Medicalização da Infância

Palestra proferida no encontro realizado na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo em 04/05/2024, na mesa redonda ” Comunicação pelo sintoma, ação no sofrimento”. Esse encontro foi idealizado pelo Núcleo de estudos em Saúde Mental da Sociedade Paulista de Pediatria, em parceria com a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Nesse evento tivemos um segundo lançamento do livro ” Pediatria e Saúde mental: implicações frente às mudanças do século XXI,” da ed. Atheneu, organizado por Denise de Sousa Feliciano (presidente) e os membros da equipe do núcleo de saúde mental da sociedade de pediatria, do qual faço parte.

Arianne Angelelli

Introdução

Começo esse texto contando um pouco a minha trajetória, dedicando a fala de hoje à Dra Amélia de Vasconcelos, que nos deixou no mês passado, com certeza conhecida de muitos que estão aqui hoje. Comecei a estudar com a Amélia depois de uma conversa com a Adriana Marciano, grande amiga que é também aqui dessa sociedade. Fizemos residência juntas no HC e em 1999, há 25 anos atrás, eu passei num concurso para trabalhar no hospital dia infantil do Hospital Pinel. Tínhamos lá uma equipe muito boa, atendíamos crianças graves, inspirados pelo trabalho do Lugar de Vida, onde muitos faziam cursos e supervisão. Vocês podem imaginar o meu espanto ao escutar as discussões, tendo vindo da residência do Hospital das Clínicas, sobre o diagnóstico diferencial de crianças que, para mim, pareciam todas autistas. Nessa época, conversando com a Adriana, ela falou: “vai fazer o curso da Dra Amélia, ajuda muito a gente a entender melhor as crianças”. Foi assim que entrei no IPPIA, instituto dirigido pela Amélia de Vasconcelos. Na época, com filho muito pequeno, tive de fazer uma matéria de cada vez para conciliar o trabalho e os plantões, mas no final eu acabei ajudando a Amélia com as aulas do seu curso. Esse curso, o qual ela intitulava de Integração Biopsicossocial, era muito inspirador, muito amplo. Suas ideias me guiam até hoje, por isso vou usar aqui um pouco dos seus ensinamentos para discutir o tema da medicalização da infância.

A questão da medicação e da própria medicalização, da qual vou falar daqui a pouco, corre paripassu com a questão diagnóstica em psiquiatria. Seguindo uma linha do tempo, nesses quase 30 anos em que trabalho com o tema, acompanhei a vigência de dois dos manuais diagnósticos americanos. O quarto manual americano de psiquiatria (DSM IV) começou a ser usado, após tradução no Brasil, no mesmo ano em que me formei. Em 2013, mais ou menos dez anos depois, a versão atual do manual americano foi publicada (o DSM V). Então temos visto, os psiquiatras da infância e adolescência, como eu e a Adriana, uma grande mudança em relação aos diagnósticos psiquiátricos das crianças, nesses últimos 30 anos. Do ponto de vista estatístico, os manuais de classificação podem ser responsáveis pelo aumento da percepção e do diagnóstico de qualquer transtorno, desde que proponham critérios mais abrangentes para classificar as doenças[I]. O transtorno de déficit de atenção e hiperatividade é um desses casos. No DSM IV (1994), o TDAH, para ser diagnosticado, tinha que começar a ser percebido antes dos 7 anos de idade. Isso significa que, se a criança não tivesse sintomas na primeira infância e começasse a manifestar dificuldades escolares somente na adolescência, não seria considerada hiperativa de acordo com aquele manual. Em 2013, o DSM V foi publicado, determinando agora que os sintomas deveriam começar antes dos 12 anos para o diagnóstico do TDAH. O DSM V também especificava e colocava um maior foco no diagnóstico de TDAH em adultos. Qual a consequência dessa mudança de critério temporal? Mudar a idade mínima de início dos sintomas de 7 anos para 12 anos trouxe, nos últimos dez anos, uma explosão nos diagnósticos de TDAH. E mais adultos sendo medicados e diagnosticados também com o transtorno.

Como sabemos, o tratamento standard para o déficit de atenção é a anfetamina. No Brasil a primeira anfetamina disponível foi o metilfenidato (conhecido como Ritalina®). Agora vejamos alguns dados relacionados ao uso de anfetaminas prescritas no Brasil. O quadro abaixo expressa um dado da pesquisa de doutorado de Denise Barros, publicado em 2014 pela UERJ1. Nesse estudo, a pesquisadora encontrou um aumento de consumo de metilfenidato de mais de sete vezes, de 2003 a 2012. (A substância passou a ser produzida no Brasil no final da década de 1990).

