proposta; e seus resultados. Constatou-se que novas percepções puderam ser referidas, e as mesmas permitiram a construção de novas narrativas familiares.

Palavras-chave: narrativas familiares; atividade lúdica; atendimento a casais e famílias; abordagem sistêmico-integrativa.

OPEN THE POSSIBILITY FOR NEW NARRATIVES: A CHALLENGE ABSTRACTS

A variety of narratives can enrich human life, given the possibility of assigning meaning to the relational experience from intrauterine life until the death, postulates Linares (2003, 2014). On the other hand, there is the resistance of the human being to revise its visions. Given this resistance, this work aims to present a tool to assist in the construction of new narratives: the artistic-ludic activity to care for couples and families from the perspective of the systemic-integrative approach. Such a tool allows the human being, without realizing it, to expresses his anguish, as it allows to be a therapeutic intervention properly said. Through a clinical case, will be illustrated the planning of the ludic activity; the use of the proposed activity; and their results. It was observed that new perceptions could be referred to, and they allowed the construction of new family narratives.

Keywords: family narratives; ludic activity; care for couples and families; systemic- integrative approach.

ABRIR LA POSIBILIDAD PARA NUEVAS NARRATIVAS: UN DESAFIO RESÚMEN

Una diversidad de narrativas puede enriquecer la vida humana, dada la posibilidad de atribuir significado a la experiencia relacional desde la vida intrauterina hasta la muerte, postula Linares (2003; 2015). Por otro lado, se cuenta con la resistencia del ser humano a revisar sus visiones. Dada tal resistencia, en este trabajo se tiene como objetivo mostrar una herramienta para auxiliar en la construcción de nuevas narrativas: la actividad artística-lúdica en la atención a parejas y familias bajo la óptica del abordaje sistémico-integrativa. Tal herramienta permite tanto que el ser humano, sin darse cuenta, expresa su angustia, como permite ser una intervencion terapeutica propiamente dicha. A través de un caso clínico, se ilustra la planificación de la actividad lúdica; el uso de la actividad propuesta; y sus resultados. Se constató que nuevas percepciones pudieron ser referidas, y las mismas permitieron la construcción de nuevas narrativas familiares.

Palabras clave: narrativas familiares; actividad lúdica; atención a parejas y familias; enfoque sistémico-integrativo.

“O mundo não é o que penso, mas o que vivo, estou aberto ao mundo, comunico-me indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é inesgotável.”

(Merleau-Ponty, 1971, p.14)

Esta epígrafe nos oferece a oportunidade de nos apercebermos que enquanto tivermos vida teremos a possibilidade de aprender e assim poderemos tecer diferentes narrativas individuais e familiares.

Tais possibilidades podem nos estimular a enfrentar os desafios com os quais nos defrontamos na prática clínica. Temos uma vasta bibliografia na terapia familiar e em outros campos do conhecimento que são o nosso alicerce para seguirmos em frente. Tais pressupostos poderão auxiliar a autora a apresentar o objetivo desse trabalho.

Linares (2014) nos abre uma primeira porta para enfrentarmos tal desafio quando se refere ao sentido de sua expressão: Terapia Familiar Ultramoderna. O autor explicita que tem com essa terminologia o objetivo de estimular a abertura das janelas do território sistêmico para ares novos para que se alimente com aquilo que há de muito bom já presente na tradição psicoterapêutica.

No entanto estar aberto ao mundo, conforme a epígrafe permite vislumbrar, não é necessariamente uma possibilidade tão natural, e as palavras de Bion (1992, p.9-10) nos confirmam tal vislumbre:

(…) Mas todos nós odiamos a tempestade que implica o ato de rever nossas visões; é muito perturbador pensar que poderíamos chegar a mudar de parceiro, ou profissão, ou país, ou sociedade; assim, a pressão para dizer “daqui não passo” estabelece uma resistência ao aprendizado (…). (BION, 1992, p 9-10).

A presença da abordagem sistêmico integrativa por outro lado materializa o incentivo de Linares (2014) propiciando a integração das múltiplas escolas sistêmicas às contribuições de outras abordagens, dentre elas a psicanalítica, bem como de abordagens advindas de outros campos do conhecimento. Tal integração é fruto de uma postura aberta que favorece o nosso enriquecimento para nos ocuparmos das situações as quais a prática clínica nos apresenta, onde se constata que a mudança não é algo tão simples de ser conseguido.

Selvini, Sorrentino, Cirillo (2016) utilizam o termo pensamento sistêmico, complexo e integrado e, assim, revelam estarem intervindo, segundo uma postura integrativa.

