Acalantos
“meu coração me acordou chorando ontem à noite
o que posso fazer eu supliquei
meu coração disse
escreva o livro “
Rupi Kaur ( Outras jeitos de usar a boca, 2014 )
Esta história começa com a perda de um vovô querido que me comoveu muito, colhido pela Covid. E este sobressalto no peito. Meu coração disse: escreva. E então a idéia de um acalanto me veio : a composição de Aldir Blanc e Cristóvão Bastos que fala disso, de avós e netos. Fiz a postagem ( https://www.gestoespontaneo.com.br/avos/) mas meu coração não sossegou.
Porque no meio do caminho da minha busca musical, navegando na internet, dei em outras terras . Topei com um outro avô e um terceiro acalanto, que não conhecia. Navegando na internet também cheguei à Bahia

e ouvi:
Ou seja: encontrei Caetano, vovô moderno, observando seu neto Benjamim aprendendo a dormir! Cantava assim:
O autoacalanto de Benjamin
Que é, por enquanto, caçula de mim
É um deslumbramento
Ele emula o canto de um querubim, curumim
O que é mesmo que isso me ensina?
Um ser que a si mesmo se nina
É um quase lamento
Já é nota de tom
E tem cor de jasmim
Eu nunca tinha visto nada assim
O alumbramento do avô reparando no neto que começa a compor alguma coisa de si, quase um lamento, acalentando a si próprio… eu também não tinha visto nada assim. O avô não só observa o neto, como traduz o que vê, na letra da canção – e o imita. O autoacalanto que ajuda Benjamim a dormir é por seu avô reproduzido, brincado, na própria canção, nas vocalizações que ouvimos após os versos finais.
Coisa de vô e neto.
Quem tem bebê pequeno sabe que aprender a dormir sozinho não é fácil. A possibilidade de um bebê se autoacalentar, principalmente em algumas fases em que se angustia mais de estar separado da mãe : não é pouca coisa não! A nossa colega Gilca nos fala disso em seu post ( https://www.gestoespontaneo.com.br/o-sono-dos-bebes/).
Assim, o que o avô percebe, e faz com que ele se en-cante, é o uso que Benjamin faz das vocalizações para ninar-se a si mesmo.
Este acontecimento psíquico não escapou dos olhos de Winnicott.
Em “O brincar e a Realidade” o autor nos conta desta descoberta e inaugura um campo muito rico de pensamento para a psicanálise . Ele nomeia de objetos transicionais aquelas primeiras posses dos bebês que podem ser o ursinho, o “naná”, ou até a ponta de um cobertor e que os ajuda a se consolar e ficar bem sem a presença da mãe. Ele nos ensina que mesmo palavras que o bebê canta ou repete podem ter para ele um valor transicional, no sentido de permitirem um intercâmbio entre ele e o mundo, confortarem, reassegurarem, na medida em que encarnam ,para ele, a mãe. Estes objetos estão numa área intermediária que “mistura” seu mundo interno e a realidade, uma área de verdadeiro brincar, que ainda não é para o bebê pura imaginação ( pois o objeto tem de estar lá na sua concretude) mas já denota uma capacidade de ir além da concretude das coisas, uma qualidade do que em nós é o psiquico e que nos bebês pequenos está em estado nascente.
Um avô que observa esta coisa acontecendo em seu neto e a torna música nos lembra o quão deslumbrante pode ser a percepção, para o adulto, deste acontecimento. O poeta, o artista, é aquele que olha uma coisa corriqueira, comum, e se deslumbra. Winnicott vai entender a cultura como uma derivação dos objetos transicionais do bebê: na medida em que os espaços de troca culturais são lugares privilegiados onde ou Eu e o mundo se misturam sem que se precise abrir mão da fantasia e da sensação de ter criado, inventado, o mundo. A cultura é o sonho compartilhado com o mundo real.
Vovô Caetano faz a mesma coisa que Benjamin quando compõe sua canção.