Esses dados, de mais de dez anos atrás, já estão desatualizados. O consumo das anfetaminas para fins terapêuticos e para aumento da performance cognitiva aumentou ainda mais nos últimos anos. Abaixo o QR code para uma outra publicação da mesma autora que analisa estes dados no Brasil2.

Ortega, F., Barros, D., Caliman, L., Itaborahy, C., Junqueira, L., & Ferreira, C. P.. (2010).
A ritalina no Brasil: produções, discursos e práticas. Interface – Comunicação, Saúde, Educação, 14(34), 499–512. https://doi.org/10.1590/S1414-32832010005000003

A questão do TDAH é muito interessante, para pensar a complexidade e o poder da narrativa psiquiátrica para compreender o mal-estar das crianças e adolescentes. Porém, embora esses dados mereçam uma discussão mais aprofundada, eu gostaria de usar aqui a questão do TDAH somente como exemplo, pois não vamos nos deter a ela.  No caso do TDAH e de muitos outros diagnósticos, há controvérsias em relação ao modo de diagnosticar e aos “pontos de corte” para determinar, caso a caso, se há ou não um transtorno ou uma doença. Isso ocorre porque sintomas e fenômenos em psiquiatria se definem a partir de variáveis que são dimensionais, e não categóricas. É uma questão epistemológica. Há uma zona cinzenta entre o que pode ser considerado “normal” e o patológico em psiquiatria. Dessa forma, certas definições são arbitrárias, e como tal, devem ser relativizadas. Diagnósticos são construtos que sempre devem ser pensados tendo em vista que a pessoa humana se situa num contexto biopsicossocial, e que o próprio diagnóstico depende de uma narrativa (social) que o valida e que pode mudar através dos tempos3.

Entre a medicação e a medicalização

Hieronymus Bosch (1450-1516). A extração da pedra da loucura (Madri- Museu do Prado)

Quando estamos no museu do Prado em Madrid, um pouco antes de chegarmos ao quadro mais famoso de Bosch, conhecido como o “Jardim das delícias” encontramos essa tela que mostra a trepanação de um homem por um médico que tem um funil na cabeça. Esse médico charlatão está sendo assistido por dois religiosos.  É interessante pensar como o pintor, que viveu na idade média, colocou nessa obra muitos elementos de ironia. Bosch ironiza a ideia da extração da loucura de forma cirúrgica, e coloca os religiosos em cena, condensando numa só imagem a crítica ao poder da igreja e ao “furor curandis” que busca extirpar a loucura num ato cirúrgico. Naquela época, apesar dessa crença numa possível ablação da insanidade, a explicação orgânica das doenças mentais não era preponderante. Por muito tempo acreditamos em forças espirituais, divinas, e em possessões demoníacas para explicar os comportamentos aberrantes do humano. Freud, que se forjou no pensamento moderno, foi herdeiro de outro tipo de raciocínio. Quando dizemos que a psicanálise nasceu no ventre da histérica, homenageamos a compreensão que Freud teve do sofrimento daquelas mulheres, e o legado que elas nos deixaram quando batizaram o nosso método de “limpeza da chaminé”. A “limpeza da chaminé” era uma forma metafórica de descrever o método psicanalítico, esse novo modo de tratar o sofrimento por meio da construção de uma narrativa conjunta, da interpretação e da relação transferencial. O pensamento moderno buscava na ciência a explicação para os fenômenos, e foi por meio das histéricas que o primeiro psicanalista postulou as causas inconscientes do sofrimento humano. Antes de saber exatamente o que seria uma sinapse entre neurônios, Freud já expressava a ideia de ligações4 que ocorreriam em algum nível da mente, e muitas das suas intuições tem sido hoje confirmadas pelos modelos das redes neurais e da neurotransmissão que se tornaram do conhecimento de todos nós.

