Depois de muito tempo sem postar no nosso blog, hoje recebemos a noticia da morte de Kenzaburo Oe.

E lembrei-me do seu belo livro “Uma questão pessoal”, verdadeiro tratado sobre a ambivalência paterna.

Grande escritor, Oe consegue expressar com muitas cores a dificuldade de um pai que encara a deformidade de seu filho, nascido com um defeito congênito.

O pai luta com as emoções que a visão de seu filho desperta nele. E passa por um processo doloroso ao fim do qual consegue, enfim, conectar-se com o bebê.

A história do livro é muito comovente; pois o bebê nasce com uma condição muito rara.

Mas, de certa forma, todos temos de adotar nossos filhos, não é mesmo? Esse caso extremo pode ser lido como uma metáfora para todo enlace de pai e mãe com o filho ou filha que nunca irá corresponder exatamente ao que foi sonhado.

A reverie paterna

Segue aqui um pequeno trecho do livro citado:

“Só então Bird viu pela primeira vez o filho. Um bebê feio, de rosto pequeno e avermelhado coberto de rugas e de plaquetas de gordura. As pálpebras eram duas conchas fortemente cerradas, e tubos saíam das narinas. A boca aberta num grito silencioso exibia a cavidade bucal rosada, lustrosa como uma pérola. Levado por um impulso, Bird ergueu-se até a ponta dos pés e espiou a cabeça enfaixada do bebê. A parte traseira estava pousada numa grande quantidade de algodão ensanguentado, mas notava-se ali, claramente, a existência de uma estranha protuberância.

Desviando os olhos da criança, Bird sentou-se novamente e, com o rosto colado à janela, contemplou as ruas da cidade que retrocediam. Os transeuntes, assustados com a sirene, viravam-se com a mesma expressão de curiosidade e expectativa da multidão de gestantes que ficava para trás. Estacavam imóveis em poses absurdas, parecendo um fotograma congelado. Uma pequena e surpreendente fresta se abria de repente na rotina de suas vidas. Mostravam até um ingênuo respeito. Meu filho está com a cabeça toda enfaixada, como Apolinaire ferido na guerra. Ferido na cabeça num campo de batalha sombrio e solitário nem sei onde. Envolto em faixas como Apolinaire, soltando um grito sem voz.

Bird começou a chorar. A imagem de Apolinaire enfaixado simplificava os seus sentimentos, dava-lhes uma direção.”

No trecho acima, o jovem pai Bird defronta-se pela primeira vez com o filho com seu defeito congênito. Chegando de ambulância para acompanhar o bebê na internação, Bird é tomado pela fealdade e estranheza da criança. Sem poder continuar olhando para ela, vai buscar imaginariamente algo que possa trazer um sentido ao seu defeito.

Apolinaire, ferido em guerra, apresenta-se como uma imagem que permite uma simplificação e uma direção ao sentimento desconfortável despertado pela visão da deformidade.

Vem o choro, resposta do corpo do pai à emoção de narrar para si mesmo como seu filho horrível se parece com o poeta. Seu trabalho psíquico de representar acontece como resposta à estranheza inicial despertada pelo estranho, infamiliar e sinistro bebê.

Pensemos nesse pai, imaginado o herói enfaixado, penalizando-se da criança que está o deixando tão assustado.

É o trabalho psíquico, o trabalho que o pai realiza automaticamente tentando compreender aquilo que escapa de todo seu entendimento.

Guillaume Apollinaire     Francça | 1880-1918

Como ajustar em si o desencontro existente entre o bebê desejado ou fantasiado e o bebê que se apresenta na realidade?

A chegada de um filho, mais ou menos temida, mais ou menos desejada, envolve o confronto entre imagens e representações conscientes e inconscientes com a alteridade que ele representa.

Alteridade, surpresa.

O encontro com um bebê muito diferente do sonhado pode trazer em si um componente traumático.

O que acontece então?

Uma ferida se abre…

Se, como nos ensina Freud, podemos pensar no bebê como um herdeiro do narcisismo dos pais, o bebê- monstro pode ter o inesperado poder de abrir uma ferida narcísica naqueles que o geraram.

Então, é preciso que os pais possam re-estabelecer a condição de “sonhar ” seus filhos, para lidar com o espanto e as desilusões que ocorrem neste encontro com a sua alteridade.

No romance de Oe, a vergonha é o sentimento do pai cujo filho traz a deformidade.

Ele escreve:

“Não conseguia nem pensar na deformação do filho, uma vergonha sufocante lhe subia à garganta. Muito menos falar sobre isso. Um sentimento exclusivamente pessoal, uma infelicidade só sua. Nada que pudesse compartilhar com terceiros ou comungar com a humanidade”

De forma tocante, o autor aqui descreve a dificuldade de pensar, de falar e de compartilhar que esse pai sente, a vergonha e o sufocamento (sensação somática) que indicam uma angústia que não está podendo ser elaborada. No decorrer do romance, muitas defesas se erigem para auxiliar Bird a enfrentar a situação. A metáfora que indica o trabalho do pensar paterno, condensando a imagem do bebê à de Apolinaire, não é suficiente.

Porém, pai e filho já estão ligados: a vergonha que sente une sua ferida narcísica à atadura do bebê. Ainda que pela decepção e pelo defeito, a identificação faz com que o homem se sinta como o filho, envergonhado e portador de um estigma que o isola da humanidade.

E é o devaneio de Bird, esse pequeno detalhe, que liga o bebê ao herói de guerra, e que nos conta de como, apesar de tudo, este pai vai encontrar um jeito de deixar nascer essa criança dentro de si.