A crueza e a beleza de viver o possível

Sobre o filme: Hanami – Cerejeiras em flor
Direção: Doris Dörrie; Produção Alemanha/França, 2008

Observação: o texto revela o roteiro do filme [ALERTA DE SPOILER]

Em “Hanami”, na primeira cena, a morte é logo anunciada. Trudi (Hannelore Elsner) fica sabendo que Rudi (Elmar Wepper) tem pouco tempo de vida. Os médicos contam apenas para ela e sugerem que os dois façam uma viagem, enquanto é possível. “Meu marido não gosta de aventuras” responde e resolve guardar sua angústia e o segredo. No entanto, pede ao homem para irem visitar o filho mais novo em Tóquio. Ela ama a dança japonesa do Butoh e tem o sonho de conhecer o Monte Fuji, mas ele acha muito caro, “talvez depois da aposentadoria”. Então, o casal visita os outros dois filhos em Berlim e, diante do desencontro de gerações, decidem ir passar uns dias na praia. Mas, o inesperado acontece. Trudi morre dormindo. Morre com seu segredo, com seus sonhos. A realidade toma outro curso.

A falsa sensação de permanência do estar vivo, com suas rotinas e certezas, traz uma perspectiva de que sempre se terá tempo para o futuro, como se a negação da perspectiva de um fim acabasse mortificando o viver em repetições previsíveis.

O que lembra a efemeridade assusta: a doença, o envelhecimento, a possibilidade do morrer. As moscas, lembradas no poema recitado em família, aparecem como importunos insetos que precisam ser afastados ou esmagados para que não atrapalhem a sensação de continuidade, com sua existência efêmera. Por outro lado, a perda iminente ou concretizada de um ser querido quebra esse arranjo confortável e chama, à cena, a fragilidade humana.

Ele, agora viúvo, vai à Tóquio, levando as roupas da mulher na mala, desejando que de alguma forma ela esteja presente. É primavera e depois de alguns dias, o filho o leva para o Hanami Festival.

Contemplar as flores das cerejeiras é uma tradição milenar no Japão. É uma forma de apreciar a beleza e brevidade da floração, que dura cerca de 14 dias, ao sentar embaixo das árvores, com a família e amigos, comendo e celebrando a vida, enquanto é possível. Observar as flores, a sua natureza cíclica, coloca, no tempo, a percepção da finitude, que coabita a existência.

Voltando ao jardim, Rudi conhece Yu (Aya Irizuki), uma jovem órfã, que dança o Butoh no parque. Com ela, consegue conversar sobre sua perda, entender o significado da dança com as sombras e os sentimentos.

O Butoh, por ser uma dança sem coreografia própria, mostra um corpo em transformação, que constrói e desconstrói sua identidade em ritmos particulares, transitórios. Através da fluidez da forma, busca expressar e alcançar a essência do dançarino. O marido enlutado, anteriormente preso à suas tarefas e costumes, nesta nova convivência, veste outra roupagem, inusitada.

A menina passa a ser sua intérprete, uma ponte à língua japonesa e ao mundo sensível da sua esposa. Eles fazem uma viagem para ver o Monte Fuji, mas a montanha diariamente se esconde na neblina. Quando, numa madrugada, finalmente a montanha fica visível, o homem, sentindo-se cada vez mais doente, dança o Butoh, vestido com as roupas de Trudi, e encontra a morte.

Quando Winnicott anota em suas memórias: “Oh, Deus! Possa eu estar vivo quando morrer” sublinha a valorização da experiência, o exercício constante de sentir-se real mesmo diante da terminalidade. A vivacidade de estar presente em seus gestos, na expressão de si mesmo é interagir e observar a realidade sem estar submisso a ela.

Muitas vezes para lidar com a inevitabilidade da perda, viver passa a ser uma repetição de atos rotineiros, metódicos, que afasta a espontaneidade, a criatividade. O próprio futuro surge como uma fuga para o eterno. Desvestir-se das ilusões, sentir a falta do outro que segue suas próprias leis e caminhos e reinventar-se são tarefas diárias, mas que por vezes somem no cotidiano, como nas manhãs que se repetem na cidadezinha do interior em que os personagens moram.

O entorpecimento, trazido pela negação da vulnerabilidade humana, borra os limites entre o que é subjetiva e objetivamente percebido, inibindo a ação criativa. Quando diariamente Rudi chegava para jantar, no tempo em que vivia com sua mulher, e encontrava os charutos de repolho prontos para comer, pelo costume, turvava-se a realidade de que ali existia alguém que os fizera. Após sua perda, quando chega na casa vazia, a falta, objetivamente, explicita o engano. Mais tarde, no Japão, a partir da receita da esposa, pode brincar, inventar, recriar a partir da visibilidade da separação e cozinhar os charutos para o filho.

D.W.Winnicott afirma: “É com base no brincar que se constrói a totalidade da existência experiencial do homem. Não somos mais introvertidos ou extrovertidos. Experimentamos a vida na área dos fenômenos transicionais, no excitante entrelaçamento da subjetividade e da observação objetiva, e numa área intermediária entre a realidade interna do indivíduo e a realidade compartilhada do mundo externo aos indivíduos”.

Experimentar a impermanência das coisas e das pessoas, abre portas para a angústia, mas também para um convite a desfrutar a realidade provisória em que se vive. As cerejeiras em flor carregam dentro da sua beleza o sentido da transitoriedade e a urgência do presente.

Nessa época em que a pandemia atual marca a fugacidade da vida, colocando as pessoas como moscas presas numa garrafa do tempo presente, resta a crueza e a beleza de viver o possível, que limita e liberta.


de tantos instantes
para mim lembrança
as flores de cerejeira

🌸
Matsuo Bashô


Cena final do filme “Hanami – Cerejeiras em flor”