Linares (2003; 2015) por sua vez ao escrever que narrativa é a atribuição de significado à experiência relacional, que ocorrerá desde a vida intrauterina até a morte, nos

mostra quão rica pode ser nossa vida com uma diversidade de narrativas. Essa narrativa, segundo Linares, é o ato de descrever a si mesmo e ao que lhe acontece, dando a isso uma coerência, o que por sua vez é cultural e pessoal.

Laso (2017) pode auxiliar a especificar o que favorece as mudanças. Laso (2017) discorre sobre como vem levando em conta e intervindo sobre o aspecto emocional na terapia familiar e de casal. Esse autor destaca dois princípios fundamentais para viabilizar a mudança emocional: (1) compreender o lugar onde se está e (2) ver ou ao menos vislumbrar o lugar para onde se dirigir. Compreensão e visualização são conquistas advindas da experiência emocional desses grupos, segundo o autor.

As considerações dos autores citados permitem evidenciar que o objetivo desse trabalho é mostrar uma ferramenta para auxiliar a construir novas narrativas dadas as dificuldades implicadas nesse processo. Tal ferramenta é constituída pelas expressões artísticas e o brincar, atividades descritas em outros campos do conhecimento e/ou modelos teóricos que podem ser integradas ao atendimento de casais e famílias.

Tornam-se importantes ferramentas uma vez que a possibilidade de escrever novas histórias é inesgotável. Por outro lado, já que sabemos que reavaliar nossas posições é assustador, que precisamos nos dar conta de nosso lugar na relação (o que ainda implica outras gerações) bem como visualizar novos caminhos antes de seguir adiante podemos perceber a complexidade do processo. Sendo assim, ter novas ferramentas que possam abrir possibilidades para novas narrativas pode nos ser útil na prática clínica.

Pereira (2010) ao discorrer sobre o tipo de intervenção para promover a Resiliência Familiar mostra que a mesma deve permitir que se reconheça na narrativa familiar o sofrimento, que dê sentido ao ocorrido e um significado que possa ser aceito por todos os membros da família. Ou seja, nesse contexto continente como recomenda Pereira (2010) uma tempestade emocional como postula Bion está vigente precisando ser nomeada. Esta afirmação permite o reforço da tese sobre a relevância de mecanismos para abrir possibilidades para construção de novas narrativas.

Nesse trabalho o objetivo é apresentar a atividade artística- lúdica como útil ferramenta para a terapia de casal e família ao mesmo tempo em que evidenciar tanto a relevância como o que está implicado no planejamento da mesma pelo terapeuta para se favorecer a possibilidade de conversar sobre as dificuldades vividas.

Fazem-se, então, necessárias algumas considerações sobre as possibilidades desse instrumental.

Kenzler (1995) escreveu que o ser humano se defende das emoções e para tanto utiliza mecanismos de defesa. Sendo assim, segundo Kenzler (1995) o uso de técnicas em que o ser humano expressa sua angústia, sem perceber o que está fazendo pode ser significativo. Aqui temos as artes e o brincar.

Fernandes (2003) por sua vez especifica diferentes linguagens que transmitem a informação tais como: as atitudes, a mímica, a palavra, a escrita, o desenho. A arte, segundo Fernandes (2003) em suas cores e sons, melodias, ritmos, compõe e expressa.

Dentre essas diferentes maneiras de comunicação está o brincar como escreve Winnicott (1971).

Green (2013) completa escrevendo que na realidade externa existe horror demais: guerra, delinquência, catástrofes naturais, epidemias, desemprego e terrorismo nesse nosso mundo.

Grenn (2013) pergunta-se como suportaríamos todos os traumas causados pela realidade sem o brincar onde no caso das crianças todos esses temas se encontram.

Andrade (1995) escreveu que nas diversas expressões artísticas o homem se coloca diante da realidade, ao expressar por meio de uma simbolização (a obra de arte) como estrutura seu mundo interior. A arte, pode, também, segundo ele, ser terapêutica, pois permite acessar a emoção tanto do criador como no público participante. O criador e o produto da criação são o porta-voz de como o homem aliou as sensações e percepções frutos de sua experiência pessoal e relacional. Através da arte forças oponentes podem ser integradas graças a sua qualidade integrativa.

Hiluey (2004; 2007; 2008) no contexto da investigação com alunos-médicos e famílias pode constatar a relevância de tal ferramenta para favorecer tanto o despontar do que angustia como para integrar percepções e informações. Novos caminhos podiam ser vislumbrados.

Para tanto uma ilustração prática parece ser oportuna e aqui se segue.

