A Função materna
” Entender os outros não é uma tarefa que comece nos outros. O início somos sempre nós próprios, a pessoa em que acordámos nesse dia. Entender os outros é uma tarefa que nunca nos dispensa. Ser os outros é uma ilusão. Quando estamos lá, a ver aquilo que os outros veem, a sentir na própria pele a aragem que outros sentem, somos sempre nós próprios, são os nossos olhos, é a nossa pele. Não somos nós a sermos os outros, somos nós a sermos nós. Nós nunca somos os outros. Podemos entendê-los, que é o mesmo que dizer: podemos acreditar que os entendemos. Os outros até podem garantir que estamos a entendê-los. Mas essa será sempre uma fé. Aquilo que entendemos está fechado em nós. Aquilo que procuramos entender está fechado nos outros.”
José luis Peixoto; “Em teu ventre”
Falando de fé.
Existe uma coisa que é a fé: um sentimento e uma certeza que não se pode explicar. Falamos para nos comunicar, acreditamos. O que você ouve? Acredito que você me ouve. Acredito que sabe que sentido estas palavras tem para mim. Acredito que, na nossa linguagem comum, compartilhamos palavras e sentidos. Você me escuta? O que você escuta? Tento te contar alguma coisa, compartilhar algo. Um pensamento, uma história, um pedido.
Mas às vezes sua cabeça funciona como o corretor automático do whatsap. Vai completando as palavras, terminando a minha frase antes que ela acabe. Não me espera terminar. Também não te espero. Exaspero. De onde vem esta fé de ser compreendido?
Não perco a fé, recomeço.
Gostaria de não precisar das palavras. Você brinca comigo, você diz : será que vou ter que desenhar? Quem sabe.
Quem dera a gente pudesse e soubesse desenhar assim. Se tivesse uma penseira, que nem aquela da história do Harry Potter. A penseira uma bacia grande em que os pensamentos refletidos em imagens e cenas pudessem ser observados de fora. A penseira é o sonho? E se eu te contar o meu sonho?
Mas não me lembro mais. Ao pensar no sonho, ele já se escorrega para o fundo da penseira. Conto uma história do meu sonho, uma narrativa do sonho. Mas o sonho já me escapuliu. Nem eu sei do meu sonho.
E não sei se era bem isso… não sei… Não era bem isso que eu queria dizer. Se tudo é mal-entendido… existe bem-entendido? Será que a gente poderia vir ao mundo com uma tecla SAP? Uma legenda … veja bem… uma tabuleta luminosa com explicações . Que idioma, que léxico, compartilhamos – ou não?
Longe, muito longe, era uma vez. Quando eu não podia falar já falavam comigo. Alguém falou por mim meu sono, minha fome. Alguém me disse que eu estava assustado de noite, era escuro. Alguém soube da minha dor de barriga e me colocou de bruços, foi bom. Quem é você, que fala comigo antes que eu me fale? Quem é você, meu cobertor, minha geladeira e meu microondas, meu carro, meu patinete, meu balanço ? Quem é este cheiro familiar, este barulhinho de água esquentando, quem é esta água em que me mergulham para eu brincar? Quem é esta voz que se aproxima e se afasta, nesta certa tonalidade, que me faz dormir? Quem me veste estes panos macios, coloca meias nos meus pés, que eu tiro sem perceber.
Fé. Eu não me esqueço destas memórias das quais não me lembro bem… hoje são fé. Falo com você porque acredito. Espero, porque acredito, que possamos nos bem entender. À parte os mal entendidos … Um dia me adivinharam , hoje quero te falar.
Um dia me pensaram, me sonharam.
Hoje sou.
A função materna resta em fé.
Acima: Uma mãe adotiva dando ao pequeno Leitão assustado a experiência de um banho!