Equilíbrio Instável

por Odelis Basile

Pretendo relatar o que tenho vivido em minha experiência clínica e o que tenho  pensado e aprendido com os meus pacientes, supervisores, analistas e colegas de profissão.

O tema dessa minha apresentação é o Equilíbrio instável. Dei este nome porque visitei, em 2019, aqui em São Paulo, a exposição de Paul Klee.

Equilíbrio instável, em linhas gerais, é um conceito que vem da física.

Dizemos que um objeto está em equilíbrio instável quando ele permanece em uma determinada posição em equilíbrio, e sofre uma força qualquer. O resultado é que o objeto não permanece na mesma posição e não retorna ao equilíbrio da sua posição inicial.

Equilíbrio Instável também é o nome da exposição de Paul Klee. Nela foram expostas suas obras. Klee era músico, desenhista, pintor e poeta.

Ele nasceu e cresceu na Suíça, mas sua nacionalidade era alemã. Foi obrigado a ir para a Primeira Guerra Mundial. Depois, foi perseguido pelos nazistas e, por isso, teve que deixar a Alemanha. Posteriormente, mudou-se para vários lugares da Europa, onde continuou produzindo sua arte.

Em suas obras, imprimiu como metáfora as desestabilizações  que sofremos e como elas se recompõem. Assim, procurou reproduzir em suas obras esse  estado que viveu, denominado, nesta exposição, Equilíbrio Instável.

A arte de Klee reflete sua vida, seus pensamentos e sua sensação de liberdade. Assim, tornou-se um artista universal.

Quero me deter aqui a essa metáfora, onde Klee procurou representar suas crenças, seus sonhos e sua experiência de vida.

Para tanto, utilizou-se da poesia, música e pinturas e, assim, deu cores vivas e fortes em suas obras.

Foi um artista que viveu na virada do século XIX para o XX e, em sua vida, experimentou muitas transformações históricas.

No século passado, que não está tão distante assim de nós, sofremos, no nosso mundo contemporâneo, grandes vicissitudes econômicas e sociais, com grande crescimento urbano e demográfico. Mudanças culturais e tecnológicas ocorreram e, no início desse  século, vivemos o impacto da pandemia causada pelo COVID-19.

Nosso mundo contemporâneo produziu um sofrimento psíquico intenso, coletivo, marcado pela desigualdade social e pelo individualismo.

Essa configuração produziu, na população em geral, ansiedade, insegurança, solidão, desamparo,  entre outros.

Isto pode ter ocorrido pelo modo como vivemos e trabalhamos nesse  tempo cada vez mais urgente, acelerado, escasso e doente.

Quando ocorreu o primeiro caso de covid-19 na cidade de Wuhan (Youhan) na China, em outubro de 2019, era impossível prever uma crise na saúde pública e na economia com impactos tão severos na sociedade e que este fato, à princípio localizado, nos conduziria a um enfrentamento da doença em escala mundial. Isso, na época, era impensável.

Este impacto nos obrigou a tomar medidas de prevenção  no nosso cotidiano para diminuir o risco da contaminação. Necessitamos acentuar as práticas de higiene, o distanciamento físico e social e o uso de máscaras e  de álcool em gel.

Desta forma, as medidas de contenção do vírus produziram, na vida da população, mudanças significativas que alteraram a nossa forma de viver e trabalhar.

Grande parte da população ficou confinada em suas casas, tendo que fazer inúmeras readaptações na vida familiar e no trabalho.

Este contexto produziu danos na saúde mental da população, potencializando os já existentes sintomas de ansiedade, sentimento de isolamento, falta de sentido na vida e acrescentou o medo intenso  e o luto  da doença e da morte.

Práticas emergenciais oferecidas por profissionais da nossa área foram disponibilizadas, tais como, por exemplo, o atendimento  voluntário que foi oferecido por associações e instituições para a população, na tentativa de acolher minimamente essa enorme demanda produzida pela crise.

Nós, psicólogos, necessitamos fazer várias adaptações na nossa forma de atender essa demanda. Tivemos que inovar e nos  reinventar. Assim, buscamos formas um pouco mais  eficazes que nos aproximasse dos nossos pacientes, onde pudéssemos manter a nossa escuta dos novos e antigos pacientes, agora, em atendimentos on-line.

Assim, quando falamos de psicoterapia na contemporaneidade, falamos também de outras formas de atendimento que vão além  da psicologia clínica individual ou grupal, realizada presencialmente nos consultórios mas, também, de atendimentos  de escuta especializada e acolhimento, que buscam compreender o sentido do que é dito dentro do contexto em que as pessoas estão vivendo.

Essas formas podem ser realizadas individualmente ou em grupos e também  ter uma abrangência a outras áreas do conhecimento como, por exemplo, a educação, justiça, assistência social, entre outras.

Penso que o sofrimento humano contemporâneo se localiza, entre outros aspectos, na impossibilidade de o indivíduo se integrar e se constituir como um ser único e singular.