Pode-se constatar que “enganar” era o termo que melhor exprimia aquilo que vivia a Família Silva com seu filho de 11 anos. Essa vivência de ser enganado, respaldada por situações concretas gerava um sentimento de falta de confiança dos pais para com seu filho. A terapeuta tinha dados que lhe permitiam pensar que para os pais se aperceberem de seu filho não era algo simples. Eles possuíam alguns princípios e formas de educar filhos alinhados com as gerações anteriores e sua própria vivência enquanto filhos para os guiarem. Isso interferia significativamente impedindo que pudesse circular reconhecimento, valorização e carinho entre eles, o que favoreceria a possibilidade de seu filho ter uma vivência de ser amado, como descreveu Linares (2014).

A terapeuta optou por algumas técnicas expressivas as quais permitiram que um espaço fosse aberto para gerar novas narrativas que propiciaram a Família Silva experimentar um clima de confiança. Algumas das técnicas foram:

1) genograma lúdico que favoreceu que conversassem sobre as características das figuras de animais escolhidas para representar alguns membros da família o que gerou novas ideias sobre o relacionamento entre eles. Por exemplo o leopardo como um animal solitário; o hipopótamo como um animal altamente violento apesar de seus olhos doces. O diálogo possibilitou o reconhecimento da dinâmica estabelecida entre eles.

2) cada um escolher miniaturas em madeira de personagens, pessoas, animais, aves, objetos. A seguir se propunha conseguir as miniaturas que quisesse solicitando ao outro. Alguns dos temas conversados nesse jogo foram: que percebiam que através de truques até mímicos se engana para conseguir o que se quer; se aperceberam que tem coisas que não se quer dar; quem é enganado fica triste e com raiva.

3) leitura de conto infantil. Por exemplo: A toupeira que queria ver o cometa, de Rubem Alves. Onde se pode conversar sobre a prisão decorrente das próprias convicções que impedem de ver o que está diante dos olhos.

4) Ouvir a música: “Apenas tenha certeza que nunca está sozinho” (93 Million Miles). Solicitou-se que com recursos não verbais mostrassem como lhes chegou essa música. Pode-se conversar tanto sobre o que cada um esperava dos outros membros da familia como foram constatando o que lhes era possivel.

Pode-se sinalizar que a confiança parecia estar vindo a ser uma experiência possível entre eles.

Em sessões com o casal parental, o casal pode rever suas convicções sobre como

deveriam se portar como pais, versus sobre o que lhes era possível ser. Também puderam se aperceber de novas características do filho, até então não percebidas. Diziam eles: como a toupeira (referindo-se à personagem do livro infantil).

E assim uma nova narrativa despontou. Nessa nova história pais e filho lutavam focando três instâncias: a do querer, poder e dever enquanto iam se transformando, em família. Não estavam sozinhos, percebiam que tinham com quem contar, podiam confiar.

Comentários: a atividade artística lúdica
1) permite que se trate de temas penosos com seriedade, firmeza e humor, sem

necessariamente deixar de chorar e/ou mesmo ficar bravo;
2) o terapeuta deve propor atividades que no seu entender propiciarão que surjam os

temas que segundo sua percepção estão circulando no grupo familiar;
3) deve-se levar em conta as características das pessoas da família para escolher a atividade lúdica que possa lhes ser possível. Nem todas as pessoas se dispõe a

brincar, mas dependendo da brincadeira até podem se dispor;
4) aqueles terapeutas que tenham uma experiência no trabalho com crianças e adolescentes, em especial em ludoterapia, terão um conhecimento relevante para

utilizarem essa ferramenta no atendimento de casais e famílias.
5) o terapeuta deve ser significativamente participativo e utilizar seus conhecimentos teórico-técnicos em terapia familiar para fazer alinhamentos ao longo da sessão a

partir das novas informações e percepções circulantes.

No entanto mesmo estimulados por novas ideias vale lembrarmo-nos da mensagem de Antonio Machado: Caminhante, não há caminho. O caminho se faz ao caminhar.

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Abrir a possibilidade para novas narrativas: um desafio. Hiluey, A.

Angela Hiluey – Psicóloga; Doutora em Educação pela FE/USP; Pós-Doutora em Terapia Familiar pela Universidade Autônoma de Barcelona/Espanha; Diretora e Docente do CEF-Centro de Estudos da Família Itupeva – escola associada a RELATES-Rede Européia e Latino-americana de Escolas Sistêmicas; Member of the EFTA – European Family Therapy Association; membro titular da ABRATEF e da APTF. angelahiluey@yahoo.com.br

Benzinho: a nossa pietá brasileira.

