CLANDESTINO

Faltavam apenas trinta minutos para começar o espetáculo. Por trás da cortina abri uma pequena fresta para espiar a plateia, e para minha surpresa visualizei apenas duas cadeiras vazias no fundo da sala. Incrível como aquelas duas cadeiras foram suficientes para me paralisar. Senti um frio na espinha e um suor gelado escorrendo pelo meu corpo. Neste momento senti o intruso me visitar.

               Como era de costume em todos os dias de apresentação, enquanto finalizava minha maquiagem, já não conseguia mais me reconhecer. Fui remetida para o dia de meu nascimento. Gestada como intrusa, intrusa por nascença:  a fórceps. Não há fotos, mas o registro carrego comigo como uma cicatriz.

                Quantos milhares de olhares não são suficientes para eu ser reconhecida ? Que diabos esses dois lugares me fazem tanta falta ainda, a ponto de me impedir, de me suspender da vida. Olhares que não puderam ser acolhidos, olhares que não puderam ser refletidos em sua própria imagem.

               A garganta seca e a respiração fica mais curta. Dizem que gargarejo com água morna, sal e gengibre ajuda. E não é que a sabedoria popular está certa. Já sinto o ar penetrar dentro de mim com esse simples cuidado.

               Faltam apenas dez minutos para começar quando ouço o primeiro sinal tocar. A plateia barulhenta começa a se acalmar. Dentro de mim procuro um lugar, um colo talvez. E como se uma mãe interna me fizesse um afago me trazendo confiança.

 Cinco minutos depois, toca o segundo e o silêncio se faz presente. Esse é um momento de estar só. Como é difícil conquistar a capacidade de ficar só sem ter vivenciado a presença viva e real de alguém. Os minutos se tornam eternidade neste instante. Puxo a respiração o mais fundo que consigo e vou procurando soltar o ar devagar.

               Quando toca o terceiro sinal, as luzes se apagam, abrem-se as cortinas e a história é contada. A história poderá ser recontada mais uma vez, inúmeras vezes se for preciso. É um novo nascimento com outras possibilidades de olhares. Neste momento, já não sinto mais a presença do meu intruso por mais que que eu sinta que as duas cadeiras sempre estarão vazias em todas as minhas apresentações.