Coisa de vô e neto.
Agora vamos rodar o filme para uns cem anos atrás. Há cem anos , também assolado por uma epidemia, um outro avô escreveu sobre seu neto, a partir da observação dos acontecimentos psiquicos que podia inferir das suas brincadeiras. A história é mais ou menos assim.
Este avô foi passear na casa da filha ( dizem que era a sua filha predileta) e observou o neto brincando com um carretel. Ele sacou, como Caetano, que as vocalizações da brincadeira estariam representando a imagem mental da continuidade-descontinuidade da presença materna! A esta altura você já deve estar imaginando que o vovô aqui era o Freud.

Sobre o relato da brincadeira do neto, transcrevo abaixo suas próprias palavras:
“As diferentes teorias sobre a brincadeira das crianças … esforçam-se por descobrir os motivos que levam as crianças a brincar, mas deixam de trazer para o primeiro plano o motivo econômico, a consideração da produção de prazer envolvida. Sem querer incluir todo o campo abrangido por esses fenômenos, pude, através de uma oportunidade fortuita que se me apresentou, lançar certa luz sobre a primeira brincadeira efetuada por um menininho de ano e meio de idade e inventada por ele próprio. Foi mais do que uma simples observação passageira, porque vivi sob o mesmo teto que a criança e seus pais durante algumas semanas, e foi algum tempo antes que descobri o significado da enigmática atividade que ele constantemente repetia.
A criança de modo algum era precoce em seu desenvolvimento intelectual. À idade de ano e meio podia dizer apenas algumas palavras compreensíveis e utilizava também uma série de sons que expressavam um significado inteligível para aqueles que a rodeavam. Achava-se, contudo, em bons termos com os pais e sua única empregada, e tributos eram-lhe prestados por ser um “bom menino‟. Não incomodava os pais à noite, obedecia conscientemente às ordens de não tocar em certas coisas, ou de não entrar em determinados cômodos e, acima de tudo, nunca chorava quando sua mãe o deixava por algumas horas. Ao mesmo tempo, era bastante ligado à mãe, que tinha não apenas de alimentá-lo, como também cuidava dele sem qualquer ajuda externa. Esse bom menininho, contudo, tinha o hábito ocasional e perturbador de apanhar quaisquer objetos que pudesse agarrar e atirá-los longe para um canto, sob a cama, de maneira que procurar seus brinquedos e apanhá-los, quase sempre dava bom trabalho. Enquanto procedia assim, emitia um longo e arrastado “o-o-o-ó”, acompanhado por expressão de interesse e satisfação. Sua mãe e o autor do presente relato concordaram em achar que isso não constituía uma simples interjeição, mas representava a palavra alemã “fort.” Acabei por compreender que se tratava de um jogo e que o único uso que o menino fazia de seus brinquedos, era brincar de “ir embora” com eles. Certo dia, fiz uma observação que confirmou meu ponto de vista. O menino tinha um carretel de madeira com um pedaço de cordão amarrado em volta dele. Nunca lhe ocorrera puxá-lo pelo chão atrás de si, por exemplo, e brincar com o carretel como se fosse um carro. O que ele fazia era segurar o carretel pelo cordão e com muita perícia arremessá-lo por sobre a borda de sua caminha encortinada, de maneira que aquele desaparecia por entre as cortinas, ao mesmo tempo que o menino proferia seu expressivo “o-o-ó”. Puxava então o carretel para fora da cama novamente, por meio do cordão, e saudava o seu reaparecimento com um alegre “da” (ali). Essa, então, era a brincadeira completa: desaparecimento e retorno. Via de regra, assistia-se apenas a seu primeiro ato, que era incansavelmente repetido como um jogo em si mesmo, embora não haja dúvida de que o prazer maior se ligava ao segundo ato.