Benzinho – A nossa pietá brasileira
Sobre a relação do homem com sua mãe, a nossa blogueira do Gesto Espontaneo , Cecilia Hirchzon escreve *:
“O homem, para ser “si mesmo” e para constituir a sua identidade masculina, terá de se separar desta Mulher, de quem dependeu totalmente. Já a mulher, para se constituir como tal, não precisa estabelecer necessariamente a separação – pode manter-se identificada com essa Mulher. Observamos, portanto, duas direções distintas: enquanto a mulher lida com a Mulher dentro de si através da identificação, o homem tem que se separar, tornar-se único, o que se constitui em uma urgência no desenvolvimento da sua identidade. A especificidade da identidade feminina caracteriza-se por ser geracional e infinita, isto é, podendo manter dentro de si três mulheres: o bebê menina, a mãe e a mãe da mãe. Essa condição possibilita à mulher o desempenho de diferentes funções sem violar a sua natureza. Pode ocupar posições diversas nas brincadeiras, onde ora é mãe, ora é filha, alternando papéis. Ou, ainda, na idade adulta, exercendo a sua feminilidade, ocupando o lugar de mãe e/ou mulher sedutora. Enquanto isso, o homem não se funde nessa linhagem – sua condição básica é a de ser um”.
No belíssimo Benzinho, de Gustavo Pizzi, que está em cartaz nos cinemas, o primogenito de Irene, mulher brasileira , mãe de quatro filhos, vai embora para a Alemanha a convite de uma universidade que está interessada no seu talento esportivo. O adolescente vibra enquanto a mãe se quebra, assustada com a partida súbita, fora de hora, do filho muito jovem. A história de Benzinho é o processo que se desencadeia com a chegada da noticia, suas idas e vindas , focado aqui no ponto de vista da mãe que vai tentando aceitar o momento que é de alegria e tristeza. Porque Irene é Pietá não vou contar aqui, para não dar um “spoiler” do filme. A interpretação de karine Teles é magistral. O amor materno aqui se desdobra em suas mais variadas possibilidades ( como diz a Adelia Prado, mulher é desdobrável) . A mãe suficiente boa, por sua saúde e sua capacidade de lidar com a perda e a separação, aparece na interpretação de Irene. Mãe suficientemente boa que se atrapalha, fica brava, dá chilique, chora, pira, respira, mas, enfim, ama. A gente fica apaixonada pela Irene. O longa foi escolhido como o filme brasileiro que vai disputar uma vaga entre os quatro finalistas ao Prêmio Goya de Melhor Filme Ibero-americano, considerado o Oscar espanhol.
E , para terminar, um poema, uma musica.

O gato andaluz*
(Rosa Alice Branco)
O meu filho caminha por aí. Já não sei
se é o Douro ou o Darro que lhe embala o sono.
Nem onde guardei as datas e o nome das ruas
ou se vou te encontrar logo à tardinha.
Deixei-me de saber e de pensar que sei.
Um gato arranha à minha porta a miar em andaluz.
Eu arranho a porta a dois dias daqui, duas horas
De avião. É proibido miar nos voos europeus.
Engulo a saliva do dia e assim se faz noite.
E não há gaivotas a gritar por mim. Por mim
estou eu à janela do avião. As malas
com que hei de dizer-te: cheguei. O teu abraço
como um rio qualquer onde corra água.
Esquecer o que ficou para trás e a língua que me fala.
Levar o copo à boca onde nasce a boca,
A fonte do quintal, a nascente do mar. O meu filho
Voa como se caminhasse descalço. Cruzamo-nos
no horizonte sobre a linha do rio onde deságua a luz.
E as palavras aquietam-se no seu nada.

( do livro Soletrar o dia, Ed escrituras, 2004)

* este artigo está postado em nosso blog na seção artigos e notícias ( “Os elementos masculino e feminino puro na clínica”).

La Vita in Comune- e seus homens imprudentemente poéticos.

“De vez em quando Deus me tira a poesia.

Olho pedra,

Vejo pedra mesmo.”

Adelia Prado

Em um certo momento do filme “la vita in comune” comecei a me perguntar se haveria uma final feliz , possível, para aqueles homens imprudentemente poéticos. Empresto aqui o título de uma outra obra* para falar de Filippo e os fratellos  Pati e Angiolino,  de sua amizade e de  sua inocência. Não deixa de ser engraçada a caricatura que a “vita in comune” faz da democracia, das mazelas da cidade parada no tempo que se chama Desperata**, e seus personagens.

