O abraço partido

De repente, neste dia dos pais, penso naqueles que não tem o seu pai consigo. Na falta que faz um pai.

Tem os pais que já morreram, mas também tem os pais que foram embora, tem os pais que nunca estiveram aqui. Quando um pai vai embora, em seu lugar ficam muitas perguntas. Outros podem exercer o seu papel, mas o abandono de um filho por seu pai é difícil de entender, do ponto de vista do filho. Os laços que ligam um pai ao seu filho não são somente biológicos. Divórcios difíceis, relações fugazes, situações externas…e os pais muitas vezes vão embora. No nosso trabalho de analistas encontramos muitas destas feridas . Pais que se sentem estranhos em relação aos seus filhos, filhos que mal conhecem, ou não conhecem seus pais. É bem dolorido pensar que o pai faltou em sua vida- qual a razão para este abandono…. Falo aqui , mesmo, desta pessoa, deste homem, que veio e partiu. A função paterna, esta, pode ser exercida por outras pessoas. Pode-se crescer, pode-se amar, trabalhar, sem a presença do pai. Mas fica uma dor quando ele parte, pois em nosso íntimo sabemos que este homem se furta a uma responsabilidade, e sua partida é abandono. Para a criança é difícil enxergar quando a ponte entre si e seu pai está obstruída pela própria mãe, ou pela força de alguma circunstância. O abandono é intransitivo.

Muitas vezes, o tempo passa e as circunstâncias mudam. Quando se reencontram pai e filho, pode haver reparação e a criação de outras pontes, sobre as ruínas daquela que foi destruída. O tempo que passou, não volta. Mas as memórias podem ser relidas com as lentes da compreensão. Pode-se enfim dizer, em muitos casos, que entre um pai biológico e um filho nada existe- e passar do rancor à gratidão por aqueles que garantiram sua vida e a sustentaram com seus laços amorosos. Porém, negar a dor não faz com que desapareça. Se pranteada, o luto necessário pode acontecer…a dor toma um destino e pode parar de doer.

Como se constroem as pontes que ligam o pai e seu filho? A lei garante a pensão, mas a ponte, não. É difícil aprender a amar alguém a quem não se viu crescer. Os momentos repartidos valem mais que mil presentes.

A história de Ariel , no filme “O Abraço Partido” ( Daniel Burman, 2004) é a história de muitos que se sentem abandonados pelo pai. No decorrer do filme, percebemos as dores da família, de origem judaica, que permanecem encriptadas por conta das violências e rupturas sofridas. Em uma conversa com sua avó, Ariel descobre que ela era cantora, e não cantou mais depois que deixaram a Polonia:

Ainda nao sei… quando escapamos do gueto com seu avô, viemos à Argentina. Não tinhamos nada. Eu, em Varsovia, cantava em um clube, com as meninas.

-você cantava?

-Sim , mas quando nos instalamos na Argentina, o avô não quis que eu cantasse mais.

-Por que?

-Dizia que lhe recordava o horror, sua família, amigos que já não estavam… e eu para não fazê-lo sofrer…cantava para dentro…o que eu amava cantar, cantava em minha mente.

Ariel quer fazer o caminho inverso, sair do país em crise e tornar-se cidadão europeu. O pai, que partiu para a guerra de Yom Kipur, ele não conhece. O pai perdeu seu braço na guerra. Quando tenta se reaproximar, depois de anos, encontra uma resistência por parte de Ariel. Assim, a ruptura e a perda vão se reeditando; a avó que não canta, o pai que perdeu o seu braço, o moço que não conheceu o seu pai. O reencontro entre Ariel e seu pai Elias é o ponto alto do filme, uma cena muito bonita, que nos toca pela sua dramaticidade e verdade. Percebemos no olhar do pai que o filho sempre esteve presente em seu coração.

Muitas vezes na tentativa de ouvir as feridas dos abandonados, encontramos histórias de abandonos transgeracionais e suscessivos. Um pai que deixa seu filho à própria sorte carrega consigo também esta marca:

“    Um homem chegou aos quarenta anos e assumiu a tristeza de não ter um filho. Chamava-se Crisóstomo. Estava sozinho, os seus amores haviam falhado e sentia que tudo lhe faltava pela metade, como se tivesse apenas metade dos olhos, metade do peito e metade das pernas, metade da casa e dos talheres, metade dos dias, metade das palavras para se explicar às pessoas”. Via-se metade ao espelho e achava tudo demasiado breve, precipitado, como se as coisas lhe fugissem, a esconderem-se para evitar a sua companhia. Via-se metade ao espelho porque se via sem mais ninguém, carregado de ausências e de silêncios como os precipícios ou poços fundos. Para dentro do homem era um sem fim, e pouco ou nada do que continha lhe servia de felicidade. Para dentro do homem o homem caía.

Este é um trecho do livro “O filho de Mil homens” de Valter Hugo Mãe. O pai de Ariel, Elias, também lhe falta um pedaço: o pedaço dos abraços que não pôde dar em seu filho enquanto ele crescia.

Este dia dos pais, dedico aos pais e aos filhos que não puderam se abraçar.

Nesta cena, Ariel vê seu pai, reconhece a falta do braço que ele perdeu na guerra. Sua reação nos dá a ideia da dimensão da sua angústia.