Mas cem anos se passaram e o que presenciamos hoje é que essa nova “verdade”, a verdade do cérebro, parece estar tomando conta de todo o nosso pensamento e do nosso modo de compreender a experiência humana. Como discutimos num dos capítulos do livro que lançamos hoje, a ideia de um “sujeito cerebral”5 é preponderante hoje em dia. É impressionante. Amélia nos ensinava que o paciente, ao chegar, traz consigo uma fantasia de doença e uma fantasia de cura. A hora de jogo, uma situação padronizada que aplicávamos na observação da criança, visava captar por meio do seu brincar uma “pista” sobre essas fantasias. Winnicott, ao contar o seu primeiro encontro com uma criança para uma consulta terapêutiica, conta que a criança chegou para essa primeira sessão já dizendo “sonhei com você” antes mesmo de conhecê-lo. Assim, a transferência e a angústia do primeiro encontro mobilizam a criança para que essa hora inicial seja pregnante de sentido, com um pedido de tradução que lhe é peculiar.  Mas hoje, desde a primeira entrevista com os pais, a fantasia de doença (e também a de cura) parecem estar esmagadas pela crueza do discurso médico e medicalizante, que possui um sentido próprio, muito saturado, que dá pouca margem à interpretação, ao imaginar, ao brincar. Uma pessoa que se dedica muito a algo relata ter um “hiperfoco”, a dificuldade escolar se traduz muito rapidamente pelo déficit de atenção, o impulsivo descobre no “dr Google” que o seu problema é uma questão de “déficit de controle inibitório”. Os jargões da neurociência e até conceitos complexos da psicanálise estão disponíveis no youtube e no tiktok para quem quiser ver. Um adolescente chega ao consultório dizendo “sou muito bipolar” ao me explicar que muda muito de ideia e de amores; e uma mãe em dificuldades me conta que descobriu na internet que, por ter tido “uma mãe narcisista” está “penando” para se entender com o seu bebê e precisa então de um medicamento para sua depressão pós-parto.

Esse vocabulário pseudocientífico, porque absorvido sem muito questionamento, está no imaginário de todos hoje em dia. É necessário então a todo tempo, na clínica, entender o uso particular que cada pessoa faz dessas informações e desses rótulos, para compreender sua experiência subjetiva. A tentação do “não pensar” é muito grande, porque pensar dá trabalho, e para pensar de verdade precisamos tolerar a incerteza do não saber. Isso está em Sócrates e está na filosofia, mas também em Bion e em Winnicott. Considero uma grande “tentação” (para usar um termo religioso) que nos afasta da verdade, da aleheia, a “redução” da experiência humana ao seu aspecto mais biológico e cerebral.

(Embora, e como médica não deixo de constatar isso a todo momento, somos sim, em certa medida, produtos das nossas reações químicas cerebrais, da ação dos nossos hormônios e da experiência psicossomática que nos constitui. Esse é um paradoxo que temos de sustentar em nossa prática. O corpo é, e está lá, mas o nosso psiquismo não pode ser completamente explicado por ele).

Nesse momento da minha fala acho importante fazer algumas definições. “Medicalização” é o termo criado para designar o fenômeno que eu decrevi acima, e consiste em trazer para o âmbito da profissão médica certos domínios que não se restringem à sua jurisdição. Ela abrange explicações biológicas sobre os aspectos da experiência e subjetividade da pessoa e diz respeito a esse modo de compreender o humano que equaliza comportamento e emoções ao funcionamento do cérebro. O raciocínio medicalizante tem consequências importantes sobre nossa prática. Para cada sintoma, uma medicação; para cada distúrbio, um diagnóstico; para cada problema, um especialista.

Agora gostaria de me aprofundar um pouco mais no aspecto social do fenômeno da medicalização. Voltando ao quadro de Bosch, encontramos a reprodução da sua imagem na capa de um livro muito interessante, bastante atual, que se chama “A arte de reduzir as cabeças”, de Dany-Robert Dufour6. Dufour é um pensador- entre muitos outros- que, como Bosch fez ao seu modo, denuncia a “redução das nossas cabeças” pela mídia contemporânea e pelo mercado. Esse livro tem 20 anos, mas ainda é atual, na medida em que vai apontando a predominância da imagem com um empobrecimento da capacidade de simbolização dos nossos dias. Esse é o aspecto social que eu gostaria de apontar hoje, para iluminar uma das facetas do processo de medicalização da vida e do sofrimento. Há um fator econômico que favorece a convergência entre o fortalecimento da indústria farmacêutica e o pensamento atual de que o sofrimento humano “mora” no cérebro e assim deve ser compreendido. Dufour aponta essa nova servidão, essa nova forma de alienação, dando o exemplo do uso do Prozac® e da Ritalina®, que se tornam então cada vez mais populares. Aqui no Brasil o livro de Maria Rita Khel, “O tempo e o cão”, que ganhou um prêmio Jabuti em 2010, já aponta a ideia da depressão como uma nova tradução do sujeito contemporâneo, o qual jamais consegue corresponder aos ideais ( mercadológicos) da felicidade e da potência.