A história é assim: Filippo é prefeito da cidade. Há pouco emprego, pouco progresso, e nas reuniões na câmara as criticas ao prefeito se tornam cada vez mais sérias. Querem construir perto do mar para atrair os turistas, mas Filippo gosta mesmo é de poesia, e vai ensinar literatura aos presos. Um deles é Pati, que se encanta e se transforma depois do contato com a poesia. Seu irmão, Angiolino, a principio se enraivece mas também se transforma por meio de um contato com o papa, que lhe diz para preservar a criação de Deus. A partir daí, a moda dos santos convertidos, ele que era um ladrão de galinhas, se regenera. Os três homens passam a compartilhar, poeticamente, e cada qual a sua maneira, um outro modo de vida. Aqui começa a utopia e o gosto levemente amargo da incompreensão -vai ficando mais clara a depressão de Filippo e a loucura dos irmãos. Porém o tema é tratado com leveza , com a poesia das imagens e da trilha sonora sempre presentes.

Os três Dons Quixotes encontram um doido que, a moda de Francisco de Assis, fala com os animais, e o acolhem. A imagem da arca de Noé aparece, com a utopia da paz entre os homens junto aos animais em harmonia e a terra-mãe protegida, cuidada. Algo como estar acolhendo o feminino de cada um.

Aparte os ( femin)ismos, acirrados nos nossos dias, e sem querer carregar bandeira; a película mostra a falta mesmo de poesia naquele mundo, onde pedra é pedra mesmo, onde falta espaço para o criar, lugar para o feminino. Este mundo masculino das coisas inanimadas e das relações robóticas, líquidas e utilitárias. Sem os objetos transicionais que dão sentido ao existir. Pois nos disse a Carla, também blogueira do Gesto Espontâneo, que a palavra poesia vem de poiseis, criar- transformar. Nesse sentido a poesia é o que reconecta o homem com o sagrado, a terra, o indizível, e o belo. São homens imprudentemente poéticos os heróis de La Vita em Comune. Vale apena assistir.

 

* titulo de um livro de Valter Hugo Mae, escritor português

**Aqui há um duplo sentido no nome da cidade; que pode significar “desespero” -“disperata” ou “aquela que em Deus espera- Desperata”. A polissemia é explorada de modo muito engraçado quando turistas chegam a cidade, logo no inicio do filme.

 

(La vita in comune – filme de Edoardo Winspeare, 2017. Em cartaz nos cinemas)

 

O gesto espontâneo de Francis Há

O filme Francis Há, do diretor Noah Baumbach (2013) está no netflix.

Para quem não assistiu no cinema, é uma boa opção. O filme narra as aventuras (e desventuras) de Francis, tentando achar o seu lugar ao sol em Nova York, e também no mundo adulto, em que parece não se encaixar. Grandona, desengonçada, espontânea, Francis e seus amigos são adolescentes tardios. Geração mimimi, geração nutela, geração nem-nem (nem trabalha, nem estuda)… Quem não escutou um destes termos e a explicação jocosa de que estes jovens estão se jogando da caixa d’água ou morrendo de propósito,  “feito passarinhos, avoando de edifícios” porque não querem crescer, ou não aguentam as frustrações? Não querem trabalhar, não querem dificuldades: “dá seis da tarde, largam a caneta”… ou: “foram criados na internet, tudo na mão, tudo fácil, não querem nada com a dureza”.

Hummmm… Ponho-me a pensar.

 

Na clínica dos tempos atuais constatamos um prolongamento da adolescência, toda uma geração de adultos jovens que não está conseguindo amadurecer. No entanto, amar e trabalhar, sair de casa, fazer parcerias e escolher uma maneira de ser autônomo é um desafio que enfrentam com dificuldade, nem sempre com essa placidez que aqueles termos pejorativos evocam. A geração mimimi está sofrendo de verdade.  Para Freud o trabalho pode “tornar possível o uso de inclinações pré-eexistentes, de impulsos pulsionais” a serviço da realização pessoal e da vida em comunidade. Winnicott diz: “se o que se pretende é que a vida instintual tenha liberdade de expressão...” haveria um equilíbrio que tem que ser obtido sempre de novo, em cada fase: “considerem um médico e suas necessidades. Privem-no de seu trabalho, e o que será dele? Ele necessita de seus pacientes e da oportunidade de usar suas aptidões, como qualquer outro profissional.”.

Privem o jovem adulto de usar suas aptidões… o que será dele?