Devo dizer que, neste nosso tempo, estamos sendo  intensamente desafiados a  inovar e ser muito criativos. Tivemos que nos reinventar rapidamente, frente ao isolamento em que fomos atirados repentinamente.

Desejo aqui voltar um pouco na origem da história da psicanálise.

Antes de Freud, ocorreram iniciativas para o tratamento das doenças mentais. A Psicanálise se inicia em Viena.

Sigmund Freud estudou Medicina e se formou em Neurologia. Por uma série de contingências referente à conjuntura que ele vivia e também dos seus atendimentos clínicos, passou a estudar a histeria. Desta forma, desenvolveu a hipótese do inconsciente e descobriu a gênese dos sintomas histéricos e neuróticos.

Mas Freud não estava só. Ele se encontrava em sua casa, todas as quartas-feiras, com seus colaboradores: Karl Abraham, Sander Firenczi e Ernest Jones. Juntos, compunham o Círculo Secreto. Nesses encontros, discutiam aspectos teóricos e técnicos da psicanálise.

Assim, nasce a psicanálise, que é um método investigativo que se baseia nessa investigação para tratamento dos distúrbios neuróticos e, também, é um conjunto de teorias psicológicas e psicopatológicas (Llaplanche  e  Pontális,  1998).

Em 1913, no texto Princípios Básicos da Psicanalise, Freud nos diz: “A Psicanálise é uma disciplina singular, em que se combinam um novo tipo de pesquisa das neuroses e um método de tratamento com base nos resultados daquele. Desde já enfatizo que ela não é fruto da especulação, mas da experiência e, portanto, é inacabada enquanto teoria”.

Freud se destacou criando uma teoria acerca do inconsciente.

A psicoterapia  psicanalítica é um campo prático que aborda o sofrimento mental. Nesse processo, o paciente pode adquirir mais conhecimento de si mesmo e  reconhecer suas próprias questões e conflitos. A singularidade de cada indivíduo se manifesta no processo e é isso que o torna único.

Com a difusão da psicanálise, muitos  estudiosos se dedicaram a investigar o método psicanalítico. Posteriormente, alguns seguiram por esse caminho; outros acrescentaram mais reflexões à teoria inicial e outros, ainda, se distanciaram partindo para outros pressupostos.

Existem várias abordagens psicoterápicas. Embora seguindo o mesmo pensamento teórico, cada profissional vai trabalhar de acordo com o seu próprio perfil. A psicoterapia de orientação analítica pode ser feita de maneira individual, grupal, casal ou familiar, entre outras.

Além da orientação psicanalítica, vou citar algumas abordagens teóricas:

1- Psicologia experimental;

2- Terapia Cognitivo- comportamental;

3- Psicologia analítica- fenomenologia;

4- Gestalt terapia;

5- Psicanálise de orientação Junguiana, entre outras.

O mais importante é saber que todas têm seu valor e suas contribuições. Em todas elas, o importante é que o psicoterapeuta tenha uma escuta clínica do seu paciente.

Meu referencial é a psicanálise, onde o terapeuta estabelece um vínculo transferencial a partir do qual os afetos que rodeiam o processo possam ser examinados. E é por esse vínculo criado que a relação se fertilizará.

O trabalho do psicanalista se apoia no seu inconsciente, na transferência e, principalmente, na escuta do paciente. Daí a importância da análise dos sonhos, atos falhos e das chistes que ocorrem no nosso dia a dia.

O trabalho do psicanalista se apoia nessas premissas sendo fundamental a escuta especializada voltada para a interioridade do paciente.

Em (1904[1903]), Freud propõe, em sua técnica, que o paciente comunique ao terapeuta tudo o que vem  à cabeça, mesmo que  o julgue sem importância, irrelevante ou disparatado. Ao contrário, pede com especial insistência que não excluam da sua comunicação nenhum pensamento ou ideia pelo fato de serem embaraçosas ou penosas e que o façam em livre associação.

Pelo lado do analista Freud (1912), em Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise, propõe a atenção flutuante que consiste “Em não dirigir a atenção para algo específico e manter a mesma atenção igualmente suspensa em face de tudo o que escuta.”

Em outras palavras, é deixar-se manter sem julgamentos e sem ideias pré-concebidas para que a escuta esteja voltada para aquilo que é contraditório, inusitado e surpreendente.

Luís Cláudio Figueiredo (2004) nos diz que a clínica se define pela ética que deve estar comprometida com a escuta do excluído do interditado e, também, a possibilidade de sustentação para o trabalho com as tensões e conflitos.

Freud recomenda que o analista deve tomar seu próprio inconsciente, como órgão receptor, na direção do inconsciente transmissor do paciente. Deve ajustar-se ao paciente como um receptor telefônico que se ajusta ao microfone transmissor.

Esse é um exercício que, embora pareça simples, exige tolerância, aprendizado e cuidado para vir a compreender o que acontece na situação analítica.

Assim, o método psicanalítico se baseia na associação livre do paciente e na atenção flutuante do analista. Dentro do setting analítico, abre caminho para que o inconsciente possa se evidenciar para o paciente e para o analista.