Volto aqui então à imagem de Bosch para pensar com vocês a questão da medicalização da vida, ou seja, a questão da medicalização do sofrimento e da “redução” da experiência humana ao seu componente cerebral. O uso crescente de medicações psicotrópicas (que podemos definir mais precisamente pelo termo “medicamentalização”7) é apenas uma parte desse processo, que é muito mais amplo. Imagino que se pudéssemos conversar sobre esse texto que estou produzindo, Dra Amélia diria que estamos diante de uma simplificação, de uma redução da compreensão daquilo que é humano, biopsicossocial, ao considerar somente a dimensão biológica, cerebral, da experiência. O social e o psíquico, então desconsiderados, deixam de “atrapalhar” o endereçamento do mal-estar humano a um pragmatismo que é vantajoso de certa forma, que parece combinar mais com a aceleração dos nossos tempos, com a produção do sujeito contemporâneo que deve consumir o remédio que é vendido na farmácia para a cura do seu mal-estar.

A narrativa da mercadoria dispõe assim, para sua eficácia, de todo um priorado, com seus pesquisadores a quem se confessa os desejos mais loucos em matéria de sabonete, com seus atores que montam representações nas quais são vistos os milagres cotidianamente realizados pela mercadoria, com seus apóstolos que incessantemente vendem as suas promessas de redenção pelo objeto, com seus marketing men encarregados de difundir a boa nova e ministrar a boa palavra sobre os bons produtos… O Mercado mantém uma verdadeira servidão voluntária, ele é ainda mais poderoso na medida em que é reconhecido em ato por tudo o que o mundo tem como consumidores prontos, desde a sua mais tenra idade…” ( Dufour, p79)

No texto de Dufour, a mesma ironia de Bosch, se vocês percebem: o priorado, a boa nova, os apóstolos, a boa palavra, agora não se referem mais aos desígnios divinos… mas aos ideais do mercado. Não é mais o demônio, é a disfunção cognitiva explicada pela deficiência de dopamina que precisa do exorcismo da ritalina para ser expurgada de vez. A pedra da loucura…

O tempo da infância

As consequências do raciocínio medicalizante na infância são mais disruptivas do que no caso dos adultos. Isso porque os pequenos são muito mais porosos ao discurso dos adultos e à violência da sua interpretação, para parafrasear o conceito de Piera Aulagnier8. Conhecemos o efeito das profecias autorrealizadas determinando caminhos para a subjetividade da criança. Eu as ouço dizendo “SOU TDAH” desde muito cedo: “por isso que eu não aprendo”. O onipresente “TOD” (transtorno opsitivo desafiador) também vem, constantemente, a solapar a demanda esperançosa da criança com tendência antissocial. Para Winnicott, muitos desses casos são um jeito de a criança pedir ao ambiente um contorno que lhe permita experienciar sua capacidade de destruir e reparar seus objetos, para retomar seu desenvolvimento. O próprio diagnóstico de autismo, hoje mais abrangente, já que a psiquiatria não mais considera a hipótese da psicose infantil, pode ser usado para aprisionar a criança num discurso saturado que toma por pressuposto, já de saída, sua incapacidade de brincar. De certa forma, todos esses diagnósticos, que deveriam nortear e clarear as muitas formas de sofrimento que podem acometer os pequenos, podem se interpor entre eles e o seu tratamento. Os medicamentos em si, não são o maior problema, a meu ver, e sim a saturação que ocorre no campo terapêutico quando o comportamento e o viver são compreendidos só e exclusivamente a partir do cérebro. O fármaco e o pharmakon podem conviver de forma não excludente quando podemos sustentar os paradoxos da condição humana, e a abertura do pensar aos inúmeros caminhos que levam alguém a produzir um sintoma, ainda mais quando esse alguém é uma criança ou um adolescente em formação.

A respeito do uso dos medicamentos, em especial, gostaria de citar o pensamento de André Green, num texto presente no livro “As cadeias de eros”. Peço perdão desde já pela longa citação, mas creio que o autor consegue nos dar uma visão desapaixonada e lúcida sobre a tensão e a complementaridade entre o psíquico e o biológico, já que estamos sempre, de certa forma, como psiquiatras, com um pé em cada canoa. Em nosso caso, toda ajuda é bem-vinda para podermos nos manter nessa posição tão desafiadora, se ousamos recusar ou questionar o raciocínio  medicalizante predominante nos nossos dias.