Para estes jovens, estamos falhando em ser o ambiente que permite a realização: há os trabalhos criativos, e há os ofícios insanamente alienantes, e aqui eu não estou falando da alienação de Marx; eu estou falando da alienação do verdadeiro self. A morte psíquica é um desfecho possível, e quem viu o filme Arábia (Afonso Uchoa e João Dumas-2017) se entristeceu com a história do Cristiano, que escreve um diário, se apaixona, mas no final sucumbe, vira “coisa”, deixa de sonhar.

Francis sonha. E podemos sonhar este filme, como nos propõe Nino Ferro: Francis e seus amigos representando, cada um, uma parte do seu self (como no enredo de um sonho ou de uma sessão). O filme é uma fábula moderna sobre as vicissitudes da bailarina meio gauche, desengonçada, Francis, que com 27 anos enfrenta dificuldades para manter-se economicamente. Não  selecionada para o espetáculo de natal, ainda é uma adolescente: tem sonhos grandiosos de realizar-se como artista,  mas  não encontra reconhecimento no trabalho.Também não se acerta com o namorado :  “sou alta demais para casar” , e fala de si mesma  ” eu ainda não sou uma pessoa real, de verdade” . Da dificuldade de passar pela fase da adolescência diz ” sou uma pessoa que tem dificuldade em deixar os lugares” quando se demora no camarim, tentando organizar suas coisas após um ensaio, quando todos já foram embora.

 

Em várias de suas falas e no enquadramento do filme, quando dança, por exemplo, partes de seu corpo são deixadas fora da cena, e diz de si ” Nunca consigo saber como fiz meus machucados”. Esse corpo grandão e que escapa do esquema é tão próprio da adolescência, período de crescimento rápido, em que o corpo passa na frente e a mente corre atrás, atabalhoadamente, tentando dar conta do recado! Francis dança, mas é mesmo meio desastrada, como uma adolescente que cresceu rápido demais. Quando Sophie,  melhor amiga,  que pode ser sonhada como o seu duplo, de quem   diz “somos a mesma pessoa, com cabelos diferentes”, vai embora, inaugura-se  em Francis um período de solidão e busca de sentido,  marcado pela instabilidade: constantes mudanças de endereço  e viagens – a fuga para Paris, o retorno à universidade, à casa dos pais.  Outros personagens que vão aparecendo, todos na casa dos 30,e parecem encarnar os falsos-selves que Francis vai rejeitando em sua busca por autonomia e realização; os jovens ricos dependentes dos pais,  artistas que  nada produzem, a colega da companhia de dança que a acolhe em sua casa,  mas não sabe brincar. Francis, perto dos 30 e temendo parecer mais velha ( pois não se sente adulta), parece ser a pessoa mais desajustada, mas na verdade  é aquela que mais traz a marca da autenticidade e da alegria. Nem sempre estar bem ajustado significa saúde mental…se isso se faz às custas do estrangulamento do gesto espontâneo.

Podemos entender o tempo do filme como o tempo da adolescência,  tempo de estar sempre um pouco à deriva, sem respostas, de inquietude. Mas também tempo de rejeitar as falsas soluções. O que nós “adultos” ( rssss) gostamos de chamar de preguiça ou rebeldia ou aborrescência. ( É que a gente gosta de esquecer que já sentiu isso um dia – e vai sentir de novo: na menopausa, na hora de ter o ninho vazio, ao se aposentar, ao fazer o implante dentário, ao envelhecer…).

A cura da adolescência é a passagem do tempo. ” nos diz  Winnicott. Nós, terapeutas, vivemos com Francis, como expectadores, este marasmo que caracteriza tantos  momentos da análise dos adolescentes.

Enfim, nossa heroína consegue fazer a sua  passagem. No final do filme, tem a oferta de um trabalho de secretária ( aceito com  relutância), e se  reconcilia com a amiga que regressa do outro lado do mundo  ( simbolizando a integração dela mesma). Por fim alcançada alguma estabilidade,  inicia o trabalho como coreógrafa, inventando uma dança. Ela assim descreve sua coreografia       “gosto das coisas que parecem erradas”.