Freud (1905) relata que:

“na história clínica dos pacientes surgem lacunas na memória do doente, ou seja, esquecem-se de acontecimentos reais, confundem-se as inter-relações de tempo ou se rompem as conexões causais, daí resultando efeitos incompreensíveis”.

Ele conclui que as amnésias que os pacientes apresentam são resultado de um processo de recalcamento e a motivação do paciente é sentida como desprazer.

Freud encara a resistência como derivado das criações psíquicas recalcadas (pensamentos e emoções) como deturpações delas, provocadas pela resistência e sua produção. Assim, quanto maior a resistência, maior a distorção.

As chistes, os atos falhos e os sonhos são porta de entrada para o material inconsciente.

Elas têm uma relação direta com o material psíquico recalcado. Assim, a técnica psicanalítica, através de um procedimento de associações, vencida a resistência, pode-se chegar ao material recalcado e o que antes era inconsciente pode se tornar acessível à consciência.

A tarefa do método psicanalítico é preencher as lacunas das memórias do paciente.

Disso depende o sucesso ou o fracasso do nosso trabalho. Essa compreensão possibilita encontrar formas de  dar um novo sentido aos fatos que causam o sofrimento no paciente e,  dessa maneira, abrir  novas possibilidades de viver, pensar e agir.

A clínica é o espaço da escuta.

A aprendizagem da escuta com qualidade começa com a nossa própria análise. Para sermos psicoterapeutas temos que, primeiro, aprender a nos escutar.

Segundo Bion, um psicanalista inglês, em 1992, o paciente pensa e sente com seus valores e suas crenças e chama a atenção para o funcionamento da mente do analista e as possibilidades de metabolizar os afetos que veem em estado bruto do paciente.

Vale também destacar a capacidade do psicoterapeuta de acolher as necessidades e angústias do paciente, contendo-as dentro de si para metabolizá-las como uma digestão psicológica, reconhecendo um significado para, então, devolvê-las aos pacientes.

Assim, o analista busca compreender e se aproximar dos processos reprimidos no inconsciente que produzem sintomas como angústia ou ansiedade.

Dessa forma, o psicoterapeuta está implicado nesse processo de descoberta do paciente e  também se responsabiliza em contribuir para o progresso da psicoterapia.

A análise pessoal  é a primeira das práticas que compõe um dos três pilares de aprendizagem da formação do psicoterapeuta, proposto por Freud, a saber: análise pessoal, supervisão e estudo teórico. É na nossa própria análise que  vivenciamos os conceitos fundamentais da psicanálise.

A supervisão do atendimento clínico é um espaço de discussão entre dois psicoterapeutas. Para tanto, o psicoterapeuta, supervisionando,  busca,  na supervisão um outro olhar para seus questionamentos,  dúvidas e reflexões relacionadas ao material colhido em sua prática clinica.

A supervisão clínica é um processo de ensino-aprendizagem que procura estimular e desenvolver  no supervisionando  a sua própria maneira de pensar a partir do caso  clinico, que está atendendo.

O terceiro é a teoria, que alicerça a prática clínica.

No texto de Freud de 1926 (A questão da análise leiga), ele relata que leiga é uma análise conduzida por uma pessoa que não tem formação psicanalítica específica.

Ele diz:

“Mas, ponho ênfase na exigência de que ninguém deve praticar a análise se não tiver adquirido o direito de fazê-lo através de uma formação específica”.

A formação do psicanalista não é rápida. Ela é um processo constante e permanente.

Insisto que para a pessoa ser psicanalista ou psicoterapeuta precisa obedecer as três dimensões que são: a análise pessoal, que é o princípio da formação do psicoterapeuta, a supervisão do atendimento clínico e o estudo teórico.

Para complementar, devo dizer que a experiência clínica precisa ser constantemente ressignificada em função do tempo, da cultura e do momento histórico que vivemos.

Voltando para a exposição de Paul Klee “Equilíbrio Instável” que deu sentido a minha reflexão de hoje, quero complementar dizendo que Equilíbrio Instável é a capacidade humana de caminhar por um território desconhecido, se desestabilizar e, quando sentir a sua  existência ameaçada, mudar, se reinventar e, assim, buscar no nosso mundo interno a segurança e a força que nos falta lá fora.

Acredito que este é um momento  que estamos vivendo. Em nosso caminho, atravessamos uma pandemia e convivemos com distorções sociais, econômicas e culturais.

De maneira resiliente estamos tentando resistir a essas distorções. O que sabemos é que estamos traçando itinerários de experimentação e inovação como nunca. De maneira incerta, buscamos a superação  das dificuldades deste mundo complexo que estamos enfrentando e, através deste caminho de mão única, sem o conhecimento de onde ele vai chegar, seguimos, sem poder prever as  suas consequências.

( Este trabalho foi apresentado no II Seminário Nacional Interativo da ABRAP, realizado em  27 e 28 de agosto de 2021  e intitulado- A psicoterapia no mundo contemporâneo: definindo a psicoterapia e quem a deve realizar.)