Não se trata de afirmar que a causalidade natural tem a última palavra, mas antes nos recordar que ela é um ponto de partida incontornável. E desta biologia, que não nos esclarece tanto pelos fatos que tem a apresentar-nos, mas pelas hipóteses que estão na base dos funcionamentos que ela descreve, não tenho quaisquer motivos para me envergonhar. A relação dos fatos psíquicos com a biologia não é nem de subordinação nem de transcendência. É de coexistência no seio de uma concepção que se preocupa, acima de tudo, em fazer justiça à complexidade […] Além disso, toda a ação da quimioterapia psiquiátrica (que atualmente acompanha muitas vezes as nossas curas […] tem um duplo impacto: a nível das suas ações sobre o sistema nervoso, por um lado, e sobre o sistema psíquico, por outro. Talvez haja duas lógicas ativas distintas na depressão, mas existem, decerto, agentes, sejam estes medicamentos ou a psicoterapia, que exercem uma ação sobre ambas. De certo quem contestaria, hoje, que todo fenômeno psíquico tem seu correspondente fisiológico? O que se deve discutir é a especifidade da organização psíquica, suscetível de produzir, pelo seu “trabalho” (no  sentido metapsicológico) os seus efeitos particulares ( os quais terão, também, a sua versão fisiológica). É esta a linha seguida por Freud. Aí o biológico só intervém quando o psiquismo, por perda das suas capacidades de libertação, de transformação e criação, em suma, por não conseguir ultrapassar fixações ou bloqueios, sofre a ação da repetição e se encontra à mercê de uma destrutividade que parece encontrar uma explicação insuficiente na culpabilidade em relação ao Superego…Pela sua mecanicidade, pela rigidez com que é desencadeada sua atividade defensiva, pelo caráter inominável de sua angústia ou da sua descarga sob a forma de passagem ao ato, as formas dessa vida psíquica alterada ou diminuída deixam adivinhar que estão sujeitas a fatores psicobiológicos, o que significa[…]simplesmente[…] a sua passagem a um modo de funcionamento que desqualifica a natureza transformadora do psíquico tal como Freud a havia descrito e à qual Winnicott deu o nome de criatividade primária. ( Green p. 67-68)

Gosto desse pensamento de André Green, que dá à biologia o seu lugar, e nos indica o momento de introduzir a quimioterapia psiquiátrica nos casos em que a rigidez das defesas e a dificuldade de realizar trabalho psíquico deixa o indivíduo à mercê de uma destrutividade que ele não consegue superar sem a ajuda desses recursos externos.

            Referências

  1. BARROS, D. B. Os usos e sentidos do metilfenidato: experiências entre o tratamento e o aprimoramento da atenção. 2014. 182f. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) – Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014 .
  2. ORTEGA,F., BARROS,D.,CALIMAN,L. et al. (2010) A ritalina no Brasil: produções, discursos e práticas. Interface- Comunicação, Saúde, Educação, 14(34), 499-512.
  3. FOUCAULT, M. História da loucura na Idade Clássica. 7 ed. São Paulo: Perspectiva, 2004.
  4. BEZERRA JUNIOR, B. (2013). Projeto para uma psicologia científica: Freud e as neurociências, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
  5. EHRENBERG, A. O sujeito cerebral. Psicol clin [ Internet ]. 2009;21(1): 187-213. Available from: https://doi.org/10.1590/S0103-56652009000100013
  6. DUFOUR, D-R. A arte de reduzir as cabeças: Sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2005.
  7. ANTONELI, C.C. A dimensão farmacológica do sujeito contemporâneo. Self farmacológico e vida farmacológica. Rev Bras Psicanal. 2023; 57 (4). P75-86.
  8.  AULAGNIER, P. A violência da interpretação : do pictograma ao enunciado. Trad. Maria Clara Pellegrino. Rio de Janeiro: Imago, 1979.
  9.  GREEN A. As cadeias de Eros. Lisboa: Climepsi, 2000.

[I] Em sua primeira versão, o DSM-I, lançado em 1952, continha 106 categorias diagnósticas. Já a versão atual, o DSM-V implementado em 2013, e revisado no ano passado, apresenta mais de 300 patologias. Um dos pesquisadores responsáveis pela quarta edição do manual estatístico americano para as doenças mentais, Allen Frances, tornou-se um dos maiores críticos do uso mercadológico dos DSMs, apontando a inflação diagnóstica e excesso de prescrições medicamentosas decorrentes do seu uso. O seu livro “Voltando ao normal”, foi editado e traduzido para o português pela ed. Graal, em 2016.

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