Três cenas finais indicam a elaboração da passagem da adolescência em Francis, de maneira muito poética. Na primeira,  orienta os bailarinos que vão ao palco encenar sua coreografia, mostrando a capacidade de estar na coordenação de um projeto original, autoral: a capacidade de trabalhar criativamente. Na segunda, o belo encontro de olhares de Sophie e Francis, ao fim da peça, que pode ser visto como o olhar amoroso, e também o espelho, o reconhecimento no olhar do outro, tão buscado pelo artista. E, enfim, a adequação ao princípio de realidade quando finalmente tem uma casa que é sua, e precisa cortar um pedaço de seu nome para que ele possa caber no  espaço da caixa de correio. É a aceitação da castração, como limite-borda definidora, parte do amadurecimento. Como nos diz Winnicott; “Ser, antes de fazer”. “O ser tem de se desenvolver antes do fazer…  finalmente a criança domina até mesmo os instintos sem a perda da identidade do self”. O nome comprido que pode ser cortado agora é Francis amadurecida, ajustando-se, sem deixar sua dança, sem perder a felicidade, o senso de identidade e a capacidade criativa. De uma forma dialética, e poética, o fazer também alimenta o Ser; assim acontece com Francis, que amadurece tarde, mas no seu próprio tempo.

para meu sobrinho, Thales Augusto.

 

Quem foi : Victor Guerra

Por Carla Braz Metzner

O psicanalista Uruguaio Victor Guerra dedicou a sua vida ao estudo, pesquisa e atendimentos clínicos da relação mãe/ bebê, da primeira infância, adolescentes e adultos.
Ele realizou por mais de vinte anos consultas terapêuticas em um jardim da infância inspirado nas contribuições tão importantes de D. Winnicott .
Estava trabalhando na sua tese de doutorado em Paris, sobre o ritmo e os indicadores de intersubjetividade no processo de subjetivação do bebê. Mas seu falecimento precoce interrompeu seu percurso, o seu trabalho e suas contribuições continuam reverberando entre nós.
Sua tese de doutorado será publicada em Paris com um evento em sua homenagem no dia 12/1/2019. Seu trabalho trouxe grande contribuição ao pensamento psicanalítico.
No dia 22 e 23 de junho de 2018 ocorreu uma homenagem para Victor Guerra em Montevidéu. O tema era : o que  nos ensinam os bebês? – Prof psicanalista Victor Guerra.
Neste evento o mais marcante era a transmissão de uma forma, de uma ética psicanalítica  presente no respeito ao outro, aos profissionais  e pacientes.
Na sua disposição de mente para fazer dialogar os autores e as teorias, que como ele dizia ,trazia movimento, ritmo e abertura para ir em busca do sofrimento humano e poder através da arte, da literatura e da poesia encontrar o assombro,  e a capacidade negativa como elucida o escritor john Keats. A Capacidade para viver a incerteza, o não saber, para poder lidar com o lamentável  e o sublime da condição humana, como assinala o escritor Octavio Paz tão apreciado por ele.
Victor foi coordenador da Fepal da área de crianças e adolescentes e foi um dos idealizadores da carta de Cartagena. Nos  trazendo a contribuição de varias associações e sociedades de psicanálise, se posicionando favoráveis ao tratamento psicanalítico do transtorno do espectro autista, reconhecendo toda experiência dos profissionais e produção de conhecimento construído pela psicanálise.
Victor encontrava na poesia sua inspiração para a clínica e para a vida, sua lista de escritores e poetas preferidos é muito grande, mas o escritor Uruguaio Felizberto Hernandez que aparece no fundo desta fotografia do Victor exerceu grande influência. Sua descrição dos personagens humanos, do seu mundo interno e seus dilemas despertaram seu interesse pela psicologia e psicanálise na adolescência, assim como sua experiência de vida com os imigrantes que frequentavam o boliche de seu pai e contavam suas histórias e seus dramas.
Os escritores brasileiros Ferreira Gullar e Manoel de Barros também foram sempre muito citados em seus trabalhos e em sua tese. E para também homenagear Victor neste texto cito um poema de Ferreira Gullar que ele gostava muito.

Despedida
Eu deixarei o mundo com fúria.
Não importa o que aparentemente aconteça,
se docemente me retiro.
De fato,
neste momento estarão de mim arrebentando raízes tão fundas.
Quanto estes céus brasileiros.
Num alarido de gente e ventania
olhos que amei, rostos amigos
tardes e verões vividos
Estarão gritando ao meu ouvido
para que eu fique , para que eu fique.
Não chorarei
Não soluço maior do que despedir-se da vida.
Ferreira Gullar

O Objeto Subjetivo à luz do filme ¨1945¨: por Diana Goldberg

O Objeto Subjetivo à luz do filme ¨1945¨

O filme de título 1945, se passa em uma pequena cidade/ aldeia no interior da Hungria, quando a Segunda Guerra recém terminou. Dois judeus chegam de trem a essa cidade carregando 2 baús, contratam um charreteiro para que possam transportá-los e iniciam sua caminhada atravessando a cidade.