A interpretação do jogo tornou-se então óbvia. Ele se relacionava à grande realização
cultural da criança, a renúncia instintual (isto é, a renúncia à satisfação instintual) que efetuara ao deixar a mãe ir embora sem protestar. Compensava-se por isso, por assim dizer, encenando ele próprio o desaparecimento e a volta dos objetos que se encontravam a seu alcance.” ( Freud- Além do princípio do prazer -1920).
Quando publicou este texto, em 1920, contando a história da brincadeira do neto, Freud havia acabado de perder sua filha Sophie, a mãe deste garotinho, para a gripe espanhola!
Entre Freud, Winnicott, e hoje, muita coisa mudou e muita coisa permanece a mesma.
Cem anos depois, cá estamos nós, assolados por uma nova pandemia, que nos levou muitos avôs ( inclusive o vovô Aldir Blanc), assim como no passado a gripe espanhola levou Sophie. Por que o texto de Freud permanece atual?
Aqui está um avô que observa. Diferente de Caetano, que compôs uma musica , este avô também tentou entender, traduzir, as vocalizações de seu neto e o nascimento de algo psiquico que aquilo representava. Este mesmo homem, assolado pela dor da perda da mãe deste garotinho, publicou no mesmo ano desta morte um trabalho profundo e audacioso ( Além do principio do prazer) onde tentou entender a natureza da repetição no acontecer psíquico. É neste trabalho que ele fala desta brincadeira do carretel. O que ele não fala, e hoje podemos pensar, é que na medida em que escreve também brinca, como seu neto, sentindo falta de sua amada Sophie.
Ele , no decorrer do seu texto, termina por desenvolver idéias sobre a destrutividade que nos ataca por dentro- a qual chamou de instinto de morte. Ainda hoje, recorremos a este texto, lemos , relemos, na busca de entender essa onda de morte que nos assola. Este presidente que, sem máscara, nos assusta. Este vírus que parece mais ligeiro do que a gente, do que a nossa inteligência, nossa capacidade de fazer ligações.
E vamos tentando fazer ligações.
Ligar, desligar, brincar, simbolizar, escrever, compor. A história que começa com um avô perdido, chega na Bahia, encontra outro avô, coloca o Winnicott na caravela, volta cem anos do tempo, mais um avô, mais um neto, mais uma perda, outra pandemia. Conseguem me acompanhar nesta viagem?
(o que posso fazer eu supliquei
meu coração disse
escreva o livro )
No ano em que perdeu sua filha o avô Freud não fez uma canção – ele mesmo dizia não ser um cara muito musical- e sim escreveu um trabalho que nos encanta até hoje. Este trabalho com certeza fez parte do processo de Winnicott na formação da idéia do objeto transicional. Pensemos o bebê representando o processo de continuidade-descontinuidade da presença materna por meio do jogo do carretel. Pensemos Benjamin, ninando a si mesmo, cem anos depois. E entre Caetano e Freud, Winnicott- que não foi avô mas mesmo assim foi grande em descrever muitos alumbramentos no desenvolvimento das inúmeras crianças que observou ao longo dos anos da sua clínica.
Sim, coisa de avô e neto: um acalanto leva ao outro, e Freud aprende com seu neto! Sua escrita de “Além do principio do prazer” , iniciada antes, mas publicada no ano da morte da filha, também é uma elaboração da perda que sofre.
O que é esta combinação de amor tão poderosa ? Um dos terrenos mais férteis para estes acalantos e composições todas que nos ajudam, enfim, a compreender o humano . Para mim a psicanálise é isso.
E aqui estou euzinha- brincando de escrever no blog e reunir dentro de mim estes mestres que admiro.
Talvez o mesmo motivo que fez vovô Freud escrever, vovô Caetano cantarolar, e seus netinhos brincarem seja o que me move agora a postar, neste blog, uma certa costura de todos estes retalhos que me ajudam a pensar , resistir, lidar com este momento difícil da pandemia e as perdas que ela vem nos trazendo.
É também um autoacalanto…

( dedico este post à Elisa Cintra, que vem trabalhando conosco , em seu curso, o brincar. )