O gesto espontâneo de Francis Há

O filme Francis Há, do diretor Noah Baumbach (2013) está no netflix.

Para quem não assistiu no cinema, é uma boa opção. O filme narra as aventuras (e desventuras) de Francis, tentando achar o seu lugar ao sol em Nova York, e também no mundo adulto, em que parece não se encaixar. Grandona, desengonçada, espontânea, Francis e seus amigos são adolescentes tardios. Geração mimimi, geração nutela, geração nem-nem (nem trabalha, nem estuda)… Quem não escutou um destes termos e a explicação jocosa de que estes jovens estão se jogando da caixa d’água ou morrendo de propósito,  “feito passarinhos, avoando de edifícios” porque não querem crescer, ou não aguentam as frustrações? Não querem trabalhar, não querem dificuldades: “dá seis da tarde, largam a caneta”… ou: “foram criados na internet, tudo na mão, tudo fácil, não querem nada com a dureza”.

Hummmm… Ponho-me a pensar.

 

Na clínica dos tempos atuais constatamos um prolongamento da adolescência, toda uma geração de adultos jovens que não está conseguindo amadurecer. No entanto, amar e trabalhar, sair de casa, fazer parcerias e escolher uma maneira de ser autônomo é um desafio que enfrentam com dificuldade, nem sempre com essa placidez que aqueles termos pejorativos evocam. A geração mimimi está sofrendo de verdade.  Para Freud o trabalho pode “tornar possível o uso de inclinações pré-eexistentes, de impulsos pulsionais” a serviço da realização pessoal e da vida em comunidade. Winnicott diz: “se o que se pretende é que a vida instintual tenha liberdade de expressão...” haveria um equilíbrio que tem que ser obtido sempre de novo, em cada fase: “considerem um médico e suas necessidades. Privem-no de seu trabalho, e o que será dele? Ele necessita de seus pacientes e da oportunidade de usar suas aptidões, como qualquer outro profissional.”.

Privem o jovem adulto de usar suas aptidões… o que será dele?

Para estes jovens, estamos falhando em ser o ambiente que permite a realização: há os trabalhos criativos, e há os ofícios insanamente alienantes, e aqui eu não estou falando da alienação de Marx; eu estou falando da alienação do verdadeiro self. A morte psíquica é um desfecho possível, e quem viu o filme Arábia (Afonso Uchoa e João Dumas-2017) se entristeceu com a história do Cristiano, que escreve um diário, se apaixona, mas no final sucumbe, vira “coisa”, deixa de sonhar.

Francis sonha. E podemos sonhar este filme, como nos propõe Nino Ferro: Francis e seus amigos representando, cada um, uma parte do seu self (como no enredo de um sonho ou de uma sessão). O filme é uma fábula moderna sobre as vicissitudes da bailarina meio gauche, desengonçada, Francis, que com 27 anos enfrenta dificuldades para manter-se economicamente. Não  selecionada para o espetáculo de natal, ainda é uma adolescente: tem sonhos grandiosos de realizar-se como artista,  mas  não encontra reconhecimento no trabalho.Também não se acerta com o namorado :  “sou alta demais para casar” , e fala de si mesma  ” eu ainda não sou uma pessoa real, de verdade” . Da dificuldade de passar pela fase da adolescência diz ” sou uma pessoa que tem dificuldade em deixar os lugares” quando se demora no camarim, tentando organizar suas coisas após um ensaio, quando todos já foram embora.

 

Em várias de suas falas e no enquadramento do filme, quando dança, por exemplo, partes de seu corpo são deixadas fora da cena, e diz de si ” Nunca consigo saber como fiz meus machucados”. Esse corpo grandão e que escapa do esquema é tão próprio da adolescência, período de crescimento rápido, em que o corpo passa na frente e a mente corre atrás, atabalhoadamente, tentando dar conta do recado! Francis dança, mas é mesmo meio desastrada, como uma adolescente que cresceu rápido demais. Quando Sophie,  melhor amiga,  que pode ser sonhada como o seu duplo, de quem   diz “somos a mesma pessoa, com cabelos diferentes”, vai embora, inaugura-se  em Francis um período de solidão e busca de sentido,  marcado pela instabilidade: constantes mudanças de endereço  e viagens – a fuga para Paris, o retorno à universidade, à casa dos pais.  Outros personagens que vão aparecendo, todos na casa dos 30,e parecem encarnar os falsos-selves que Francis vai rejeitando em sua busca por autonomia e realização; os jovens ricos dependentes dos pais,  artistas que  nada produzem, a colega da companhia de dança que a acolhe em sua casa,  mas não sabe brincar. Francis, perto dos 30 e temendo parecer mais velha ( pois não se sente adulta), parece ser a pessoa mais desajustada, mas na verdade  é aquela que mais traz a marca da autenticidade e da alegria. Nem sempre estar bem ajustado significa saúde mental…se isso se faz às custas do estrangulamento do gesto espontâneo.

Podemos entender o tempo do filme como o tempo da adolescência,  tempo de estar sempre um pouco à deriva, sem respostas, de inquietude. Mas também tempo de rejeitar as falsas soluções. O que nós “adultos” ( rssss) gostamos de chamar de preguiça ou rebeldia ou aborrescência. ( É que a gente gosta de esquecer que já sentiu isso um dia – e vai sentir de novo: na menopausa, na hora de ter o ninho vazio, ao se aposentar, ao fazer o implante dentário, ao envelhecer…).

A cura da adolescência é a passagem do tempo. ” nos diz  Winnicott. Nós, terapeutas, vivemos com Francis, como expectadores, este marasmo que caracteriza tantos  momentos da análise dos adolescentes.

Enfim, nossa heroína consegue fazer a sua  passagem. No final do filme, tem a oferta de um trabalho de secretária ( aceito com  relutância), e se  reconcilia com a amiga que regressa do outro lado do mundo  ( simbolizando a integração dela mesma). Por fim alcançada alguma estabilidade,  inicia o trabalho como coreógrafa, inventando uma dança. Ela assim descreve sua coreografia       “gosto das coisas que parecem erradas”.

Três cenas finais indicam a elaboração da passagem da adolescência em Francis, de maneira muito poética. Na primeira,  orienta os bailarinos que vão ao palco encenar sua coreografia, mostrando a capacidade de estar na coordenação de um projeto original, autoral: a capacidade de trabalhar criativamente. Na segunda, o belo encontro de olhares de Sophie e Francis, ao fim da peça, que pode ser visto como o olhar amoroso, e também o espelho, o reconhecimento no olhar do outro, tão buscado pelo artista. E, enfim, a adequação ao princípio de realidade quando finalmente tem uma casa que é sua, e precisa cortar um pedaço de seu nome para que ele possa caber no  espaço da caixa de correio. É a aceitação da castração, como limite-borda definidora, parte do amadurecimento. Como nos diz Winnicott; “Ser, antes de fazer”. “O ser tem de se desenvolver antes do fazer…  finalmente a criança domina até mesmo os instintos sem a perda da identidade do self”. O nome comprido que pode ser cortado agora é Francis amadurecida, ajustando-se, sem deixar sua dança, sem perder a felicidade, o senso de identidade e a capacidade criativa. De uma forma dialética, e poética, o fazer também alimenta o Ser; assim acontece com Francis, que amadurece tarde, mas no seu próprio tempo.

para meu sobrinho, Thales Augusto.