As treze Razoes de Merli
As treze razões de Merli
AS TREZE RAZÕES DE MERLI
Arianne Angelelli*
Nas últimas semanas falou-se muito de suicídio adolescente. Um seriado da Netflix, “13 reasons why” ou “os 13 porquês” estreou na provedora causando grande reação da mídia. Ao mesmo tempo, um suposto jogo online chamado Baleia Azul, foi noticiado tratando do mesmo tema. Nos grupos de WhatsApp, pais aconselhando uns aos outros a impedir seus filhos de assistir ao seriado. Uma reportagem sobre o jogo da Baleia Azul no YouTube, com quase 500.000 visualizações… A TV está cheia de morte. Fascina. O apocalíptico “Walking Dead”, série sobre zumbis está entre as três séries mais vistas em 2016. E tem para todos os gostos – em “Breaking Bad” um professor de química se transforma em traficante de metanfetamina e morre de forma apoteótica, com uma chacina. Afinal, do que estamos falando? Em “13 reasons why ”, Hannah, uma bela jovem americana, vítima de bullying, estuprada, se suicida e narra sua história postumamente. Está difícil viver?
Ou ver? Pois, no seriado, a jovem Hannah, como o palíndromo no seu nome, parece correr em círculos sem saída, entrando num estado de desesperança que somente a morte pode remediar. Na medida em que ouvimos as gravações que fez explicando as razões do próprio suicídio (uma sequência de abusos que inicia com a divulgação de fotos suas na internet), o ato extremo passa a comunicar o que não pode ser comunicado em vida. Não parece haver a possibilidade de encontrar no mundo dos adultos ou em algum outro canto a consistência, a segurança, a proteção, durante a vida. Do lado de cá da tela, uma verdadeira paixão pelo Real nos escraviza, e assistimos passivamente a cena em que ela corta seus pulsos (didática, da maneira mais certeira para se morrer).
Todos os dias uma profusão de imagens, sem filtro, invade nosso celular e telas, num excesso que nos faz cegar. (Será preciso diminuir a sensibilidade para lidar com tantas informações simultâneas, a morte exposta sem pudor, a violência crua?). São excessos. A sociedade do espetáculo precisa do sangue e do exagero, e o “sou visto, logo existo” substitui o velho axioma de Descartes. Pensamento simbólico é um processo lento demais para este nosso tempo rápido, líquido. Um snap chat dura alguns segundos, a imagem se esvai (conseguiu fazer um print? Não?) e são tantas as mensagens que apreendemos de forma quase fotográfica, sem uma pausa para a reflexão, que pensar se torna um luxo raro, e o “déficit de atenção” quase uma defesa.
Já em “Merli”, que conta a história do professor de filosofia catalão, o pensar ganha novo status para o grupo de adolescentes a quem ensina. Trata-se de um seriado, também disponível na provedora Netflix, em que cada episódio se intitula com o nome de alguma corrente da filosofia. O tema costura as reflexões em aula com os dramas cotidianos dos alunos, que estão lidando com as primeiras experiências sexuais, os embates familiares, o luto. A amorosa Monica de Vilamore, que vem de outra escola, tem a privacidade devassada pela divulgação na internet de um vídeo íntimo. Neste ponto sua história se assemelha com a de Hannah (em um episódio de “13 reasons“) – ambas alunas novas, sofrem um ataque virtual. Mas aqui, Merli, atento, vem em auxílio da moça, e contra-ataca fazendo os rapazes refletirem sobre a própria responsabilidade na propagação deste vídeo. O filósofo do dia é Guy Debord. No aqui-agora da sala de aula, refletem sobre a exposição que inadvertidamente fazem da colega, sobre a falta de ética da atitude, enquanto discutem as idéias do pensador que escreveu “A Sociedade do Espetáculo” na década de 60. Para ele, o “ser” se transmuta em “ter”, e, cada vez mais, em “parecer”. O grupo se dá conta do ataque feito à colega e a resgata, em atitude amorosa, de forma muito criativa.
Em “Três ensaios sobre juventude e violência” (1), Rose Gusrski pergunta: “será que a dimensão do espetáculo, ao instalar a saturação de imagens como paradigma do sentido, penetra no sujeito de modo a criar uma relação literal demais para o homem?”
Literal demais, sim, em “13 reasons”: a morte, o suicídio, a indiferença. O ato violento como única possibilidade de se fazer escutar. Se a protagonista Hannah foi vítima do mesmo assédio que Monica, ao ter fotos comprometedoras divulgadas de forma maliciosa, só no caso desta última a intervenção pensante do mestre reverte o destino da jovem. Mesmo crime, dois destinos; destino de morte, destino de vida.
“Merli” e “13 reasons ” estão disponíveis, ao mesmo tempo, na mesma provedora, Netflix. Todos nos assustamos com a impulsividade da adolescência, com a rapidez do mundo virtual, e o primado do Real que parece ter vindo para ficar… Mas, como nos diz Winnicott (2) “Onde houver o desafio do rapaz ou da moça em crescimento, que haja um adulto para aceitar o desafio.” Merli aceitou.
Referências
1) GURSKI, R. R. Três ensaios sobre juventude e violência. São Paulo: Escuta, 2012. 174p.
2) Winnicott, D. W. (1975). Morte e assassinato no processo do adolescente. In: O brincar & a realidade (pp. 194-203). Rio de Janeiro: Imago.
*Arianne Angelelli: Médica psiquiatra formada pela USP, residência em Psiquiatria Infantil, formação pelo IPPIA – Instituto de Psiquiatria da Infância e Adolescência, membro do departamento de saúde mental da sociedade paulista de pediatria.