Impressionante a sensibilidade e sutileza do diretor que, de forma extremamente sucinta e contida, consegue comunicar os inúmeros dramas que são mobilizados e despertados pela chegada dos dois homens, por meio dos quais o espectador vai depreendendo e se dando conta. Nada é claramente explicitado e mostrado, o que vai se revelando a cada momento é a vivência emocional e a estrutura de personalidade de cada habitante frente à chegada desses dois judeus que nada falam, nada fazem, apenas seguem caminhando.

 

Os sentimentos que são despertados nos distintos personagens revelam seu caráter.

O primeiro a se alarmar com a chegada dos desconhecidos é o chefe da estação, que rapidamente espalha a notícia a quantos moradores seja possível. Primeiramente, a um homem rico e poderoso na cidade, proprietário da farmácia, que está envolvido com os preparativos do casamento do filho que aconteceria naquele dia. Quem teria mandado aqueles dois judeus até lá? E assim a história se desvela, através das reações emocionais de cada habitante que projeta seus fantasmas.  Se constrói dessa forma o enredo do filme através dos sentimentos de culpa, sentimentos persecutórios, de negação, que os personagens expressam. Entendemos que os judeus que ali viviam antes da guerra foram levados para os campos de concentração, alguns traídos por seus melhores amigos. Após isso, os gentios que permanecem, tomam de forma ilícita suas casas e bens.

Cria-se o caos e o pânico entre os habitantes:  O Poderoso, muito nervoso e preocupado, havia se apoderado da casa e dos bens do melhor amigo, ao qual havia traído, e passa a demonstrar um comportamento psicopático de negação de seu ato, revelado pela mulher deprimida, a qual ele trata como doente mental. Esse mesmo homem destrata e humilha o filho, que não se comporta da mesma maneira autoritária e prepotente. Outro personagem, tomado pela culpa e desespero de ter se apropriado do que não era seu, querendo devolver o que não lhe cabe de direito, e sendo impedido, não suporta a angústia e se suicida.

Assim, temos uma rica oportunidade de constatar as teorias psicanalíticas segundo a luz de pelo menos dois autores distintos: Donald Winnicott, com sua Teoria do Objeto Subjetivo[1], e Freud, com o conceito de Projeção, assimilado e muito presente na obra de Melanie Klein.

Os dois judeus que ali chegam nada dizem, nada fazem, a não ser seguir caminhando e olhando ao redor, até chegarem ao cemitério judaico. Quando interpelados pelo Sr. Poderoso, o que queriam ali, respondem: ¨Viemos a um enterro¨; de quem pergunta o Sr. Poderoso; ¨Do que restou de nossos mortos¨; e assim como chegam, se vão. Toda a história é contada por meio do que a chegada desses dois senhores desperta nos moradores da cidade, pelos sentimentos projetados de culpa, medos persecutórios de descoberta e punição, negação maníaca de que seus comportamentos de apropriação indevida foram absolutamente lícitos, ou porque necessitavam, ou porque tinham escrituras que, na verdade, foram forjadas e falsas.

Além dos sentimentos despertados pela presença dos dois senhores, a situação tensa que se cria na cidade faz com que outras situações emocionais entre os moradores apareçam, revelando de forma contundente a natureza humana com o que tem de mais violento:  ódios, raivas, traições, interesses, inveja e ciúmes. A personagem mais lúcida é justamente a mulher melancólica, deprimida, que para aliviar seu intenso sofrimento faz uso de éter. Aquele que seria o mais íntegro só encontra saída partindo daquele lugar, justamente no mesmo trem em que partem os dois judeus, que não vieram a mando de ninguém, para reivindicar nada, cobrar nada, apenas para fazerem um enterro simbólico dos que já morreram.

[1] Conceito de objeto Subjetivo:  Para Winnicott, o ser humano não nasce do ponto de vista psíquico, ele vai se constituindo no olhar da mãe. Como o ser humano nasce numa condição de dependência absoluta e, nesse início, o bebê não sabe que é separado e diferente da mãe, como diz Winnicott: ¨o bebê é o seio¨, é importante que nesse início a mãe possa sustentar essa ilusão de onipotência, sendo essa uma mãe suficientemente boa que se adapta ativamente às necessidades do bebê, e assim sustenta a ilusão de que o bebê cria o seio. Esse conceito é central porque se refere a um aspecto essencial do desenvolvimento emocional que é a experiência da realidade subjetiva. A realidade subjetiva é a condição em que vive o bebê no início da vida e é através dessa condição que se dá a única possibilidade de percepção e apreensão do mundo.